Uma adolescente britânica do início do século XIX mudaria a literatura mundial, revolucionaria o jeito de se contar uma história criando algo absolutamente inaudito e, de quebra, conseguiria alcançar o topo, glorificada por transcender sua própria vida e inspirar milhões de outras meninas mundo afora. Em “Mary Shelley”, a saudita Haifa Al-Mansour celebra a figura da personagem-título, autora de “Frankenstein”, reavivando o debate cada vez mais urgente sobre a necessidade feminina de afirmar-se, problema de que a escritora já se ressentia quando da publicação de sua obra-prima bicentenária, em 1818.
A cinebiografia da literata em alguns momentos até parece que vai derivar, com alto grau de risco, para a influência nefanda que o poeta Percy Bysshe Shelley (1792-1822), primeiro seu amante e depois seu marido num casamento marcado por vicissitudes de toda ordem, teria exercido sobre sua produção, mas Al-Mansour é hábil em fazer com que sua heroína, incorporada com desvelo por Elle Fanning, retome o protagonismo todas às vezes em que semelhante tragédia ameaça se dar.
Percy, de Douglas Booth, chega a inquirir textualmente se Mary sente-se uma escritora, e ouve uma resposta mais literária impossível. Era já a artista que fervia nela, e que ele, a seu modo sorrateiro, aspirava a domar e tolher.
A criação do Frankenstein de Mary Shelley (1797-1851), releitura de um clássico da mitologia grega — delirante, perturbador, filosoficamente refinado —, perpassa a humana fragilidade, mas surpreende ao discorrer sobre as transformações que o homem, o mais irrequieto dos animais, não cansa de pretender para sua vida, para a vida de quem o rodeia, chegando às portas da blasfêmia e da loucura ao emular poderes exclusivamente divinos, ansiando formar uma outra sociedade, gerar o novo homem. Esse sonho vesano apela à sofística ideia do bem comum, mas é, em verdade, a compensação solitária de vaidades muito íntimas, de mágoas muito profundas; questiona imagens cristalizadas no inconsciente de toda uma geração — sempre unidas ao passado, que resiste em ceder lugar ao futuro, corporificado por máquinas que aludem a uma nova era e a novos desafios —, ao mesmo tempo em que abre espaço para avaliar sua importância.
O roteiro aplicado de Emma Jensen menciona a viagem dos Shelley à casa do poeta romântico Lord Byron (1788-1824) em Genebra, onde, numa noite de tédio, Mary, Percy e o anfitrião, papel de Tom Sturridge, além de Claire, a meia-irmã espaçosa interpretada por Bel Powley, e o escritor Thomas Hogg, personagem de Jack Hickey, competem entre si para ver quem criaria a melhor história “de fantasma”. Como se pode supor, Mary vence o concurso, mas o que se passa antes, a título de prólogo para explicar como uma garota insegura e mesmo medrosa torna-se a escritora que abala a hegemonia masculina num meio em que o domínio dos homens era como um dado da natureza, indiscutível e contra o qual toda luta seria em vão, é assombroso. Fanning tem maturidade artística e técnica o bastante para fazer crível a transformação de sua personagem — que enfrenta a zanga contida de um pai amoroso, o jornalista e escritor William Godwin (1756-1836), de um Stephen Dillane assombrosamente preciso, com toda a razão temeroso pela honra da filha —, mormente depois que assume a relação com Percy. Se Mary escapa à pretensa subjugação paterna, deixa-se gostosamente capturar pela personalidade castradora de seu novo companheiro, imperscrutável em seus ardis, mas também de uma limpidez cinicamente ofensiva quando o quer. Booth confere a seu Percy Shelley o espírito que o personagem demanda, de uma liberdade suicida, homicida, destrutiva em essência, que encerra toda a fria racionalidade mesmo em questões que clamam por drama — a morte da primeira filha do casal é o exemplo mais peremptório quanto a assinalar suas diferenças. Enquanto Percy supera o decesso da criança com uma facilidade que exaspera, Mary faz do episódio o mote do trabalho que possibilitaria o reconhecimento de seu gênio. A pretensão de sobrepujar os desígnios da Providência e trazer seu bebê de volta é o âmago de “Frankenstein”, justamente denominado de “O Prometeu Moderno”, uma referência ao personagem da mitologia grega que rouba o fogo, a representação por excelência da técnica e da sabedoria, e é castigado a viver eternamente, mas em agonia insuportável. Um epítome do que foi a vida mesma de Mary Shelley, sempre a combater titãs.
Filme: Mary Shelley
Direção: Haifa Al-Mansour
Ano: 2017
Gênero: Drama/Romance
Nota: 8/10
Fonte: Revista bula