Série de quatro matérias mostra o que a democracia pode proporcionar à população em diversas áreas
Faltam menos de 3 meses para o dia em que mais de 150 milhões de eleitoras e eleitores irão às urnas eletrônicas escolher representantes que ocuparão as prefeituras e câmaras municipais pelos próximos quatro anos. Nas Eleições Municipais de 2024, Distrito Federal, Fernando de Noronha (PE) e Zona ZZ (que reúne o eleitorado que vota no exterior) não participam do pleito.
Desde a semana passada, o portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) publica a série “O que o eleitor quer quando pensa em democracia?”. As primeiras publicações trataram de saúde e de educação. Nesta terceira matéria, confira as demandas do eleitorado quando o assunto é moradia e planejamento urbano.
Moradia: muito além de um teto e quatro paredes
O direito à habitação está na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na Constituição Federal de 1988. Segundo o artigo 6º da Carta Magna, a moradia é um direito social e encontra base na dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República.
Virgínia Machado, professora e mestra em Direito Público, explica que a ideia de direito à moradia ultrapassa o fato de apenas se ter uma casa para morar. “É ter uma casa digna, em local seguro e que tenha aparelhamento urbano necessário, como saneamento básico e fornecimento de serviços públicos como saúde, segurança, transporte e iluminação coletiva”.
Além disso, ela explica que as políticas públicas devem ser construídas considerando-se todos os fatores que envolvem esse direito social, entre os quais estão programas governamentais, população de rua e uso do solo, por exemplo.
Sonho interrompido
De acordo com os dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no final de 2023, a maior parte da população do país (64,6%) vive em imóveis próprios e quitados.
Em 2021, a operadora de telemarketing Ericka dos Santos conquistou esse sonho ao comprar um apartamento no Jardim Céu Azul, bairro do município de Valparaíso de Goiás (GO), que fica no entorno do Distrito Federal (DF). Antes, ela morava com os pais na região administrativa de Santa Maria, no DF.
Contudo, com a chegada das chuvas, descobriu que a rua que dá acesso ao local onde fica seu apartamento é atingida com fortes enxurradas. “Eu não consigo sair de casa enquanto a água não desce por toda a rua. Não posso sair de carro, nem mesmo pegar ônibus. Fico ilhada”, conta.
Segundo Ericka, quando comprou o apartamento, seu foco principal estava na realização do sonho da casa própria. Por isso, acabou não pesquisando sobre o local. Apesar do problema com as enxurradas, ela destaca a boa localização como um ponto positivo do empreendimento: “Tenho praça, posto de polícia, ponto de ônibus e até hospital próximos”, afirma.
Para ela, as eleitoras e os eleitores precisam votar nas candidatas ou nos candidatos que fizerem as melhores propostas para a mudança dessa realidade. “É preciso ver quem está preocupado com o que é bom para a população e determinado a resolver os problemas mais urgentes”, conclui.
Atribuição de prefeitos e vereadores
O professor de Recursos Hídricos do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) Paulo Canedo explica que as enxurradas ocorrem por conta de alguns fatores.
Além das fortes chuvas causadas pela poluição e pelas mudanças climáticas, há, ainda, as modificações na superfície do solo provocadas pela urbanização mal planejada. “Onde a natureza absorve a água da chuva, e essa água poderia infiltrar e correr superfície abaixo, ela tem a geometria alterada pela urbanização que não leva em conta essa função do solo. Portanto, a população acaba sofrendo com esse problema”, afirma.
O professor explica que o uso do solo é atribuição municipal, salvo quando se trata de região metropolitana (vários municípios interligados). Nesse último caso, é formado um colegiado composto pelo governador do estado e pelos prefeitos das localidades afetadas.
Com a união dos administradores nas esferas municipal e estadual, é criada, então, uma Zona de Interesse Metropolitano (ZIM). “Toda ZIM tem sobrenome. No caso de enxurradas, por exemplo, seria uma ZIM para drenagem”, complementa o docente.
Já os vereadores devem atuar, segundo Canedo, como fiscais do Executivo local. Paulo ressalta que isso deve ser de conhecimento da eleitora e do eleitor, para que eles saibam de quem devem cobrar a aplicação de boas políticas públicas.
Planejamento do uso do solo
Ele também alerta que as enxurradas, além de promoverem inundações, alagamentos e erosão no solo, podem fragilizar as moradias instaladas na localidade atingida. Como solução, ele afirma que não é necessário retirar os moradores da região. De acordo com o especialista, essa medida, que é mais drástica, só ocorre em algumas exceções.
Porém, para mitigar eventuais prejuízos, a prefeitura deve mapear as zonas de risco e aplicar medidas para a convivência da população com as características do local, conforme indicam as legislações ambientais.
“Preservar a função natural dos solos, evitando-se longos caminhos asfaltados e concretados, deixar áreas com vegetação para que a água possa infiltrar e criar pequenas retenções superficiais de água para forçar a infiltração no solo” são exemplos, afirma.
Caso de Porto Alegre (RS)
As enchentes de maio, em Porto Alegre (RS), por exemplo, deveriam ter sido contidas pelos diques (espécie de parede de terra de cerca de três metros para impedir que a água avance para dentro da cidade), pelo muro e pelo restante do sistema de drenagem, formado pelas casas de bombas e as comportas.
Entretanto, na avaliação do professor, além da aplicação efetiva de medidas prévias, também é necessária a manutenção dos sistemas. “Esse sistema precisa ser fiscalizado para estar íntegro. Faltou manutenção por anos, e ele não funcionou como deveria”, observa Canedo.
Acessibilidade: uma questão de autonomia
Se, por um lado, a falta de planejamento urbano afeta o direito de ir e vir de muitos cidadãos quando chove, por outro, significa uma luta diária para as pessoas com deficiência. É o que conta o artista plástico Marcelo Cunha, de 54 anos. Ele ficou tetraplégico aos 21, após se acidentar em uma cachoeira. Hoje, faz parte da Associação dos Pintores com a Boca e os Pés, já fez obras para as Paralimpíadas de 2016, é formado em Publicidade e Propaganda e pós-graduado em Artes Visuais.
Atualmente, o artista mora em Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), onde tem um ateliê. Ele também é escritor e, para exercer essa função, usa um equipamento em seus óculos. Com a ferramenta, Marcelo consegue enviar comandos para o computador e para o celular ao piscar os olhos e movimentar a cabeça.
Em agosto, irá lançar o livro “Aceitar é preciso – um relato de fé, superação e resiliência”. Nos seus escritos, ele compartilha com as leitoras e os leitores relatos sobre a falta de acessibilidade nas ruas. “A nossa liberdade esbarra nessas obras que não nos permitem ter uma autonomia completa e uma vida de conquistas. Pelo menos, essa é a minha realidade”.
Marcelo lembra que morava em Jacarepaguá e diariamente enfrentava ruas com buracos, calçadas desniveladas e acessos com degraus. As dificuldades o obrigavam a se locomover no asfalto, disputando espaço com veículos e quebra-molas. O artista plástico conta, inclusive, que já se acidentou na rua. “A roda bateu em um buraco que havia no final da rampa, e eu fui ao chão”, lembra.
“A gente tem uma acessibilidade pela metade. Nas imediações do centro [do Rio de Janeiro], não existe. Eu vejo obras recentes e antigas feitas de forma inadequada e calçadas sem rampas de acessibilidade. Eu dependo dessas adequações, mas não posso contar com elas. Quando preciso ir a uma exposição, por exemplo, preciso me locomover até chegar lá. Nem sempre tem alguém que possa me levar. Quero me locomover com a liberdade que todo mundo tem”, diz.
“Se isso não existir, corre o risco de a pessoa se fechar no seu mundo, ficar somente em casa”, ressalta Marcelo Cunha.
Direitos da pessoa com deficiência
Valéria Ribeiro, advogada especialista em Políticas Públicas, que também é uma pessoa com deficiência, ressalta que os direitos dessa parcela da população são assegurados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, das Nações Unidas, e pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI/Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/15). Em seu artigo 53, a LBI dispõe que a “acessibilidade é direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social”.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD/IBGE) de 2022, há, no Brasil, cerca de 18,6 milhões de pessoas de dois anos ou mais com algum tipo de deficiência.
A pesquisa mostra, ainda, que esse percentual cresce com o avanço da idade. Em 2022, 47,2% das pessoas com deficiência tinham 60 anos ou mais. Em relação às dificuldades investigadas, a mais declarada foi a de andar ou subir degraus (3,4%).
Como tornar as cidades mais acessíveis?
Por isso, segundo Valéria, a inclusão fortalece a democracia e permite que a sociedade, como um todo, exerça plenamente seus direitos. “É importante conhecer o programa de governo dos candidatos e verificar quais ações são direcionadas à proteção dos direitos e das garantias constitucionais da pessoa com deficiência. Ainda, depois de eleito o candidato, é necessário que a população fiscalize sua atuação, cobre as medidas elencadas nos programas e fortaleça o controle social”, afirma.
A advogada cita algumas melhorias que devem ser feitas nas ruas para garantir acessibilidade: “Manter calçadas planas e sem obstáculos de qualquer tipo, aplicar piso tátil direcional em calçadas e edifícios, implantar rampas de acesso às calçadas e sinalização sonora e visual em faixas de pedestre e em semáforos, adaptar frotas e pontos de acesso a transportes coletivos para que estejam na mesma altura da entrada e construir guias de sarjeta, conforme determina a NBR-9050“.
De acordo com Valéria Ribeiro, ao prefeito cabe atender às regras da LBI de forma planejada. Ao vereador, no âmbito de sua competência, cabe apresentar leis que tratem de regras e obrigações nesse campo, bem como formar grupos de pressão junto à municipalidade para que os requisitos legais de acessibilidade sejam obedecidos.
A série
A série “O que o eleitor quer quando pensa em democracia?” realça a importância da democracia para o debate de ideias e o surgimento de propostas para melhorias nas áreas da saúde, da educação, da moradia e, por fim, da eleição de candidatas e candidatos aos cargos de prefeito e vereador com propostas factíveis. Na quinta-feira (18), será publicada a última matéria da série.
Fonte: TSE / Foto: TSE