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‘Desidratado demais para chorar’: a viagem mortal dos migrantes no Panamá

Mundo

Atenção: esta reportagem contém detalhes que alguns leitores podem considerar perturbadores.

A pediatra Yesenia Williams ficou tão chocada com o que viu em um centro de recepção de migrantes ao norte da região de Darién, que separa o Panamá da Colômbia, que não conseguia falar sobre o assunto — nem mesmo com seus colegas.

“Não esperava tanto sofrimento e tantas dificuldades”, relembra ela.

Em seus nove dias trabalhando em uma clínica improvisada na cidade panamenha de San Vicente, ela e seus colegas trataram de centenas de migrantes exaustos que haviam caminhado pela densa floresta entre a Colômbia e o Panamá.

Ouvindo suas histórias, os médicos tiveram uma ideia da luta para sobreviver no que tem sido descrito como a parte mais traiçoeira da rota migratória mais perigosa do mundo, que as pessoas atravessam na esperança de encontrar refúgio nos Estados Unidos.

As condições das crianças que fizeram a travessia foram o que mais comoveu Williams. Algumas estavam tão desidratadas que seus olhos pareciam afundados.

Ela lembra que não havia lágrimas quando elas choravam. Outras estavam tão desorientadas que não conseguiam lembrar seus próprios nomes.

“Elas presenciaram coisas que não deveriam ter visto”, afirma a pediatra, sobre a violência e os ataques sofridos por parte dos migrantes durante a travessia.

Inferno verde

A região de Darién estende-se por 575 mil hectares de espessa floresta tropical, formando uma barreira natural entre a América do Sul e a América Central.

Não há estradas pavimentadas, nem caminhos sinalizados, para ajudar a atravessar essa terra sem lei, onde assaltos e estupros são comuns.

Apesar dos riscos, cada vez mais migrantes atravessam a pé a trilha de 97 km, entre pântanos e montanhas — o que pode levar mais de uma semana.

Estima-se que 133 mil migrantes tenham cruzado a selva de Darién em 2021. Desse total, 30 mil eram crianças. Muitas das pessoas que fazem a perigosa travessia são famílias do Haiti, Cuba e Venezuela, mas Williams conta que já viu crianças chegando sozinhas.

Nos nove dias que os médicos passaram em San Vicente, eles trataram cerca de 500 migrantes que fizeram a travessia e entrevistaram 70 deles em detalhes.

Entrega de crianças a estranhos

O médico José Antonio Suárez, especialista em doenças infecciosas da equipe, relembra como cuidou de um homem venezuelano de 60 anos que viajava com duas crianças, de quatro e cinco anos.

O médico imaginou que fossem os netos do migrante, mas ele contou que não eram da sua família. Ele disse que a mãe das crianças era uma mulher haitiana que ele havia conhecido na selva e pedido que ele os levasse a San Vicente, porque ela não tinha mais forças para andar.

“O grau de desespero é tão grande que um pai pode entregar seu filho para um estranho”, explica Suárez.

Relatos devastadores de mortes na travessia

O epidemiologista panamenho Roderick Chen-Camaño, experiente no trabalho com comunidades indígenas na selva, achava que estava preparado para o que encontraria na clínica improvisada.

“Não achei que fosse ver algo de novo”, afirma ele, relembrando em seguida um migrante venezuelano que desabou em lágrimas quando contou o que havia presenciado durante a viagem.

O homem afirma que fazia parte de um grupo de migrantes que estava escalando a cadeia montanhosa que separa a Colômbia do Panamá quando uma mulher haitiana desmaiou. E o que aconteceu em seguida marcou o venezuelano.

Segundo o migrante, assim que o marido percebeu que ela estava morta, ele atirou um dos filhos do rochedo. E ele lembra que tentou impedir o haitiano desesperado de fazer o mesmo com o outro filho, sem sucesso.

Por fim, o migrante venezuelano contou ao médico que também não conseguiu impedir o homem haitiano de pular para o vazio.

A BBC não conseguiu confirmar o relato do migrante de forma independente, mas números da Organização Internacional de Migração indicam que dezenas de migrantes morrem todos os anos cruzando a região do Darién.

Atravessando águas infectadas

Yesenia Williams afirma que é frustrante ver que sua equipe só conseguia fazer o mínimo indispensável na clínica improvisada, aliviando parte dos sintomas sem lidar com suas causas.

“Nós vemos apenas uma pequena parte da experiência dos migrantes”, reflete a médica. Mas José Antonio Suárez, que é da Venezuela, sente-se feliz de poder oferecer ao menos alguma ajuda aos seus compatriotas.

A maior parte dos migrantes que atravessou a região de Darién no ano passado foi de haitianos, mas os venezuelanos são a maioria em 2022. Muitos deles deixaram a Venezuela nos últimos anos em meio à crise econômica do país, para tentar ganhar a vida em outros países sul-americanos.

Mas os rígidos lockdowns impostos durante a pandemia de covid-19 dificultaram ainda mais a situação desses migrantes. Por isso, muitos deles agora estão se dirigindo para o norte, em busca de novas oportunidades.

Um dos pacientes venezuelanos atendidos por Suárez na clínica apresentava uma irritação incomum na pele dos pés e das pernas.

Essas lesões vermelhas que causam coceira relembraram ao médico de 67 anos algo que ele não via desde a adolescência, quando visitou a laguna de Unare, no seu país-natal, a Venezuela.

Suárez diagnosticou o migrante e mais de 20 outras pessoas que chegaram logo depois dele com dermatite cercarial, também chamada de coceira do nadador. Ela é causada por larvas parasitas que são liberadas por caramujos.

As larvas minúsculas penetram na pele dos nadadores, causando erupções. Elas morrem, mas, quanto mais o paciente coça a área afetada, pior fica a irritação, já que a pele ferida pode ser facilmente infectada por bactérias.

Mas uma das colegas do Dr. Suárez, a pediatra Rosela Obando, observou que muitos adultos sofriam a irritação, enquanto as crianças pareciam não ser infectadas. E, conversando com os migrantes, eles descobriram o porquê.

Os adultos haviam se infectado enquanto atravessavam os muitos cursos d’água que cortam a região de Darién, mas as crianças haviam sido poupadas porque seus pais as carregavam no colo para evitar que fossem arrastadas pela corrente.

A irritação raramente causa complicações, mas Suárez adverte que beber a água infestada pelos parasitas pode trazer consequências sérias.

E o médico explica que os migrantes que cruzam a região de Darién muitas vezes não têm escolha. Carregar garrafas de água seria um peso muito grande na sua árdua jornada, beber água dos rios infestados com larvas causa gastrite e deixar de beber água causa desidratação.

‘Levados pelo rio’

Todos os profissionais da clínica encontraram uma história particularmente marcante.

A bióloga Yamilka Díaz conta que decidiu trabalhar na região de Darién depois de conhecer Delicia, uma menina de cinco anos de idade que foi encontrada ao lado do corpo da mãe no meio da floresta.

Delicia foi levada ao instituto onde Díaz trabalhava fazendo exames de sangue para determinar doenças tropicais, como a malária e a dengue.

Quando Díaz perguntou a Delicia o que ela se lembrava de ter acontecido, ela disse apenas que sua família havia sido “levada pelo rio”.

A bióloga afirma que atender os migrantes mudou a sua vida e a fez observar temas mais mundanos, como o aumento do custo de vida, com mais lucidez.

“Você vê tudo diferente”, segundo Díaz, que deixou a clínica improvisada descalça, depois de dar seus sapatos a uma migrante que teve os tênis infectados por fungos.

Fonte: BBC