Formado em 1974 por estudantes universitários, conjunto foi destaque no cenário musical da década seguinte
Por Gabriela Caputo – Sábado, 7 de agosto de 2021
Fantasia
É poesia
Que antes do som prenuncia
Que já está no ar
O que vai nascer
É sintonizar e reconhecer
Fantasia alivia o nosso olhar
Quando ele olha e não vê nada
Só vida parada parada
Os versos acima fazem parte da música Universo, uma das mais recentes do grupo Rumo, formado em 1974, em sua maioria por estudantes da USP. O grupo, que foi um dos principais nomes da Vanguarda Paulista nos anos 1980, é protagonista do documentário Rumo, dirigido por Flávio Frederico e Mariana Pamplona e produzido pela Kinoscópio Cinematográfica.
Rumo chegou ao circuito comercial no início deste mês e atualmente está em cartaz no Espaço Itaú de Cinema (Rua Augusta 1.470, São Paulo). O filme foi exibido pela primeira vez em 2019, em mostras de cinema como o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade e o In-Edit Brasil, dedicado a documentários musicais.
O documentário surgiu da admiração e proximidade dos diretores com o Rumo. Flávio Frederico conta que, em sua adolescência, foi fã do grupo e viveu intensamente o momento da Vanguarda Paulista. Já Mariana Pamplona, que assina o roteiro do filme, tem uma experiência de bastidores: sua mãe é casada com Luiz Tatit, um dos membros do Rumo, e por isso desde pequena Mariana acompanha o grupo, frequentando os shows que aconteciam principalmente no Teatro Lira Paulistana, na Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. “Na época, eu era a única criança que circulava por ali, então o grupo ficou muito marcado para mim”, diz Mariana.
Para contar a história do grupo, o filme reúne imagens inéditas, músicas, shows raros, depoimentos e registros dos integrantes e material de arquivo. Além disso, traz um diferencial ao misturar desenho animado e composições gráficas às imagens usuais. Segundo Frederico, a ideia era trazer a originalidade tão presente no Rumo para a produção do filme. “A gente também tinha que entrar nesse jogo de fazer uma obra original, diferente, que experimentasse. Não dava para ser um filme convencional sobre o Rumo”, diz.
Para isso, Mariana pensou no desenho animado, que foi desenvolvido com a participação do ilustrador Fernando Heynen e do animador Mao Ambrosio. “As imagens começam em preto e branco, com poucos elementos, e ficam cada vez mais preenchidas, coloridas e detalhadas à medida que o grupo vai crescendo. Quando a história chega próxima da gravação dos dois primeiros discos, os personagens se transformam em carne e osso”, complementa Mariana.
“Achamos que isso casou perfeitamente com a estética dos anos 1980. A televisão estava sofrendo uma transformação também, então as imagens de arquivo, e a textura delas, têm um papel fundamental no filme”, relata Frederico. Para recriar o ambiente artístico daquele momento, os diretores acrescentaram ao longa imagens do cinema paulista da época e de outros cantores, além de mostrar como a imprensa via aquilo. “O filme dialoga com tudo o que estava acontecendo naquele Brasil do final da ditadura militar”, afirma.
Síntese perfeita
“Os diretores conseguiram chegar a uma síntese muito bem feita de tudo que aconteceu com o Rumo e mesmo com tudo o que rolava à época”, confirma o músico Luiz Tatit, um dos integrantes do grupo desde sua formação original, que também é professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
“O documentário apresenta com originalidade e emoção diversas etapas da nossa trajetória um tanto ‘heroica’, sempre à margem da indústria musical. Tem até um caráter meio épico, porque só assim era possível se sobressair num ambiente controlado de forma exclusiva pela ‘grana’. Isso tudo está no filme, mas com um roteiro musical de tirar o fôlego”, avalia Tatit. Para ele, as animações apresentadas na primeira parte do filme trazem uma surpresa bem-humorada ao público. “Nós mesmos rimos muito quando vimos pela primeira vez”, afirma.
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Quanta gente!
Com ar aborrecido olhando pro chão
Pro reflexo dos edifícios e dos carros
Nas poças d’água
E pros pingos, pingando, pingando, pingando
(Ladeira da Memória)
Ao escutar a canção Ladeira da Memória (1983) — a mais ouvida da página do grupo Rumo no Spotify — e outras músicas do grupo, percebe-se a originalidade das suas composições, que trazem a fala cotidiana para as melodias. Com esse trabalho característico, o Rumo tornou-se um dos principais destaques da Vanguarda Paulista (ou Vanguarda Paulistana), movimento cultural que ocorreu na cidade de São Paulo entre 1979 e 1985.
Marcada por certo experimentalismo e uma nova forma de compor, a proposta do movimento encontrava resistência na televisão e nas rádios, por se diferenciar do que era mais comum e popular nessas mídias. Por isso, as produções da Vanguarda Paulista ficaram mais restritas ao cenário alternativo e a iniciativas independentes. O grupo Rumo dividia o momento com personalidades como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção e com os grupos Premeditando o Breque e Língua de Trapo.
Quando o Rumo foi constituído, em 1974, por estudantes universitários — em sua maioria da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP —, a formação original contava com dez integrantes: Akira Ueno, Ciça Tuccori, Gal Oppido, Geraldo Leite, Hélio Ziskind, Luiz Tatit, Ná Ozzetti, Paulo Tatit, Pedro Mourão e Zecarlos Ribeiro. Ciça Tuccori morreu em 2003.
Luiz Tatit conta que o primeiro show do Rumo foi naquele mesmo ano, no colégio Equipe, em São Paulo. Depois, ele se apresentou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e nos teatros da Aliança Francesa e do Museu da Imagem e do Som (MIS), dentre outros centros culturais da capital.
“Até então, o grupo se encontrava apenas para conversar sobre a proposta de uma nova maneira de composição e arranjo para a música brasileira. Nosso material de estudo era, em especial, a canção de rádio dos anos 1930 e 1940, quando nascia o samba ‘profissional’, aquele que era gravado em disco e que participava de programas de rádio”, diz Tatit. “Queríamos chegar a uma canção com sonoridade diferente, mas que mantivesse os principais ‘ingredientes’ na relação entre melodia e letra, que, para nós, era a própria identidade da canção.”
Ele também destaca a heterogeneidade do grupo, que era formado por músicos, mas também por estudantes de Arquitetura, Letras, Sociologia e Psicologia. Isso agregava diversidade, em termos dos interesses dos participantes.
Ah!
Mas é tão boa essa palavra
Carregada de sentido
E com o som tão delicado
Agora eu vou ter que trocar
Ah! (1981)
Segundo Tatit, a ideia de música nova vinha das experiências vanguardistas da música erudita. “Mas os critérios de inovação teriam que ter a personalidade do mundo da canção, e não da música em sentido amplo”, explica. Sobre a incorporação da melodia da fala, ou seja, as entonações, como matéria-prima das composições do Rumo, Tatit diz que “era o que já acontecia, sem consciência explícita, nas composições dos sambas antigos”. Esses músicos compunham a partir do modo de falar, com apoio em ritmos percussivos ou em pequenas orquestras, diz.
“Nos anos 1980, essas canções entoativas tornaram-se marca do Rumo — o grupo da ‘música falada’ —, já que a entoação era especialmente preservada nos arranjos instrumentais. A ponto de o público pensar que a gente estava improvisando quando cantava aquelas canções”, conta Tatit. “De fato, a sonoridade do Rumo era bem diferente do que se ouvia nas rádios e, provavelmente, era também o que nos impedia de entrar na programação radiofônica da época”, avalia.
Em 1977, o Rumo também passou a realizar uma atividade paralela de recriação interpretativa. Cantavam obras do passado musical brasileiro, de compositores como Noel Rosa, Lamartine Babo e Sinhô, cujos sambas eram objetos de estudo do grupo.
“Naquela época, era muito difícil chegar ao primeiro disco sem vínculo com gravadoras. Só em 1981 tivemos essa oportunidade, mas com produção ‘independente’”, lembra Tatit. Naquele ano, o grupo lançou dois LPs com seus melhores trabalhos: Rumo e Rumo aos Antigos. O primeiro era formado por canções originais e o segundo, por suas recriações. “Ambos atingiram cerca de 20 mil cópias vendidas, sem ajuda de gravadora ou das rádios de grande audiência”, diz. Os discos garantiram ao grupo dois prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), de Melhor Grupo Vocal e Melhor Grupo Instrumental.
“Esse lançamento coincidiu com o aparecimento de outras bandas que também traziam novas propostas de composição. Surgia, além disso, um núcleo de apoio a todas essas iniciativas independentes, conhecido como Teatro Lira Paulistana, tudo no coração do bairro de Pinheiros, na Praça Benedito Calixto”, relembra o músico. “Talvez essa reunião de esforços tenha alimentado, por algum tempo, certo sucesso de todos esses artistas, mesmo que jamais tenham entrado no mainstream. Esses grupos eram conhecidos em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, em Brasília, mas não chegaram a ter êxito realmente nacional”, considera Tatit.
Os trabalhos seguintes do Rumo foram Diletantismo (1983), Caprichoso (1985) e Quero Passear (1988), sendo este último um disco infantil lançado pelo selo Eldorado. Por ele, receberam dois Prêmios Sharp — hoje chamado Prêmio da Música Brasileira — nas categorias Melhor Disco Infantil, de 1988, e Melhor Canção Infantil, pela música A Noite no Castelo. Em 1989, uma antologia dos melhores trabalhos do grupo foi lançada também pelo selo Eldorado, o LP O Sumo do Rumo. Os shows do grupo eram elogiados pela crítica paulistana, e uma dessas apresentações, realizada em 1991 no Sesc Pompeia, foi gravada para o CD Rumo ao vivo.
Afasta um pouquinho
Vai mais pra lá
Pra dar perspectiva
Assim, ooh,
Agora eu te reconheço
(Encontro, 1981)
Alguns anos mais tarde, em 2004, o grupo relançou seus álbuns em CD, realizou shows e fez uma exposição sobre sua trajetória no mesmo Sesc Pompeia. Também gravou um DVD em celebração aos seus 30 anos. Já em 2009, Sopa de Concha foi lançado a partir de gravações encontradas no Instituto Moreira Salles (IMS) do Rio de Janeiro por Geraldo Leite, um dos membros do Rumo. Grandes músicos participaram do instrumental, enquanto o grupo produziu as interpretações vocais.
Entre suas melhores lembranças da trajetória do Rumo, Tatit diz que os dois primeiros discos foram inesquecíveis. “Nossa primeira ida ao Rio para fazer temporada na sala Funarte também foi surpreendente. A rádio Fluminense FM fez uma grande promoção e foi um imenso sucesso de público e crítica. Não esperávamos”, relembra.
O trabalho mais recente do Rumo, Universo, foi lançado em 2019 pelo selo Sesc. Com 14 canções inéditas, o álbum marca uma reunião dos nove integrantes do grupo, após 45 anos de sua formação.
O documentário Rumo pode ser assistido no Espaço Itaú de Cinema (Rua Augusta, 1.470, centro, São Paulo). O filme deve chegar às plataformas digitais no início de agosto.
Fonte: Jornal USP