As surpreendentes manifestações que levaram milhões de pessoas às ruas do país em junho de 2013 marcaram o início de uma década turbulenta.
O movimento de insatisfação na sociedade ganhou visibilidade nacional a partir de protestos contra o aumento de vinte centavos na tarifa de transporte em São Paulo e escalou para atos de grande dimensão espalhados pelo país, com uma pauta mais ampla de reivindicações, como saúde e educação de qualidades, combate à corrupção e menos impostos.
Os atos deixaram a classe política e a sociedade como um todo atônitas.
Nos anos seguintes, o Brasil viveu o ápice da operação Lava Jato, impeachment da presidente Dilma Rousseff, ascensão de uma direita radical, eleição presidencial de Jair Bolsonaro e o fortalecimento de movimentos antidemocráticos que culminaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em janeiro.
No meio tempo, Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado, preso, solto, recuperou seus direitos políticos e foi eleito pela terceira vez para comandar o país.
Mas qual a influência de junho de 2013 sobre essa cadeia de acontecimentos? E os impactos daqueles atos continuam reverberando hoje?
Acadêmicos que pesquisam aqueles protestos e seus desdobramentos entrevistados pela BBC News Brasil consideram equivocado traçar uma linearidade causal entre esses eventos, como se o turbilhão que tomou as ruas há dez anos tivesse, por exemplo, gestado a nova direita brasileira, causando assim a derrubada do governo petista e abrindo caminho para o bolsonarismo.
Por outro lado, apontam junho como um momento de inflexão na história, em que uma série de insatisfações e movimentos de reivindicações que vinham fermentando nos anos anteriores eclodiram e ganharam visibilidade.
Nesse sentido, aqueles protestos parecem ter catalisado sentimentos já presentes na sociedade e que influenciaram os rumos da turbulenta década seguinte (entenda melhor ao longo da reportagem).
Para os entrevistados, seus reflexos podem ser sentidos inclusive nos desafios que Lula enfrenta em seu primeiro governo, seja na relação mais tensa com um Congresso mais polarizado e fortalecido, ou no aumento da cobrança por mais representação de grupos historicamente menos presentes em espaços de poder, como indígenas, negros, mulheres e a comunidade LGBTQI+.
Outro impacto mais silencioso de junho de 2013, apontam estudiosos, foi o avanço gradual do transporte gratuito. Política rara no país dez anos atrás, e muitas vezes criticada como utópica, a tarifa zero era realidade em 52 cidades em 2022, impactando 2,5 milhões de pessoas, segundo levantamento do urbanista Roberto Andrés, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor do livro A razão dos centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013.
A gratuidade também foi adotada em mais de 300 cidades no segundo turno da eleição do ano passado, nota ele, favorecendo a ida de pessoas mais pobres às urnas e contribuindo para a primeira queda da abstenção entre o primeiro e o segundo turno presidencial desde a redemocratização.
Os impactos da contestação da política tradicional
A contestação da política tradicional presente nos atos de dez anos atrás parece servir de fio condutor do impacto de junho sobre os acontecimentos seguintes.
Para a cientista política Olívia Cristina Perez, professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) que pesquisou movimentos sociais surgidos na esteira de junho de 2013, esse caráter antissistema e o desejo por inclusão são duas marcas daquelas manifestações.
Ela nota isso, por exemplo, em coletivos de esquerda de caráter autonomista, que funcionavam de maneira horizontal, sem lideranças claras, como grupos feministas, antirracistas, pelos direitos LGBTQI+ ou que lutavam pelo transporte público gratuito, como o Movimento Passe Livre (MPL), responsável pelos protestos contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, atos vistos – para alguns pesquisadores erroneamente – como a fagulha inicial de junho.
Mas Perez também identifica esse desejo de inclusão e de se contrapor à “velha política” em grupos da direita mais conservadora que não se sentiam representados nos governos do PT, partido que comandava a Presidência da República desde 2003.
“Veja que a eleição de Bolsonaro não é culpa de junho de 2013. Junho é um estopim dessa crítica à política tradicional por ser demasiada excludente. E aí a direita se aproveitou disso e lança candidatos que se colocam como fora da política tradicional, embora estejam bastante dentro, com a promessa de incluir aqueles que estavam excluídos”, analisa.
“No caso de Bolsonaro, (a promessa) de incluir os conservadores no poder, porque eles estavam de fora há muito tempo. Tem uma confluência, então, entre junho de 2013 e a proliferação dessas organizações que forçam por mais inclusão, mas não que seja responsável pela ascensão da direita no Brasil, porque a direita no Brasil sempre esteve aí”, continua.
Por outro lado, Perez aponta também o impacto dos atos de junho em transformações no campo da esquerda, por exemplo com o fortalecimento de reivindicações por mais representatividade de grupos historicamente oprimidos.
Na sua leitura, isso se refletiu na posse de Lula, quando ele subiu a rampa do Palácio do Planalto ladeado por representantes desses grupos, como o cacique Raoni e a catadora Aline Sousa, mulher negra que lhe passou a faixa. Ou na composição de sua equipe ministerial, com o aumento da diversidade em relação aos seus mandatos anteriores e a criação inédita do Ministério dos Povos Indígenas.
E também aumento da pressão pela nomeação de uma mulher negra no STF – embora o presidente venha se mostrando bastante resistente a essa reivindicação, algo que evidencia os obstáculos que esses grupos ainda enfrentam.
O cientista político Daniel Menezes, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, também nota um forte sentimento contra a política tradicional já na origem dos atos de junho.
Ele ressalta que as manifestações pela redução da tarifa em São Paulo foram antecedidos por atos semelhantes, naquele ano, em Natal, Porto Alegre e Goiânia, num movimento em que, na sua leitura, as “franjas” do país influenciaram o centro.
Esses movimentos pelo passe livre, inclusive, vinham ganhando força há quase uma década pelo país, desde a Revolta do Buzu, em Salvador (2003), e na Revolta da Catraca, em Florianópolis (2004), como nota também Andrés, em seu livro já citado.
No caso dos atos de Natal de 2013, lembra Menezes, houve uma disputa interna entre os próprios movimentos de esquerda, que contrapunham coletivos horizontalistas, como grupos anarquistas e o MPL, a instituições tradicionais, como sindicatos e correntes partidárias.
“Eu não acho que a direita substitui a esquerda (nos atos). Eu acho que há uma afinidade não imaginada (entre alguns grupos à esquerda e à direita). Movimentos horizontalistas pregam uma visão de que não deve ter autoridade, não deve ter líder, não deve ter partido. Os símbolos ficam proibidos. Carros de som são vistos com muita negatividade”, observa.
“Aqui (em Natal), os carros de som levados para alguns protestos por sindicalistas foram apedrejados por anarquistas. Eles pegaram garrafas de água cheia e jogaram nos sindicalistas que faziam discursos. E, então, esse movimento esvazia a presença dos partidos de esquerda e dos sindicatos”, acrescenta.
Para Menezes a forma de organização dos novos coletivos sem liderança clara dificultava, inclusive, o diálogo e a negociação com outros atores sociais e políticos.
“Quando eu falo de antipolítica (nos atos de junho) é isso, é a negativa de diálogo com o outro. É nesse aspecto que eu acho que eles ajudaram o Bolsonaro, tanto essa esquerda que nega o aspecto consensual da política, como a direita que acabou se se juntando, se aproximando disso, mas é porque o sistema estava apodrecido”, continua.
A direita nas origens de junho?
O Junho brasileiro se insere em um contexto de avanço das redes sociais, que permitem novas formas de articulação política, e de protestos que ocorreram ao redor do mundo entre 2011 e 2013, como Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, o 15M espanhol, a Primavera Árabe contra governo autoritários que se inicia na Tunísia, ou a mobilização estudantil no Chile.
São atos que, na avaliação de Andrés, tinham caráter progressista e antissistema.
A interpretação mais corrente é que no Brasil os atos começaram como um movimento de esquerda, na primeira quinzena de junho, e depois foram “capturados pela direita”, na segunda metade, quando a pauta se amplia e o verde amarelo ganha espaço nas ruas.
Esse roteiro é questionado pela socióloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Angela Alonso, que analisa as causas de junho de 2013 no livro Treze.
Em sua pesquisa ela identifica três “zonas de conflito” na sociedade que ganharam corpo durante os governo de Lula e Dilma e mobilizaram diferentes segmentos à esquerda e a direita, num processo que culmina em junho.
Uma delas seria em torno da redistribuição de recursos e ações governamentais em favor dos mais pobres, que de um lado geraram insatisfação contra o que era visto como a extração de recursos da sociedade “empreendedora” pelo Estado e, de outro, cobranças pelo aprofundamento dessa reformas sociais.
Outra zona de conflito seria no campo da moral e costumes, com disputas em torno do direito das mulheres e da população LGBT por exemplo, temas catalisados também por decisões do Supremo Tribunal Federal, como a legalização da união homoafetiva (2011) e do aborto de fetos anencéfalo (2012).
E a terceira zona de conflito se formou, segundo Alonso, em torno “dos limites aceitáveis de uso da força pelo Estado”, em que se sobrepuseram as agendas da segurança pública, inclusive com o referendo sobre desarmamento (2005), e dos crimes políticos do Estado durante a ditadura, com a instalação de uma Comissão da Verdade (2011-2014).
Essas disputas, argumenta a professora, estavam nas ruas de junho desde o seu início.
Ela considera o primeiro grande ato político daquele mês a Parada LGBT em São Paulo, que reuniu mais de 200 mil pessoas na Avenida Paulista no dia 2 de junho, e tinha como uma bandeira importante a oposição à proposta da “cura gay”, do deputado Marco Feliciano (PL-SP), que consistia em tentar aprovar uma lei para autorizar psicólogos a promover supostos tratamentos para a homossexualidade.
O campo conservador, por sua vez, promoveu três dias depois, em Brasília, uma marcha com 70 mil pessoas em defesa da família tradicional e da liberdade de expressão e religiosa, que se opunha ao direito ao casamento gay e à legalização do aborto.
“Então, eu não vejo fundamento empírico para essa tese da nova direita, porque não tem nada de novo. O que aconteceu é que (setores da direita) ganharam depois de 2013 uma visibilidade porque eles voltaram às ruas sozinhos em 2015, e aí em volume maior do que em 2013, e mais estruturados, com apoio empresarial”, nota a professora.
“Mas eles já estavam lá. Eles não nasceram de 13, nem depois de 13. A maioria desses movimentos já existia, vinha se organizando. E mesmo aqueles que nasceram depois, como movimentos formais, eles (seus integrantes) também já eram participantes de manifestações, já eram críticos do governo petista desde antes”, diz Alonso.
Para a professora, o governo Dilma não compreendeu bem a presença da direita em 2013 e não soube responder aos anseios desse campo.
Ela lembra que a presidente se reuniu, naquele momento, com integrantes do MPL e líderes estudantis, e acenou com um aprofundamento das políticas sociais do seu governo, mas não trouxe resposta para demanda de segmentos conservadores, como a oposição aos direitos homossexuais ou à Comissão Nacional da Verdade.
Alonso reconhece, porém, a dificuldade do governo em atender e conciliar agendas, às vezes tão antagônicas, dos campos progressista e conservador.
“Talvez uma gestão mais negociada dos protestos tivesse amainado um pouco o processo, mas não sei se mudaria o seu curso”, avalia.
De junho à tomada das ruas contra Dilma em 2015
Roberto Andrés, da UFMG, analisa o que aconteceu no intervalo temporal entre os atos de junho e a mobilização mais forte de grupos de direita, como Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua e Revoltados Online, que lideraram atos pelo impeachment de Dilma, principalmente entre 2015 e início de 2016.
“O que vem depois de junho, não é abril de 2016 (quando a Câmara aprova o impeachment), mas julho (de 2013)”, ressalta.
Segundo ele, foram movimentos à esquerda que dominaram às ruas logo após junho, com um grande ciclo de ocupações de Câmaras Municipais, greves de professores e protestos contra a realização da Copa do Mundo.
E, do ponto de vista eleitoral, diz ele, os atos de junho não impulsionaram inicialmente expoentes da direita na corrida pela disputa presidencial de 2014, mas nomes como Marina Silva e Joaquim Barbosa.
“A figura da Marina Silva representava uma certa confluência das reivindicações por mais serviço público de qualidade, com combate à corrupção e uma política econômica mais estrita”, analisa.
No entanto, ao longo da corrida eleitoral, Marina perdeu fôlego (ela saiu como candidata à vice-presidente de Eduardo Campos pelo PSB e assumiu a cabeça de chapa com sua morte), e a polarização entre PT e PSDB se repetiu mais uma vez, com vitória apertada de Dilma sobre Aécio Neves.
“Os movimentos de esquerda foram muito reprimidos pela polícia e deixam as ruas após a Copa do Mundo, de certa maneira aniquilados. Aí vem a eleição e também faz um aniquilamento da alternativa eleitoral, que era a Marina, que sofre uma campanha muito violenta (da campanha petista)”, analisa.
“Então, cria-se um vácuo de ruas que depois passa a ser ocupado pelo MBL, por esses atores que eclodem após o segundo turno eleitoral. Fazer essa cronologia de forma adequada ajuda a tirar esse achatamento que está sendo feito, como se os protestos de 2015 fossem uma continuidade de junho e não uma fase nova depois dessa repressão muito forte contar as brasas que seguiam depois do ciclo de manifestações”, reforça.
Mas isso não significa que não haja conexões entre 2013 e os atos do impeachment, ressalta Andrés, reconhecendo que aquele junho serviu de estímulo para mais pessoas ocuparem as ruas.
“E havia uma energia antissistema de insatisfação que por algum momento foi canalizada naqueles movimentos que lideraram principalmente junho. Depois essa energia antissistema ficou órfã e foi capturada com outras chaves”, ressalta.
Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas na Universidade de São Paulo (USP), aponta também pontos de conexão entre os atos de 2013 e a dimensão tomada nos anos seguintes pela Lava Jato, operação que é vista como um elemento importante na queda de Dilma e na eleição de Bolsonaro, devido ao forte desgaste que escândalos de corrupção revelados na Petrobras e outras empresas e obras públicas trouxeram para siglas tradicionais como PT, MDB, PP e PSDB.
Pesquisas de opinião conduzidas à época, lembra ele, mostraram que as reivindicações da segunda metade de junho, quando os protestos se ampliam e se diversificam, tinham um braço social (redução da tarifa de transporte e melhores serviços de saúde e educação) e um braço anticorrupção, inclusive que refletia o longo julgamento do escândalo do Mensalão em 2012.
“Então você tem o julgamento do Mensalão, você tem o começo da operação Lava Jato. Tudo isso mobiliza essa insatisfação que tinha explodido em junho. E aí lideranças de direita vão explorar isso, vão dar direção política a isso”, nota Ortellado.
Ele, porém, também critica leituras simplistas sobre junho de 2013.
“Muitas vezes, principalmente grupos da esquerda institucional do PT, que têm uma leitura muito negativa de junho, atribuem os protestos anti-Dilma e a própria eleição do Bolsonaro aquilo (junho de 2013). O que eu acho uma forçação de barra, porque, embora essas duas coisas estejam conectadas, elas estão conectadas cheio de mediações”, avalia.
Congresso polarizado e com Centrão fortalecido
Dentro da contestação à política tradicional, Roberto Andrés identifica a política fisiológica, o chamado Centrão, como importante adversário das ruas em 2013. Ele lembra que o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), era um alvo frequente em faixas e cartazes.
Dez anos depois, porém, esse grupo aparece fortalecido, sob a liderança do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), nota o professor da UFMG.
O novo cenário, diz, cria mais desafios para a governabilidade no terceiro mandato de Lula, já que a repartição de ministérios entre siglas aliadas não parece suficiente para consolidar apoio parlamentar, depois que o Congresso passou a controlar diretamente fatias maiores do orçamento federal no governo Bolsonaro.
Na leitura de Andrés, uma série de governos de Executivo fraco – um processo que vem de Dilma, passa por Michel Temer e culmina em Bolsonaro – acabou ampliando o poder dos partidos fisiológicos no Parlamento.
“Como Bolsonaro não fazia política (tradicional), ele estava bancando o antissitema, ele precisava entregar mais para esses grupos para manter a governabilidade. Então, entregou o Orçamento Secreto, aumento de emenda parlamentar. Foi entregando mais para o Congresso, para ele poder continuar operando a maneira dele”, afirma.
“E agora que a pasta de dente saiu do tubo, é bastante difícil para o governo seguinte voltar ao que era em 2010 (final do segundo governo Lula). E a disputa da semana (passada, em que Lula enfrentou dificuldades para aprovar a reestruturação dos ministérios no Congresso) me parece ser sobre isso”, acrescenta.
Pablo Ortellado, da USP, nova que o Parlamente brasileiro ganhou uma nova cara pós-2013 e, refletindo a sociedade, está mais polarizado, o que também dificulta as negociações políticas.
“Essas forças novas que emergiram (no Congresso) devem muita a 2013. Hoje temos muitas lideranças que são, com muitas aspas, da nova política. A gente está falando, por um lado, dos novos políticos do PL (partido de Bolsonaro), mas a gente também está falando dos novos políticos do PSOL, do partido Novo, até políticos de centro como a Tabata”, exemplifica.
“Houve muita renovação na política dessas forças novas que vieram impulsionadas por uma insatisfação com o status quo de junho. E esse novo Congresso ele tem muito uma cara do Brasil pós junho. Ele não seria muito concebível em 2012”, reforça.
Fonte: BBC