Hoje, Brasil tem políticas desarticuladas para o setor, que acabam sendo concorrentes, não complementares. Pesquisador propõe série de medidas para uma abordagem única – reafirmando a centralidade do trabalho na saúde e o papel estratégico do SUS
Por Diego de Oliveira Souza, autor convidado
Analisar a saúde do trabalhador e da trabalhadora (STT) é olhar para um objeto em paralaxe. A depender do lugar do qual o sujeito observa, o objeto assume posições e imagens distintas. Nessa analogia, como o objeto é de caráter social, o observador (sujeito coletivo) é atravessado por interesses de classe, saiba ele ou não. Se o ponto de partida (de vista) é uma perspectiva afim aos interesses de empresários industriais ou do agronegócio, de grupos financeiros e outros segmentos da burguesia, interessa olhar para esse objeto como um fator no processo produtivo, a ser manejado pela própria burguesia ou por agentes a seu serviço, para garantir a produtividade.
Por esse olhar, constata-se a predominância de uma ideia de saúde restrita ao local de trabalho, analisada a partir da mensuração de riscos ocupacionais, associados a tempos de exposição para determinar limites de tolerância, com pouca ou nenhuma participação dos(as) trabalhadores(as). Além disso, implementam-se medidas protetivas que incidem como forma de controle dos ambientes e dos corpos dos(as) trabalhadores(as), sem a preocupação de alteração do processo em si. No Brasil, é emblemático o caso dos Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT’s) que, a serviço das empresas que os contratam, atuam de forma a equalizar a questão da saúde em prol da produtividade da empresa. Muitas vezes, ações como a realização de exames laboratoriais de caráter admissional, periódico ou demissional se constituem em processos humilhantes, coercitivos e de controle sobre os corpos dos(as) trabalhadores(as), reificados(as).
Essa perspectiva não pode ser chamada de STT, entendida como campo científico e político-institucional, pois esse campo, historicamente, é forjado em consonância às experiências operárias, em aliança com técnicos de saúde que assumem uma postura crítica ante os modelos hegemônicos (medicina do trabalho e da saúde ocupacional). Isto é, consiste em uma outra forma de olhar (e intervir) sobre a relação trabalho-saúde.
Na ontogênese da STT, no Brasil, temos as fecundas experiências dos Programas de Saúde do Trabalhador (PST’s) nos anos 1980 e 1990 e que, em considerável medida, influenciaram o que se tem, atualmente, na Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast). Nessa mudança de posição, surge um olhar específico sobre a relação trabalho-saúde, entendida como objeto a ser explicado e transformado pelos(as) próprios(as) trabalhadores(as). Portanto, delegar o papel de sujeito das ações de saúde no trabalho (ou relacionadas a ele) aos patrões ou aos técnicos de saúde que os representam, é uma violência contra a STT, por (e do) princípio.
Convém destacar que, no interior da Renast, os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest’s) seriam o equivalente histórico dos PST’s, cabendo-lhes a responsabilidade por pensar, executar, difundir e oferecer suporte ao conjunto de serviços de saúde no interior do Sistema Único de Saúde (SUS), no que diz respeito às ações de STT, de modo que essa questão esteja presente em todos os âmbitos da atenção à saúde, com protagonismo dos(as) trabalhadores(as). Apesar desse propósito, a STT ainda não possui substancialidade em todas as instâncias do sistema de saúde, quando não, mais gravemente, é efetivada a partir dos olhares hegemônicos. Mesmo a partir do olhar do campo da STT, as nuances oriundas da paralaxe têm criado um mosaico de fragmentos dispersos e, muitas vezes, incorporando fragmentos provenientes de olhares antagônicos. Essas variações e colagens contraditórias influenciam as políticas correlatas à STT e, por isso, são imprescindíveis para as análises nessa seara.
Nesse texto, trazemos uma breve contribuição à paralaxe da STT no Brasil, com o objetivo de refletir sobre os limites e as possibilidades para esse campo, no bojo do SUS. Primeiro, reafirmamos o fundamento de nossa análise e que define o nosso ponto de observação. Posteriormente, problematizamos certas insuficiências e/ou distorções na implementação desse campo. Por fim, apresentamos uma prospecção dos caminhos possíveis (ou, ao menos, necessários) para a STT, em coerência ao fundamento sobre o qual constituímos nossa observação.
O fundamento para uma observação crítica: o trabalho como categoria central
É bastante conhecida a tese marxiana de que o trabalho é a atividade central para qualquer organização social. Em O capital, Marx, além de ratificar esse entendimento, realiza uma análise exaustiva da sociedade capitalista como resultado da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. Marx demonstra o porquê de o modo de produção capitalista desenvolver as forças produtivas (logo, produzir riqueza) como nunca, ao mesmo tempo em que gera uma grande massa de trabalhadores(as) pauperizados(as) e imersos(as) em diversas mazelas sociais, inclusive em um contundente adoecimento.
Essa tese foi incorporada pela STT, a exemplo dos primeiros debates dos intelectuais orgânicos do movimento operário italiano nas décadas de 1960 e 1970 (Maccaro, 1984; Berlinguer, 1983) e, mais à frente, em diálogo inserido na medicina social latino-americana/saúde coletiva, a exemplo do texto pioneiro de Laurell e Noriega (1989) 6 . Com mais ou menos presença, essa tese persiste nos escritos e ações mais recentes, embora com cada vez mais sincretismo teórico-metodológico.
Não é nosso objetivo voltar aos pormenores dessa tese ou aos textos pioneiros de nosso campo, mas essa breve menção contribui para sustentar o nosso argumento de que o campo da STT deve ter substancialidade no âmbito do SUS. Sumariamente, é preciso destacar que o trabalho é central para a vida social não porque Marx assim o elegeu, mas porque o processo histórico revela que, antes de qualquer coisa, a vida social depende de os seres humanos produzirem os seus meios de subsistência e de produção, a partir da transformação da natureza. Isto é, o “laboratório” da história oferece as provas empíricas de que o trabalho é o ponto de partida da vida social. Lukács (2013) aprofundou esse argumento, no sentido de postular uma ontologia que demonstra que o trabalho é a categoria fundante do ser social, logo, a substância de qualquer complexo social.
Essa tese não significa que a vida humana se resuma ao trabalho. Ao contrário, o resultado do trabalho vai além de seu produto (valor de uso), mas resulta na complexificação humana, o que implica o surgimento de novas possibilidades, necessidades e atividades. Como seres coletivamente mais complexos, poderíamos enriquecer nosso tempo com diversas práxis para além do trabalho, mas, contraditoriamente, trabalhamos cada vez mais. Essa condição resulta do caráter explorado e alienado do trabalho, produtor de desigualdade e de um abismo entre os indivíduos (reificados) e a plenitude do gênero humano.
Ora, se o trabalho é a substância de qualquer complexo social e, como já demonstrou a medicina social latino-americana/saúde coletiva, a saúde é determinada socialmente, o trabalho também é o fundamento para o complexo social da saúde. Nessa perspectiva, o trabalho não cumpre o papel de ser mais um entre tantos determinantes sociais da saúde, mas representa o âmago do processo de determinação social. Esse olhar é tanto mais preciso quanto mais nos aproximamos da saúde em uma perspectiva de (luta de) classe. Ou seja, é olhando para a saúde da classe trabalhadora que ganha pujança a tese de que o trabalho também é central para entender e transformar a saúde, não por uma escolha nossa, mas pelas evidências dadas pela história.
Um olhar diferenciado para um objeto é pouco útil se ele não for fundamento para a ação, movimento. Na saúde, isso implica fomentar e executar ações e serviços de saúde (individual e coletivamente), especialmente estruturados no bojo de políticas sociais públicas. No Brasil, quando se trata de STT, essa articulação entre teoria e prática ganha contornos mais evidentes no SUS, ainda mais porque esse campo consta Lei Orgânica da Saúde 8.080/1990, Capítulo I, artigo 5º, com um dos objetivos do sistema. Na mesma lei, mais à frente, explicita-se que
entende-se por saúde do trabalhador, para fins desta lei, um conjunto de
atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e
vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim
como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores
submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho.
Enquanto (macro)política de saúde, o SUS se constitui de um movimento que entendia o trabalho como central e que, de alguma forma, contribuir para uma maior visibilidade da STT. No entanto, diante dos projetos em disputa no desenrolar da história, o campo da STT está longe de ter sido institucionalizado como substancial na estrutura do sistema. Sintomático desta condição é o fato de, apesar da Lei Orgânica da Saúde 8.080/1990 e apesar da criação da Renast em 2002, uma política para STT só passou a vigorar na segunda década dos anos 2000, mesmo assim refletindo conflitos históricos entre as diferentes perspectivas que pairam sobre a relação trabalho-saúde. Emblemático desses conflitos é a existência de um Decreto que institui a Política Nacional de Saúde e Segurança do Trabalhador em 2011, expressando um mosaico que incorpora elementos da medicina do trabalho/saúde ocupacional e, em 2012, ser publicada a Portaria do Ministério da Saúde n. 1.823 11 , que institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora.
Consoante análise (ainda atual) de Fadel de Vasconcellos,
Ao erigir duas políticas de saúde do trabalhador, o Estado brasileiro assumiu sua intenção de ter NENHUMA política de Estado para a área. Quem tem duas não tem uma. Demonstra-se que se cria uma coisa com o SUS e outra coisa no SUS. É nenhuma política de Estado porquanto fragmenta, t itubeia,virtualiza, mostra um Estado partido e envergonhado de assumir uma direcionalidade una de suas estruturas. Como resposta contra-hegemônica a este “buraco” político do Estado, existe uma política de fato (mais propriamente um conjunto de ações de fato) no âmbito do SUS, mas compreensivelmente débil, frágil, pontual e pouco resolutiva, a despeito do esforço feito pela Coordenação Nacional de Saúde do Trabalhador do SUS e por uma parcela expressiva da Renast (VASCONCELLOS, 2013, p. 180).
Considerando que a STT é um ponto histórico de ruptura ante a medicina do trabalho/saúde ocupacional, a PNSTT se constitui como seu baluarte político-institucional, fortalecendo a Renast e abrindo novas possibilidades no âmbito do SUS. Porém, trata-se de perspectiva contra-hegemônica e, como tal, depara com uma dinâmica que não lhe favorece, ainda mais porque o SUS como um todo é alvo de constante tensão do projeto contrarreformista de base neoliberal. Também como expressão dessa conflituosidade, a Renast, logo, os Cerest’s, demonstram-se limitados em sua tarefa de estruturarem a STT no SUS. Para Leão e Vasconcellos (2011, p. 93),
A Renast, assim, encontra dificuldades em sua estruturação como rede. Para se chegar a essa conclusão, nossa reflexão se baseia nos seguintes pontos de crise da Renast: 1) a ausência de uma concepção de integralidade; 2) a ênfase desproporcional em uma das partes da atenção – o assistencialismo; 3) a ausência de mecanismos visceralmente mais sólidos e compulsórios de articulação e comunicação; 4) a heterogeneidade da inserção institucional dos centros de referência; 5) o reconhecimento impróprio dos membros dos Cerest em relação a seu papel; e 6) a ausência de uma missão estruturante.
Embora Renast confira maior visibilidade à relação trabalho-saúde, possui lacunas internas e pouca integração às demais políticas de saúde, o que contribui para um certo deslocamento da categoria trabalho, do centro à periferia da análise e das ações do sistema. Com efeito, revela-se o constrangimento da paralaxe ora em análise, pois mesmo dentro de um campo permeado pelo pensamento crítico (a saúde coletiva, logo, o próprio SUS), olha-se a esmo para aquilo que deveria ser o foco da observa(ação).
Avanços e insuficiências: um mosaico de incoerências
Apesar dos problemas sabidamente existentes na STT, não se pode dizer que a Renast e a PNSTT deram errado. Enquanto marcos da STT no Brasil, elas representam um ponto de ruptura ante as práticas biomédicas da medicina do trabalho e da saúde ocupacional. Contribuíram para trazer o debate sobre o processo de trabalho como algo que subjaz os riscos e as doenças. Mais do que isso, desde os PST’s, a construção desse campo demonstrou ser possível trazer a classe trabalhadora para a efetivação das ações de saúde, a exemplo do que acontece em algumas experiências de vigilância em saúde do trabalhador (Visat).
A integração entre Visat, estabelecimento de diagnóstico (nexo causal) e outras dimensões de atenção à saúde é um princípio estruturante da PNSST. Se é verdade que ainda se adoece e morre pelo trabalho (dentro e fora dos locais de trabalho) em patamares equivalentes ao de uma guerra, também é verdade que muitos casos têm a relação com o trabalho agora revelada, condição outrora negada e, até hoje, passível de distorção quando fica à mercê de serviços diretamente controlados pela burguesia, a exemplo do SESMT. Cada caso em que se consegue evidenciar o trabalho como ponto fulcral do adoecimento; ou cada caso em que essa relação demonstrada dispara uma cadeia de ações que visam transformar, em algum nível, os processos de trabalho; é muito representativo da força e resistência da STT em face das perspectivas que apenas estão preocupadas com a produtividade/lucratividade.
Se não se pode dizer que a PNSST e a Renast deram errado, também não se pode dizer que são suficientes. Por um lado, é imprescindível defender a PNSTT, por outro, não se pode fetichizar essa defesa. Por coerência ao fundamento que defendemos na seção anterior, entendemos que a PNSTT e a Renast são insuficientes em qualquer contexto, mesmo em um cenário favorável para a efetivação do que elas propõem. Seja como política ou rede, a STT institucionalizada no SUS assume contornos de campo ou setor, o que por si só se constitui em um limite. Ainda que seja um campo ou setor recheado de pensamentos críticos e ações transformadoras, sua existência enquanto campo pressupõe os atos prévios de separação epistêmico-metodológica (e especialização), para depois tentar integrar. Seu ponto de partida é o fato de existir uma dada fragmentação para depois colar os fragmentos, em um mosaico no qual se pode ter de tudo, inclusive peças indesejadas.
A nosso ver, é preciso mudar o ponto de observação da STT em paralaxe, invertendo a relação constituída em face desses atos pressupostos. Assim, o ponto de partida deve ser a relação trabalho-saúde, como substancia da qual os outros campos e setores se constituirão (ou se relacionarão), salvaguardando suas particularidades. Por esse prisma, a STT deve estar contida, em algum grau, em todos os demais campos. O SUS não seria apenas um sistema que possui uma política particular de STT, mas seria ele mesmo uma macropolítica de saúde da (e para) a classe trabalhadora. Nessa perspectiva, a STT não resultaria de sua separação dos outros campos, fazendo-lhe um campo especializado que depois tenta se integrar ou articular uma rede de fragmentos, mas se materializaria como o pressuposto, ou a base, da integração de todos os campos/setores, porquanto seja o campo que lida primordialmente com a relação trabalho-saúde.
Nessa perspectiva, não estamos entendendo a STT como um campo que lida com a relação trabalho-saúde apenas dentro dos locais de trabalho, mas que lida com a saúde de trabalhadores e trabalhadoras que chegam em casa, que estão nos diversos espaços da vida social, vivendo situações que são determinadas pelo trabalho e que trazem essas vivências, também, para dentro dos locais de trabalho. O trabalhador que chega em casa, na igreja ou na praça é o mesmo que está na fábrica, na lavoura ou no comércio. Ele não pode ser dicotomizado, nem o trabalho pode ser visto como um mero processo técnico (recheado de riscos) que se confina ao “chão da fábrica”. Se assim for, estaremos algo muito próximo do que fazem a saúde ocupacional ou a medicina do trabalho e ignorando a condição substancial do trabalho para a vida em geral.
Confinada como política particular dentro de um sistema que ainda não conseguiu assumir o trabalho como categoria central, a STT não consegue enfrentar a saúde dos(as) trabalhadores(as) como questão ampla, deixando dimensões dessa questão suscetíveis a outras lógicas de (não) enfrentamento, em campos que, por vezes, trilham caminhos opostos. É nessa dinâmica que as insuficiências e distorções da STT ganham amplitude e retroalimentam a espiral que empurra, como uma força centrífuga, a STT para a periferia do sistema.
Contribuições preliminares para uma guinada: rumo à substancialidade
A fim de prospectar estratégias que contribuam para uma mudança de perspectiva e de posição do próprio objeto em observação, é necessário algum pragmatismo. Nesse sentido, buscamos depreender aspectos das insuficiências e distorções que incidem sobre a STT. A partir deles, problematizamos caminhos a serem percorridos. Vejamos tais aspectos:
1) As diferenças de rumos (e conflitos) entre áreas do Estado e/ou Governo que lidam com a relação trabalho-saúde, histórica e notadamente entre Ministério da Saúde e Ministério do Trabalho: se dentro do SUS há forte presença de elementos da medicina do trabalho e da saúde ocupacional, fora dele, a forma como a relação trabalho-saúde é tratada perpassa estruturas hierárquicas que execram a classe trabalhadora do seu papel de protagonista. A visão predominante nas fiscalizações e outras ações das instâncias do Ministério do Trabalho ou de setores do judiciário passa longe de uma crítica ao modo de produção como base de processos de trabalho degradantes. Esses setores, inclusive, constituem uma certa disputa com o campo da saúde, no sentido de acumular poder – ou a sensação de (pseudo)poder, uma vez que o poder de fato continua nas mãos do capital – e determinar a direção das ações de saúde no mundo do trabalho.
Muitas vezes, embora os Cerest’s consigam entrar nos locais de trabalho, identificar problemas e planejar estratégias de enfrentamento às atrocidades do capital, certos processos escapam ao seu escopo de atuação e demandam um certo alinhamento com outras áreas, a exemplo do próprio Ministério do Trabalho, para lograr um impulso aos processos de transformação.
Por conta disso, mais do que uma política de saúde particular, é preciso tensionar o Estado brasileiro a criar uma (macro)estratégia que permita o envolvimento de todas as pastas com a STT, articuladas a partir da centralidade do trabalho. Porém, tal envolvimento deve ser de acordo com uma dinâmica que reserve ao SUS o papel de ordenador dos processos, pois é nele que genuinamente está situada a STT.
Obviamente, esse alinhamento dos setores do Estado perpassa a luta contra a hegemonia neoliberal e, portanto, não consiste em mera tarefa burocrática, mas perpassa a luta de classes e demais lutas sociais. Questões cruciais precisam ser enfrentadas, porquanto não seja possível o fortalecimento substancial da STT com medidas neoliberais que precarizam o trabalho ou que desmontam o SUS, a exemplo das alterações da Consolidação das Leis Trabalhistas ocorridas em 2017, o avanço desregulamentado do trabalho controlado por plataformas digitais ou os variados mecanismos de ajuste fiscal que implicam desfinanciamento para o SUS.
2) A reprodução do modelo privado dos SESMT’s, muitas vezes entendido como algo que deveria ser integrado à STT, desconsiderando sua incompatibilidade ideopolítica com esse campo: os SESMT’s estão constituídos em um paradigma distinto da STT, pois estão diretamente subordinados à empresa que explora e degrada a saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras que atendem. São serviços que expressam o controle do capital sobre o trabalho na dimensão da saúde, no sentido de capturar o corpo e a mente dos trabalhadores e das trabalhadoras, efetivando ações de saúde no limiar que permita que eles sejam produtivos ou, quando não, substituídos.
Não se trata de juízo técnico ou ético a respeito dos profissionais que fazem parte dos SESMT’s, mas de entender o que sua lógica representa. Sua integração ou, até mesmo, seu diálogo com os Cerest’s é de difícil concretização, pois, a rigor, partem de perspectivas antagônicas. Esse diálogo algumas vezes se torna possível muito mais pelas concessões ou distorções por dentro da STT, que passa a atuar na lógica da medicina do trabalho.
Um horizonte coerente à STT seria a substituição do modelo de SESMT por outro que permitisse maior integração com os Cerest’s, com maior ingerência do Estado, obviamente sem isentar a responsabilidade das empresas no fomento desses modelos e da responsabilização pelos danos que venham a causar na saúde dos(as) trabalhadores(as). A regulação do Estado, mais precisamente do SUS, sobre essa substituição perpassa a questão tratada anteriormente, no sentido de alinhar direções de pastas como saúde, trabalho, previdência, economia e outras.
3) Na tentativa de mitigar os conflitos, retirar os limites ou integrar (aquilo que é incompatível), a STT acaba incorporando (ou sendo invadida) por preceitos e práticas típicas da medicina do trabalho e/ou saúde ocupacional ou, até mesmo, ficando subordinada a elas: tratamos um pouco desse aspecto quando falamos de uma suposta (e pseudo) integração entre STT e SESMT’s. Na verdade, ao colar fragmentos antagônicos ou aceitar fazer composições com representantes do polo hegemônico, a tendência é constituir correlações de forças que implodem o projeto contra-hegemônico.
A força histórica do modelo biomédico na saúde é tamanha que mesmo dentro do SUS prevalece o enfoque nas doenças em vez da saúde, reproduzindo o histórico de hegemonia de algumas profissões sobre outras, o que acaba empobrecendo e distorcendo a proposta de atenção à saúde integral, para além do curativismo e do preventivismo. No campo da relação trabalho-saúde essa condição está expressa pela medicina do trabalho e sua hegemonia precisa ser combatida por aqueles que defendem um projeto da classe trabalhadora para a classe trabalhadora.
Um modelo que substitua os SESMT precisa ser construído coletivamente, é nossa tarefa propô-lo, com protagonismo da classe trabalhadora e, do ponto de vista da estrutura estatal, abrigando-o na estrutura do SUS, obviamente com o apoio estrutural de outros setores.
4) Com a predominância da medicina do trabalho, a participação dos(as) trabalhadores(as) como protagonistas das ações tem sido incipiente. Nos próprios Cerest’s, a ação articulada aos sindicatos e movimentos sociais ocorre de forma pontual e provisória: é preciso reaproximar a STT institucionalizada e a classe trabalhadora. Os Cerest’s assim como um modelo que venha a substituir os SESMT’s devem ser ocupados por trabalhadores(as), exercendo o que se convencionou chamar de controle social na saúde.
Premissas como a que defende que não se pode fazer Visat sem que seja uma ação direta dos(as) trabalhadores(as) devem ser recuperadas, pois historicamente estiveram presentes nas experiências de alguns PSTs. O modelo de Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipa’s) deve ganhar uma outra dimensão, a partir do momento que os SESMT’s sejam extintos e que haja um alinhamento sobre os aspectos da questão da saúde dos trabalhadores no Estado, desde o olhar do SUS. De alguma forma isso vale para as Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador (CIST’s), que muitas vezes são espaços esvaziados dentro de conselhos que, por sua vez, já são muito fragilizados. Espera-se que, na medida que a STT seja a substância do sistema, os próprios conselhos de saúde possam conferir maior relevância à relação trabalho-saúde.
5) Reproduz-se mecanismos de notificação que mais contribuem para o ocultamento do que para o desvelamento da real dimensão do adoecimento pelo trabalho: Novos mecanismos de notificação, submetidos ao controle social, devem ser concretizados, pois as Comunicações de Acidente de Trabalho (CAT’s) já se mostraram muito suscetíveis as manipulações das empresas, assim como as notificações no âmbito do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM) têm se revelado incipientes, de alguma forma refletindo a invisibilidade da STT nos demais setores internos e externos ao SUS.
As CIPA’s, conselhos de saúde (ou suas CIST’s), conselhos de fábrica, associações, sindicatos, coletivos, cooperativas de trabalhadores, fóruns, entre outros, devem exercer um papel mais eminente no processo de notificação, até como reflexo de seu protagonismo na Visat em geral. O debate sobre o que tem sido chamado de vigilância popular em saúde parece despontar como um caminho fecundo para (re)fazer essa viagem.
6) A formação acadêmica e política em STT se mostra incipiente: é decisivo que se ampliem os cursos de formação em STT nos sindicatos, movimentos e congêneres. Da mesma forma, no âmbito acadêmico, é preciso fazer com que a STT seja substancial nas graduações de saúde, uma vez que hoje são tratadas de forma pontual e, na maioria das vezes, como área de especialização. Dessa forma, mais se aborda saúde ocupacional e medicina do trabalho do que STT.
A rigor, a formação acadêmica pressupõe o caráter político, uma vez que na STT essas dimensões estão imbricadas a ponto de não serem passíveis de dissociação. Trazer os(as) trabalhadores(as) para dentro das universidades e, no caminho inverso, fazer com que os professores, pesquisadores e profissionais estejam dentro dos sindicatos, fóruns, frentes, movimentos sociais em geral, contribuirá para fortalecer essa determinação recíproca.
Os Cerest’s podem ser um terreno fértil para esse encontro, sendo articuladores de uma grande escola de STT, inclusive integrada à atenção primária e demais setores do SUS, independentemente do nível complexidade.
O âmbito strictu sensu precisa estar alinhado a essa guinada. Cada vez mais contaminado pelo produtivismo, pela perspectiva biomédica e pela epidemiologia tradicional, as pesquisas em STT devem seguir o princípio do protagonismo dos(as) trabalhadores(as), realçar o trabalho como substância e a determinação social como processo dialético. Mestrados e doutorados em STT devem ser encorajados e fomentados, a fim de darem suporte à reformulação da abordagem nas graduações e contribuírem no processo de formação em geral, inclusive nas entidades que representam os(as) trabalhadores(as) em luta. Obviamente, esse processo subsidiará quadros para exercerem o controle social, nos novos rumos aqui defendidos, assim como cargos de gestão na estrutura estatal.
7) A falta de organicidade do trabalho (ou da relação trabalho-saúde) nas outras políticas de saúde particulares (a exemplo das políticas nacionais de atenção integral à saúde da mulher, criança, adolescente, idoso, etc.): esse processo de reformulação perpassa a revisão de todas as políticas, a fim de incorporarem ou fortalecerem (quando já incorporada) a STT. O alinhamento dessas políticas com a ideia de que qualquer grupo ou fase da vida está, de alguma maneira, relacionada ao trabalho, pode contribuir
para, sem anular as particularidades de cada grupo social, enxergá-los como trabalhadores(as), como sujeitos excluídos do mundo do trabalho, que orbitam em torno (ou que dependem) de trabalhadores(as), na família ou na comunidade ou em outras condições que evidenciam, de alguma maneira, a centralidade do trabalho.
Obviamente, esse caminho requer fortalecer a integralidade da atenção à saúde, direcionando, efetivamente, as políticas para a ênfase na promoção da saúde (que depende de transformações estruturais nas quais o trabalho é a peça-chave), mas sem esquecer das demais esferas de atenção, inclusive a esfera curativa. Todas as esferas devem ser fortalecidas: os hospitais e a tecnologia dura, em geral, devem ser de qualidade e robustos, mas não podem tomar o sistema de saúde como refém. Um sistema que, desde a atenção primária, esteja voltado para o trabalho (tanto no sentido dos locais de trabalho, quanto das implicações do trabalho na sociedade em geral) é imprescindível para essa transformação.
8) A incipiência de outras nuances sociais (etnia, questões da população lgbtqia+, entre outras) no interior da PNSTT: se é verdade que todos os setores do SUS precisam incorporar a STT como substância, a STT precisa está mais atenta as nuances que particularizam os diversos grupos sociais. Por exemplo, a forma como negros e negras são explorados e adoecem no ou pelo trabalho é distinta de como isso se dá em brancos e brancas.
É ocioso dizer que isso perpassa a maior representação desses grupos sociais nos espaços da STT, na maioria das vezes ocupados por médicos, brancos e de “classe média”.
9) A dificuldade de efetivar a atenção primária à saúde articulada à STT: há quem defenda, dentro da STT, que esse campo deva ser mesmo uma especialidade e que os Cerest’s, portanto, devam ser centros de atenção especializada. Parecem se apoiar em muletas para sustentar um fugaz status de especialista que em nada combina com a essência da STT. Um dos argumentos é que a complexidade da tarefa de relacionar o trabalho e a saúde é tamanha que ela não pode escapar das mãos dos especialistas. Leia-se, quase sempre, médicos adestrados no modelo biomédico em escolas atoladas no positivismo.
Se relacionar o trabalho e a saúde é tarefa ainda hoje complexa, a ponto de, por exemplo, não poder ser bem-feita por um profissional de saúde da atenção primária, isso mostra a falência de um sistema, incluindo o processo de formação. Em algum grau, revela certo fracasso dos Cerest’s em serem núcleos irradiadores da STT no SUS. Mas, sobretudo, revela como a STT (Cerest’s inclusos) são vítimas de um sistema que é impelido a ocultar a categoria trabalho dos processos.
10) O apagamento da centralidade da categoria trabalho na saúde: essa questão sintetiza e explica as demais já abordadas. Como qualquer processo social, esse apagamento tem um pano de fundo ideológico, aqui ainda mais evidente (embora a paralaxe possa distorcer a imagem): tenta-se, no fundo, apagar a luta de classes; tenta-se propagar a ideia do fim do trabalho, pois seríamos apenas homens ou mulheres, de variadas etnias, capazes de perseguir nossos objetivos individuais, com criatividade, postura empreendedora e desenvolvimento tecnológico. Apoiados na tecnologia, não deveríamos mais falar de exploração ou de luta de classes, no máximo de inclusão, mas dentro daquele limite que sirva de marketing para o capital e não ameace o âmago do sistema. Em uma ilusória harmonização dos interesses individuais, refundaríamos a sociedade (do conhecimento, da tecnologia etc.), sendo capazes de, a partir dela, dar respostas aos dilemas que nos afligem.
Essas elucubrações só interessam à classe capitalista e aos modelos científicos e profissionais que se nutrem de suas migalhas. Cria-se uma imagem ilusória da realidade social, com cada vez mais mazelas sociais, formas sofisticadas de exploração, precarização do trabalho, pauperismo relativo e absoluto, degradação da natureza, entre outros problemas que têm suas raízes fincadas no modo de produção (logo, no trabalho).
Sem luta de classes e aceitando essa falsa imagem, as tarefas acima mencionadas, que por si só são de difícil operacionalização, tornam-se impossíveis. Na luta de classes, essas tarefas se tornam, ao menos, uma utopia que nos faz lembrar Eduardo Galeano, inspirado em Fernando Birri: “a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” (GALEANO, 2001, p. 230) 16 . Embora estejamos em uma paralaxe vertiginosa, lutemos pela utopia da categoria trabalho como substância do SUS!
Fonte: Outra Saúde