Pelo menos mais de 1500 pessoas morreram desde os inesperados ataques do grupo islâmico palestino Hamas contra o sul de Israel no sábado (7/10) e os bombardeios retaliatórios israelenses na Faixa de Gaza, reacendendo um conflito que passou a dominar o noticiário internacional.
E a mais de 16 mil quilômetros dali, no Brasil, esse conflito alimentou a já conhecida polarização entre a esquerda e a direita no país.
Nas redes sociais, políticos de direita como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que nos últimos anos associou sua imagem à defesa do Estado de Israel, associou o Hamas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em suas redes sociais Bolsonaro citou o fato de o grupo ter parabenizado Lula por sua vitória nas eleições de 2022.
“Pelo respeito e admiração ao povo de Israel repúdio o ataque terrorista feito pelo Hamas, grupo terrorista que parabenizou Luís Inácio Lula da Silva quando o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) o anunciou vencedor das eleições de 2022”, disse Bolsonaro.
O ex-juiz da Operação Lava Jato e senador Sergio Moro (União Brasil-PR) seguiu a mesma linha e criticou uma nota divulgada pelo governo federal que condenou os ataques do grupo militante, mas não citou o nome do Hamas.
Em suas redes sociais, porém, Lula disse, no sábado, ter lamentado as mortes e classificou os ataques feitos pelo Hamas como “terroristas”.
“Fiquei chocado com os ataques terroristas realizados hoje contra civis em Israel, que causaram numerosas vítimas. Ao expressar minhas condolências aos familiares das vítimas, reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas.”
Apesar disso, ainda na esquerda, influenciadores digitais e políticos como o ministro das Comunicações, Paulo Pimenta, deram declarações vistas por oposicionistas como demonstrações de apoio ao Hamas.
“A ocupação prolongada dos territórios Palestinos e a incapacidade das fóruns internacionais em fazer cumprir as resoluções da ONU são o pano de fundo para compreendermos esse novo capítulo de um processo de violências e privações que jamais poderiam ter sido toleradas”, disse o ministro em suas redes sociais.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que, nos últimos anos, houve, em linhas gerais, uma associação entre a esquerda brasileira e a causa palestina de um lado e entre a direita brasileira e a causa judaico-israelense de outro.
Eles explicam que essa vinculação no Brasil tem nuances e não é absoluta, mas reflete, em algum grau, uma tendência internacional. Eles dizem, porém, que essa ligação também tem raízes históricas ligadas tanto à trajetória do conflito israelo-palestino quanto à história recente do Brasil.
História não tão óbvia
Se hoje a direita brasileira é próxima a Israel, a história mostra que isso nem sempre foi assim. É o que sustenta o professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade de Jerusalém, Michel Gherman.
“Nem sempre essa ligação entre judaísmo e direita existiu no Brasil e no mundo. No final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, o que era muito comum era uma forte ligação entre a comunidade judaica e o socialismo. O primeiro partido internacionalista de esquerda foi fundado por judeus da Polônia, Letônia, Estônia e Lituânia. Havia uma visão de que a pauta judaica de emancipação e liberdade também era uma causa cara ao socialismo”, conta Gherman à BBC News Brasil.
“Os principais pensadores socialistas tratavam o antissemitismo como uma pauta reacionária e contrarrevolucionária. Karl Marx falava sobre o antissemitismo, da mesma maneira que (Leon) Trotsky e Lênin”, complementa Gherman.
O professor disse ainda que essa vinculação era tão grande que o Estado de Israel começa, na década de 1940, sob forte influência socialista.
“Não podemos deixar de lembrar que Israel nasceu e implementou experiências socialistas como as moradias coletivas dos kibutz e também recebeu armamentos da hoje extinta União Soviética para se defender dos países árabes contrários à criação do Estado de Israel”, disse Gherman.
No Brasil, a relação entre a comunidade judaica e a esquerda também foi relevante, afirmam historiadores.
“A esquerda no Brasil teve militantes históricos dentro da comunidade judaica. Um exemplo dessa ligação é o fato de que um dos maiores símbolos da luta contra a ditadura foi a morte, exatamente, de um judeu: Vladimir Herzog”, diz a historiadora Monique Sochaczewski, do IDP.
A virada
O Estado de Israel foi criado em 1948 pela Organização das Nações Unidas, três anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, pelo menos seis milhões de judeus foram mortos pelo regime nazista.
O drama vivido pelo povo judeu ajudou a viabilizar o apoio necessário para a criação de Israel. Por outro lado, populações árabes que viviam na região conhecida como Palestina onde foi criado o Estado de Israel ficaram insatisfeitas com a medida, o que resultou em uma série de conflitos nas décadas que se seguiram.
Um deles em particular é apontado pelos especialistas como o momento de “virada” na forma como a esquerda passa a ver a questão judaica: a Guerra dos Seis Dias.
Entre os dias 5 e 10 de junho, Israel lançou um ataque surpresa contra Egito, Síria e Jordânia e aumentou seu território. Do Egito foi incorporada a Península do Sinai. Da Síria, as Colinas de Golã. Da Jordânia, foi incorporada a Cisjordânia. Estimativas apontam que meio milhão de palestinos que viviam nessas áreas viraram refugiados.
“A partir de 1967, com a tomada de territórios ocupados por palestinos, a esquerda passa a ver o conflito de outra forma. A partir dali, a questão palestina passa a ser vista com uma causa entre um opressor, Israel, e um oprimido, o povo palestino. O conflito entre opressor e oprimido está no cerne da linha de raciocínio”, diz o cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Guilherme Casarões.
“É nesse momento que a esquerda começa a ver aqueles judeus vítimas do racismo e da discriminação na Europa atuando como colonizadores dos territórios palestinos ocupados. Isso acaba gerando uma aproximação maior entre os movimentos de esquerda e a causa palestina ao mesmo tempo em que há o afastamento da esquerda com a causa judaica ou com o sionismo, que é o movimento pela criação e manutenção do Estado de Israel”, diz Michel Gherman.
Casarões explica ainda que, na década de 1960, Israel já estava mais alinhada com os Estados Unidos enquanto os países árabes rivais eram militarmente equipados e financeiramente auxiliados pela então União Soviética. “Estavam reproduzindo ali o tabuleiro de interesses da Guerra Fria”, disse o professor.
Desde então, as condições de vida da população palestina vivendo nos territórios ocupados foram denunciadas por organizações que atuam na defesa dos direitos humanos. Em 2022, por exemplo, um relatório produzido por uma comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU disse que a ocupação das áreas habitadas por palestinos seria a causa dos conflitos na região. Israel rebateu o documento classificando-o como “parcial e tendencioso” e baseado em “informações parciais e segmentadas”.
Esse distanciamento de parte da esquerda mundial em relação à causa judaica e a aproximação com a causa palestina também se refletiu no Brasil, dizem os especialistas.
“O Brasil acabou reproduzindo aqui, mesmo com suas particularidades, a divisão ideológica que havia fora do país. Isso acabou levando a uma aproximação de organizações e partidos de esquerda com a causa palestina”, disse Michel Gherman.
Guilherme Casarões diz que essa identificação da esquerda brasileira com a causa palestina continuou ao longo dos anos e influenciou partidos como o PT, que há décadas mantém uma postura de apoio ao povo palestino.
Casarões diz, no entanto, que esse apoio não implica em aceitação de atos como os cometidos pelo Hamas nos últimos dias.
“Em que pese a simpatia da esquerda com o povo palestino, as manifestações dos governos do PT sobre o conflito sempre foram equilibradas. O governo brasileiro, tanto sob Dilma (Rousseff) ou Lula, sempre defenderam a chamada solução de dois Estados, em que Israel e Palestina possam coexistir pacificamente”, diz o professor.
Direita brasileira e Israel
E enquanto, segundo os especialistas, a aproximação da esquerda com a defesa de um Estado palestino começou há pelo menos cinco décadas, a identificação da direita brasileira com o Estado de Israel e o sionismo seria um fenômeno relativamente mais recente, com pouco mais de 30 anos e liderado, em grande medida, pelos eleitores evangélicos.
“A partir dos anos 1980 e 1990, começa a haver uma instrumentalização de alguns símbolos judeus por grupos evangélicos brasileiros. A gente vê isso, por exemplo, em pastores como Silas Malafaia (da Igreja Assembleia de Deus de Madureira) ou Edir Macedo (da Igreja Universal do Reino de Deus). No segundo caso, ele passa até a usar indumentárias semelhantes à de alguns rabinos”, disse Michel Gherman.
“A via de entrada dessa conexão entre judeus e a direita brasileira é uma leitura da Bíblia feita por alguns grupos evangélicos segundo a qual Israel precisa ser protegido para a segunda vinda de Jesus à terra. É uma reprodução de um movimento que começou nos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 e chegou aqui pelas conexões entre essas denominações neopentecostais desses dois países”, complementa Guilherme Casarões.
Os especialistas afirmam que, à medida em que o eleitorado evangélico foi ganhando peso no jogo político brasileiro e foi se alinhando à direita, teria havido uma espécie de “acoplamento” da direita com a defesa do Estado de Israel por um lado. Por outro, haveria uma antipatia desse eleitorado com a causa palestina, identificada com a esquerda no Brasil.
Essa associação ganhou contornos mais intensos nos últimos anos. Nas eleições presidenciais de 2018 e 2022, Jair Bolsonaro era visto, frequentemente, em cultos evangélicos decorados com bandeiras de Israel e símbolos judaicos. Já no governo, ele prometeu, embora não tenha cumprido, transferir a sede da Embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. A promessa foi um aceno ao eleitorado evangélico que votou em peso em sua candidatura.
“Há a construção dessa ideia de um judeu imaginário. E esse judeu é branco, heterossexual, armamentista e de direita. Essa imagem vai ser muito usada pela direita brasileira”, disse Gherman.
Choque de pontos de vista
Casarões avalia que essa aparente divisão entre esquerda e causa palestina de um lado, direita e defesa do Estado de Israel de outro, não seria uma mera “instrumentalização” do conflito no Oriente Médio pelos atores políticos brasileiros.
“Ela reflete duas visões de mundo distintas. De um lado, temos o eleitorado evangélico que enxerga em Israel um ator de uma suposta luta do bem contra o mal. Do outro nós temos a esquerda que vê na causa palestina como uma disputa entre um opressor, Israel, e um oprimido, o povo palestino”, explica.
Para Monique Sochaczewski, essa polarização entre esquerda e direita no Brasil dificulta a compreensão sobre um dos conflitos mais complexos da história recente.
“Acho que falta um pouco de conhecimento sobre a realidade local. Quando a direita se alinha a Israel, ela parece ignorar, por exemplo, que lá o aborto é permitido, algo impensável para a direita evangélica brasileira”, avalia.
Michel Gherman também avalia que a polarização no Brasil atrapalha a análise.
“Pela esquerda, a gente vê um movimento fundamentalista islâmico como o Hamas, que produziu a matança que produziu, sendo visto apenas como uma força anticolonial e, portanto, respeitada por parte da esquerda”, avalia.
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Fonte: BBC