Com o objetivo de rastrear as origens da sífilis, os pesquisadores usaram técnicas de paleopatologia para estudar ossos humanos
Os ingleses, alemães e italianos a chamavam de “a doença francesa”. Os poloneses a apelidavam de “a doença alemã”, enquanto os russos a atribuíam aos poloneses. Na França, foi chamada de “doença napolitana” após o exército francês ser infectado durante a invasão de Nápoles, na Itália, na primeira epidemia documentada de sífilis.
As origens da sífilis – uma infecção sexualmente transmissível (IST) que devastou a Europa no século XV e ainda hoje prevalece – têm permanecido obscuras, difíceis de estudar e tema de debate.
Uma teoria de longa data sugere que a doença surgiu nas Américas e migrou para a Europa após as expedições lideradas por Cristóvão Colombo regressarem do “Novo Mundo”. No entanto, um novo estudo sugere que a verdadeira história é mais complicada.
Informações genéticas sobre patógenos antigos podem ser preservadas em ossos, placas dentárias, corpos mumificados e espécimes médicos históricos, extraídas e estudadas – uma área conhecida como paleopatologia.
Uma pesquisa publicada na quarta-feira (24) no periódico Nature utilizou técnicas de paleopatologia em ossos de 2 mil anos de idade desenterrados no Brasil, com o objetivo de lançar mais luz sobre quando e onde a sífilis teve origem. O estudo resultou na recuperação da mais antiga evidência genômica conhecida da Treponema pallidum, bactéria causadora da sífilis e de outras doenças relacionadas, datada de muito antes dos primeiros contatos transatlânticos.
“Esse estudo é incrivelmente animador, porque é o primeiro o primeiro DNA treponêmico verdadeiramente antigo que foi recuperado de restos arqueológicos humanos com mais de algumas centenas de anos”, disse Brenda J. Baker, professora de antropologia da Universidade Estadual do Arizona, que não esteve envolvida no estudo.
Uma doença complexa causada por uma bactéria complexa
Sem tratamento, a sífilis pode causar deformidades físicas, cegueira e comprometimento mental. Como uma infecção sexualmente transmissível, a condição sempre carregou um estigma e, por isso, existiram tentativas passadas de diferentes populações culparem surtos em grupos ou países vizinhos.
É particularmente complexo estudar tanto a doença, quanto o patógeno responsável pela sífilis, segundo Molly Zuckerman, professora e codiretora dos Laboratórios de Bioarqueologia, Novo e Velho Mundo, na Universidade Estadual do Mississippi, que não esteve envolvida na pesquisa.
“Foi apenas em 2017 que os pesquisadores conseguiram cultivar a T. pallidum pela primeira vez, embora saibamos que é a causa da sífilis há mais de cem anos”, disse Zuckerman por e-mail. “Ainda é caro e complicado estudá-la no laboratório. Existem muitas razões pelas quais, apesar de nossos melhores esforços, a sífilis é uma das infecções bacterianas comuns menos compreendidas.”
A temporalidade e o início repentino da primeira epidemia documentada de sífilis no final do século XV levaram muitos historiadores a concluir que ela chegou à Europa após as expedições de Colombo. Outros acreditam que as bactérias T. pallidum sempre tiveram uma distribuição global, mas talvez tenham se tornado mais virulentas depois de se manifestarem inicialmente como uma doença leve.
“É muito claro que os europeus levaram várias doenças (incluindo a varíola) para o Novo Mundo, dizimando as populações nativas, então a hipótese de que o Novo Mundo ‘deu a sífilis à Europa’ era atraente para alguns”, observou Sheila A. Lukehart, professora emérita no departamento de medicina, doenças infecciosas e saúde global da Universidade de Washington, que não participou do estudo.
A sífilis é intimamente relacionada, mas diferente, de outras duas subespécies ou linhagens de doenças treponêmicas não sexualmente transmissíveis, que têm sintomas semelhantes e são conhecidas como bejel e bouba, que também foram foco da nova pesquisa.
A equipe por trás do novo estudo examinou 99 ossos do sítio arqueológico conhecido como Jabuticabeira II, na região de Laguna, em Santa Catarina, no litoral brasileiro. Alguns ossos apresentavam marcas características de infecção por T. pallidum – as bactérias efetivamente corroem os ossos, deixando lesões côncavas.
Amostras de ossos de quatro pessoas forneceram dados genéticos suficientes para a equipe analisar. Uma delas produziu o que a autora do estudo, Verena Schünemann, professora assistente no Instituto de Medicina Evolutiva da Universidade de Zurique, descreveu como um “genoma de alta cobertura”, com detalhes o suficiente para uma análise refinada.
A análise revelou que o patógeno responsável pelas lesões estava mais intimamente relacionado à subespécie moderna do T. pallidium que causa o bejel, uma doença encontrada hoje em regiões áridas da África e do Oriente Médio, com sintomas semelhantes à sífilis.
A descoberta fortalece sugestões anteriores de que as civilizações nas Américas experimentaram infecções treponémicas em tempos pré-colombianos, e que a doença treponémica já estava presente no Novo Mundo pelo menos 500 anos antes de Colombo partir.
Revelações de uma árvore genealógica bacteriana
Schünemann afirmou que as novas descobertas não significam que a sífilis venérea, que causou a epidemia do século XV, chegou à Europa das Américas na época de Colombo. Um estudo semelhante conduzido anteriormente por sua equipe encontrou bactérias T. pallidum em restos humanos na Finlândia, Estônia e nos Países Baixos do início do período moderno (início dos anos 1400), sugerindo que algumas formas de doença treponémica, se não a sífilis, já circulavam no continente na época das expedições de Colombo ao Novo Mundo.
Além disso, o genoma recuperado da amostra brasileira forneceu uma árvore genealógica bacteriana que remonta a milhares de anos, sugerindo que as bactérias T. pallidum evoluíram para infectar humanos há pelo menos 12.000 anos. Schünemann afirmou que é possível que as bactérias possam ter sido trazidas para as Américas por seus primeiros habitantes que cruzaram o continente vindo da Ásia.
“Acredito que a história é muito mais complexa do que a hipótese colombiana poderia ter imaginado”, disse ela.
Mathew Beale, cientista sênior em genômica evolutiva bacteriana no Instituto Wellcome Sanger, perto de Cambridge, na Inglaterra, concordou com a avaliação de Schünemann, afirmando, por e-mail, que o estudo não “comprova ou refuta o princípio central da hipótese colombiana em si – que a viagem de Colombo levou à importação do Treponema e resultou nos surtos dos anos 1500 e, em seguida, na sífilis moderna”.
“Isso ocorre principalmente porque a bactéria sequenciada não é uma ancestral direta da cepa que causa a sífilis moderna. (…) É uma espécie irmã. Isso poderia significar que as várias treponematoses já estavam muito amplamente espalhadas ao redor do mundo,e poderiam, até mesmo, preceder a antiga migração e povoamento das Américas”, disse Beale, que não participou da pesquisa.
“Isso poderia, alternativamente, significar que muitas treponematoses diferentes estavam presentes no Novo Mundo e uma delas, distante das genomas antigos deste artigo, foi de fato importada por Colombo e seus pares”, acrescentou.
Pesquisas adicionais em genomas antigos de todo o mundo podem ser capazes de resolver o mistério, iluminando quais subespécies da bactéria estavam presentes na Europa e no Novo Mundo antes das viagens de Colombo, de acordo com Lukehart.
“A maior pergunta científica agora não é sobre a sífilis, mas sobre a distribuição das três subespécies ao redor do globo, especialmente em amostras pré-colombianas”, disse Lukehart.
“As ferramentas modernas disponíveis para extrair DNA de amostras antigas, para enriquecer o DNA treponêmico e obter sequenciamento profundo das amostras, aumentaram rapidamente nossa compreensão do Treponema.”
Fonte: CNN Brasil