Por People’s Health Dispatch
“É hora de intensificar, promover a justiça na saúde e atender às necessidades reais das pessoas”, afirma Alan Silva, do grupo europeu do Movimento pela Saúde dos Povos (MSP), ao abordar a necessidade de revolucionar as políticas farmacêuticas em seu continente. Antigo defensor do acesso a medicamentos, Silva compreende o quanto é importante para a Europa mudar a sua visão sobre pesquisa e desenvolvimento, mas também sobre produção e distribuição de tecnologias de saúde.
Se a região conseguisse desvincular-se dos interesses das empresas farmacêuticas transnacionais, seria uma verdadeira mudança de jogo, defende ele. “Precisamos farmacêuticas públicas na Europa para que possamos deixar de depender de soluções de saúde impulsionadas pelo lucro”, afirma.
Inspirada por uma visão diferente sobre o setor farmacêutico da Europa, uma coalizão de organizações de direito à saúde e especialistas em Saúde lançou um apelo para a construção de uma rede de institutos públicos de pesquisa e desenvolvimento. A ideia é que se garanta a superação da visão das grandes farmacêuticas, de que o lucro está acima da saúde das pessoas. A coalizão, que inclui MSP Europa, Médecine pour le Peuple (MPLP), Health Action International (HAI) e vários outros grupos, está se preparando para a primeira conferência sobre o tema, a ser realizada em meados de março.
Uma rede pública desse tipo garantiria que as pesquisas sobre novos medicamentos fossem feitas por entidades públicas e – incontornavelmente – permanecessem públicas nas fases posteriores do seu desenvolvimento. Nesse cenário, todo o conhecimento acumulado em pesquisa e desenvolvimento seria compartilhado por meio de um banco de dados público. Nenhuma patente seria registrada: empresas privadas ainda poderiam participar da produção de medicamentos, mas seriam impedidas de monopolizar o conhecimento público.
Essa iniciativa teria um impacto importante na disponibilidade de tratamentos e no preço de certos medicamentos, diz Jaume Vidal da HAI: “Seria um bom impulso para os recursos públicos destinados à pesquisa e desenvolvimento, pois pela primeira vez teríamos instalações de propriedade do Estado”.
De acordo com Tim Joye, do MPLP, a Europa precisa dessa reestruturação com urgência. Atualmente, as políticas da União Europeia (UE) dependem muito do setor privado, o que está levando ao aumento dos preços de medicamentos e produtos essenciais. Essa submissão pressiona os orçamentos públicos, especialmente os destinados à saúde e à seguridade social, e drena recursos preciosos que poderiam ser usados para empregar mais profissionais de saúde e melhorar suas condições de trabalho.
Os gastos públicos dos membros da UE com medicamentos aumentam sucessivamente. Em menos de 10 anos, entre 2000 e 2009, esse segmento do orçamento público cresceu 76%, alertou a Rede Europeia Contra a Privatização de Serviços de Saúde e Sociais, a União Europeia de Serviços Públicos (EPSU) e a MSP Europa, ao anunciar uma campanha por políticas públicas com foco nas pessoas pessoas para as eleições da UE deste ano.
Caso houvesse uma transformação nesse sentido, e a influência das grandes empresas farmacêuticas sobre os preços dos medicamentos fosse reduzida, estimativas afirmam que a economia em toda a UE chegaria a 140 bilhões de euros. Esses recursos poderiam ser investidos no fortalecimento dos sistemas de saúde pública, no treinamento de mais enfermeiros e farmacêuticos, e no cumprimento das promessas de melhora de condições de trabalho feitas aos profissionais de saúde no auge da pandemia de covid-19.
Ao ser garantida, a construção de uma rede desse tipo custaria dinheiro e tempo, mas está longe de ser impossível. Todos os investimentos combinados não seriam muito distintos daqueles feitos em inovações de saúde atuais – mas beneficiariam um grupo mais amplo de pessoas. E poderiam ser impulsionados pelas economias que fossem feitas nos gastos com medicamentos.
“A única maneira de conseguir criar farmacêuticas públicas na Europa é construir um movimento o mais amplo possível e continuar pressionando todos os dias. É, claro, um compromisso de longo prazo. Mas é preciso encarar: não podemos ficar esperando que governos, empresas privadas e instituições multilaterais nos entreguem espontaneamente o que precisamos”, diz Silva.
Enquanto sindicatos e sociedade civil na Europa querem ver mudanças radicais após os fracassos vivenciados durante a pandemia de covid, a maioria dos formuladores de políticas da UE não compartilha desses sentimentos. Durante discussões sobre diretrizes farmacêuticas, o melhor que se ouviu na União Europeia foi uma proposta para encurtar o período em que empresas desfrutam de acesso irrestrito aos novos mercados de medicamentos.
Mesmo anúncios suaves como esses foram contestados por associações regionais de produtores farmacêuticos, que insinuaram que tentativas de enfraquecer o atual enquadramento de propriedade intelectual resultariam no desenvolvimento de menos medicamentos, e colocariam em risco a saúde na Europa.
O que as grandes empresas farmacêuticas não conseguem explicar, em suas declarações, é por que o sistema atual beneficia seus acionistas em detrimento dos interesses da saúde pública. As empresas farmacêuticas conseguem escolher os medicamentos que desejam pesquisar, ignorando condições de saúde que consideram não ser lucrativas o suficiente – resistência antimicrobiana, por exemplo.
Reformular o sistema exigiria criar novas regras. “Poderíamos decidir democraticamente em quais estudos, em quais testes, em qual desenvolvimento queremos investir”, defende Joye.
A tentativa de construir uma infraestrutura farmacêutica pública em toda a Europa é, segundo Jaume Vidal, “uma tentativa de melhorar a situação”. Ele continua: “Temos a necessidade de aproximar as instalações de pesquisa e desenvolvimento das necessidades de saúde, as necessidades de saúde do acesso”.
Mudar a abordagem da Europa para pesquisa e desenvolvimento farmacêutico também demonstraria que a região tem solidariedade com o resto do mundo. Desde o início da pandemia, muitos países do Sul Global lutaram por um sistema mais justo, que permitisse a todos acessar medicamentos e tecnologias essenciais, independentemente de sua renda. Ao longo desse tempo, representantes e instituições europeias, no sentido contrário, defenderam os interesses das grandes farmacêuticas.
Se essas alianças mudassem, sob pressão dos movimentos populares, a Europa poderia fazer emendas ao menos parciais na abordagem que adotou durante a pandemia. “É um problema de abrangência global. A saúde não é um produto e todos deveriam ter acesso à melhor tecnologia que o conhecimento humano puder produzir”, defende Alan Silva.
Fonte: Outra Saúde / Créditos: Erik McGregor/LightRocket