Por Geeta Pandey
No mês passado, a Universidade de Yale emitiu um pedido formal de desculpas pelas relações que seus primeiros líderes e benfeitores tiveram com a escravidão.
Desde então, um nome que tem sido alvo de intenso escrutínio na Índia é o de Elihu Yale, o homem que dá nome à universidade da Ivy League (grupo formado pelas oito universidades de maior prestígio dos EUA).
Yale atuou como o todo-poderoso governador-presidente da Companhia Britânica das Índias Orientais em Madras (atual Chennai), no sul da Índia, no século 17 — e foi uma doação de cerca de US$ 1.486 que rendeu a ele a honra de dar nome à universidade.
“É equivalente a cerca de US$ 263 mil hoje se você ajustar pela inflação”, disse à BBC o historiador Joseph Yannielli, professor de história moderna na Universidade Aston, em Birmingham, no Reino Unido, que estudou as relações de Yale com o tráfico de pessoas escravizadas no Oceano Índico.
Não foi uma quantia enorme para os padrões atuais, mas ajudou a instituição de ensino a construir um prédio totalmente novo na época.
Muitas vezes descrito como um conhecedor e colecionador de coisas requintadas e um filantropo que doou generosamente a igrejas e instituições de caridade, Elihu Yale está agora sob os holofotes como um colonialista que saqueou a Índia e — pior — negociou pessoas escravizadas.
O pedido de desculpas da universidade aconteceu depois de mais de três anos de investigação sobre seu passado sombrio. Liderada pelo historiador de Yale David Blight, uma equipe de pesquisadores se debruçou sobre “a história da universidade com a escravidão, o papel de escravizados na construção de um edifício em Yale ou cujo trabalho enriqueceu líderes proeminentes que fizeram doações para Yale”, informou a universidade em comunicado.
O pedido de desculpas foi acompanhado pelo lançamento de um livro de 448 páginas – Yale and Slavery: A History (“Yale e a Escravidão: uma História”, em tradução livre), de autoria de Blight, que dá uma ideia de quanto Elihu Yale lucrou com a escravidão.
“O tráfico de escravizados no Oceano Índico, que acabou se igualando ao [tráfico de escravizados] no Atlântico em tamanho e escopo, só se tornou tão extenso no século 19. Mas no subcontinente indiano, o tráfico de seres humanos ao longo de suas costas, assim como no interior e nas ilhas era muito antigo”, ele escreve, acrescentando que Yale “supervisionou muitas vendas, adjudicações e contabilidade de pessoas escravizadas para a Companhia das Índias Orientais”.
Yannielli afirma que 12 milhões de pessoas escravizadas foram vendidas ao longo de 100 anos por meio do tráfico transatlântico.
Ele acredita, no entanto, que o tráfico no Oceano Índico tenha sido maior porque cobria uma área geográfica muito mais ampla, ligando o Sudeste Asiático ao Oriente Médio e à África — e durou muito mais tempo.
A investigação deste passado é importante. Fundada em New Haven, no estado americano de Connecticut, em 1701, Yale é a terceira instituição de ensino superior mais antiga dos Estados Unidos — e conta com vários presidentes dos EUA e outras figuras eminentes entre seus ex-alunos.
E está bem documentado que, a partir de 1713, Elihu Yale enviou centenas de livros sobre teologia, literatura, medicina, história e arquitetura, um retrato do rei George 1°, tecidos finos e outros presentes valiosos para o Collegiate School de Connecticut. O dinheiro arrecadado com a venda deles foi usado para construir um novo prédio de três andares que foi chamado de Yale College em sua homenagem.
O historiador Rodney Horace Yale, que também era membro da família, escreveu uma biografia de Elihu Yale no século 19 — e afirmou que a “doação dele tornou a existência precária da faculdade de Yale em uma certeza abençoada”.
Também comprou a imortalidade de Yale — embora não haja descendentes diretos dele, a universidade da Ivy League perpetua seu nome.
Em seu pedido de desculpas, a universidade anunciou que iria “trabalhar para aumentar a diversidade, apoiar a equidade e promover um ambiente de boas-vindas, inclusão e respeito” — e desenvolver trabalhos para “promover o crescimento econômico inclusivo em New Haven”, onde 30% da população é negra. Mas não disse que estava prevista uma mudança de nome — e rejeitou pedidos do tipo no passado para fazer isso.
Nascido em Boston, em abril de 1649, Elihu Yale se mudou com a família para a Inglaterra quando tinha três anos. Ele chegou ao Forte St George, a colônia branca em Madras, ainda jovem, em 1672, com um emprego administrativo na Companhia das Índias Orientais.
Os salários oferecidos pela companhia eram “notoriamente e ridiculamente baixos — desde o do governador, de £ 100 por ano, até o dos aprendizes, de £ 5”, escreveu Rodney Horace Yale. Ele e outros historiadores dizem que os funcionários se dedicavam a todo tipo de negociação por conta própria para obter algum lucro privado.
Ao longo de um quarto de século, Yale subiu na hierarquia da companhia, sendo finalmente nomeado governador-presidente em 1687 — cargo que ocupou por cinco anos, até 1692, quando foi demitido por “usar fundos da companhia para especulação privada, governar de forma arbitrária e negligenciar seus deveres”.
Em 1699, quando voltou à Inglaterra, aos 51 anos, era um homem extremamente rico. Ele construiu uma mansão na Queen’s Square, na Great Ormond Street, em Londres, decorada com obras de arte e artefatos de grande valor.
Após sua morte em julho de 1721, os jornais britânicos o descreveram como “um cavalheiro conhecido por sua extensa caridade”. Mas os historiadores dizem que ele também era conhecido em Madras por sua crueldade e ganância.
Seus sucessores o acusaram de corrupção e de mortes suspeitas de vários membros do conselho quando era governador — em uma ocasião, ele foi acusado de ordenar o enforcamento de um dos cuidadores do seu estábulo “por montar um cavalo favorito seu sem permissão”, escreveu Rodney Horace Yale.
O historiador diz que há dúvidas em relação às evidências do caso, mas acrescenta que não “destoa do seu caráter”.
“O ambiente ao seu redor deve ser sua defesa mais eficaz contra um histórico de arrogância, crueldade, sensualidade e ganância enquanto esteve no poder em Madras”, escreveu.
Mas Rodney Horace Yale encobre o papel do seu antepassado no tráfico de pessoas escravizadas — algo que muitos outros biógrafos de Elihu Yale e historiadores recentes também são acusados de fazer.
Yannielli, que vasculhou os registros coloniais do Forte St George, afirma que “está tudo ali, preto no branco” — e não há como negar que “Elihu Yale era um traficante de pessoas escravizadas ativo e bem-sucedido”.
Ele não se arrisca a dizer quanto dinheiro Yale ganhou com a escravidão, porque “oscilava” — e também porque ele negociava outras coisas, como diamantes e produtos têxteis, o que tornava “difícil separar os lucros que ele obtinha com cada comércio”. Mas ele acredita que era uma parte substancial de sua fortuna.
“Posso dizer que sua capacidade de ganhar dinheiro era enorme. Ele estava encarregado de dirigir o tráfico de pessoas escravizadas no Oceano Índico. Na década de 1680, uma fome devastadora [no sul da Índia] levou a um excedente de mão de obra, e Yale e outros funcionários da companhia se aproveitaram disso, comprando centenas de escravizados e enviando-os para a colônia inglesa em Santa Helena”, afirma.
Yale, acrescenta Yannielli, “participou de uma reunião que ordenou o envio de, no mínimo, 10 escravos em cada navio com destino à Europa. Em apenas um mês, em 1687, o Forte St George exportou pelo menos 665 escravizados. Como governador-presidente da companhia em Madras, Yale aplicou a regra de 10 escravizados por navio”.
Ex-aluno de Yale, Yannielli começou a investigar a associação de Elihu Yale com o tráfico de pessoas escravizadas há mais de uma década, quando se deparou com um quadro dele sendo servido por uma criança escravizada de gargalheira (espécie de coleira para contenção de escravizados) no pescoço.
Essa pintura famosa, diz ele, é uma das evidências mais contundentes que liga Yale à escravidão. Datada entre 1719 e 1721, ela mostra Yale com outros três homens brancos sendo servidos por um “pajem”, que seria um eufemismo para escravizado.
“A escravidão era onipresente na Inglaterra na época. Não está claro se ele próprio era o dono do escravizado ou se era um membro de sua família [que era o proprietário]. Mas a presença da criança no quadro, servindo vinho a ele e aps outros, mostra que a escravidão fazia parte do seu dia a dia.”
Yannielli diz que a razão pela qual alguns dos primeiros biógrafos de Yale subestimaram sua relação com a escravidão pode ser pela falta de acesso a materiais históricos no passado.
Mas como as atas detalhadas das reuniões da Companhia das Índias Orientais agora estão disponíveis digitalmente, os acadêmicos que optaram por ignorar as evidências mais recentemente fizeram isso “porque não queriam vê-las ou porque podem não tê-las considerado importantes antes da era do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam)”.
Yannielli também rejeita as afirmações de que Yale era um abolicionista que ordenou a proibição do tráfico de escravizados de Madras quando era governador.
“Dizer que ele, na verdade, acabou com a escravidão é uma tentativa de polir sua imagem. Se você olhar os documentos originais, foi o governante Mughal da Índia quem disse à companhia para encerrar. Mas Yale logo voltou à atividade, ordenando o transporte de escravizados de Madagascar para a Indonésia um ano depois.”
“A resistência à escravidão e ao imperialismo começou no século 15, e havia abolicionistas. Mas Yale definitivamente não era um deles.”
Fonte: BBC Brasil / GETTY IMAGES