Cantora, mãe solo e divorciada na década de 1930, pioneira da luta pelo reconhecimento das mulheres na indústria da música, a artista participou de um dos momentos mais importantes da música brasileira
JOANA OLIVEIRA – São Paulo – 18 JUL 2021
Cantora, mãe solo e divorciada na década de 1930, pioneira da luta pelo reconhecimento das mulheres na indústria da música. Divina. Essa é uma das sínteses possíveis sobre a vida e carreira de Elizeth Cardoso (Rio de Janeiro, 1920-1990), artista que, com seu timbre suave e potente, erudito e popular, tornou-se uma das vozes mais marcantes da música popular brasileira. Seu talento foi descoberto na sua festa de aniversário de 16 anos, quando Jacob do Bandolim, amigo de seu pai (também músico) ouviu-a cantar no quintal da humilde residência no bairro da Lapa. A carreira de Elizeth Cardoso só passou a ter o devido êxito, no entanto, a partir dos anos quarenta, consolidando-se em 1958, quando ela participou de um dos marcos da música popular brasileira: a criação da bossa nova.
Foi no seu disco Canção do amor demais, lançado naquele ano, que escutou-se pela primeira vez a batida bossa-novística do violão de João Gilberto, incluindo a canção-ícone Chega de saudade, além de outras composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Foi também em 1958 que o jornalista Haroldo Costa apelidou-a de divina, alcunha que usou em uma crônica publicada no jornal A Última Hora após assistir a um show de Elizeth Cardoso. Igualmente extasiados pela sua voz e sua presença de palco, outros artistas, críticos culturais e fãs passaram a chamá-la assim. Ela própria, no entanto, recebia o título com humildade. “Quando me chamam de divina na rua, eu nem olho, faço de conta que não é comigo, porque na verdade me dá um pouco de encabulamento”, dizia em uma entrevista em comemoração aos seus 45 anos de carreira.
Só quando conheceu a cantora americana Sarah Vaughan —ambas construíram uma amizade sem sequer falar o idioma uma da outra—, Elizeth Cardoso convenceu-se a se empossar do título. “Ela pediu para a intérprete me dizer: ‘Um adjetivo que nos colocam, seja ele qual for, pode ser até um palavrão, a gente tem que aceitar. Nos EUA, eu sou a divina americana. Eu serei até morrer. Então ela que segure esse divina com todas as forças e fique com ele até o dia derradeiro’. Então está bom, se é assim, eu seguro. A americana lá e a brasileira aqui”, ria em uma entrevista.
Antes de tornar-se a primeira dama da bossa nova, no entanto, Elizeth Cardoso, amante do samba, do carnaval da Portela e flamenguista de carteirinha, foi a noiva do samba-canção, gênero que consolidou vozes como Dalva de Oliveira e Maysa. Nos anos 1940, começou a cantar no Dancing Avenida, local onde também era dançarina —ganhava dinheiro de acordo com o tempo que passava dançando com os clientes. Vinda de uma família pobre e tendo que largar os estudos aos 10 anos de idade, Elizeth já havia trabalhado como vendedora de cigarros, operária numa fábrica de roupas de pele e até tentou a vida como cabeleireira. Para aumentar a renda, decidiu aprender a dirigir e tornou-se taxista noite carioca. Uma mulher negra, cantora, motorista, dirigindo sozinha em altas horas no Rio de Janeiro de 1940. Divina não era apenas a sua voz, mas sua postura e projetos de vida em uma sociedade que tolhia a independência das mulheres.
Logo que sua carreira como cantora começou a deslanchar, ela namorou o jogador de futebol Leônidas da Silva, desobedecendo a vontade do pai, mas não hesitou em abandoná-lo quando decidiu adotar uma bebê que encontrou abandonada na rua e o namorado instou-a a escolher entre ele e a criança. Elizeth Cardoso registrou a filha Tereza como “mãe solteira”, um escândalo para a época. Pouco tempo depois, conheceu o músico Ari Valdez, com quem foi morar —contra a vontade da família, mais uma vez— e com quem teve um filho biológico, Paulo Cézar. Depois de anos lutando contra o ciúme do marido, que não aceitava suas viagens e demais compromissos de trabalho, ela decidiu separar-se (ainda grávida, segundo o biógrafo e jornalista Sérgio Cabral) e não reivindicou nada para si, mesmo sem ter dinheiro para sustentar as crianças. Foi quando decidiu virar taxista.
“Nós temos um poder muito grande e chegou o momento da gente mostrar que nós somos também alguém, porque antigamente não havia essa oportunidade. Eu batalhei toda a minha vida”, disse Elizeth Cardoso, a Divina, na entrevista que celebrava seus 45 anos de carreira. Não à toa, nesta sexta-feira, quando completaria 101 anos de vida, o Google decide homenagear com um doodle aquela que pariu em sua voz a bossa nova e ecoou também a reivindicação pelos direitos de suas iguais.
Fonte: El País