Quais as explicações sociais, políticas e psicanalíticas para os massacres em escolas, que vêm acontecendo com frequência crescente no Brasil? No artigo que publicamos hoje, Rosana Onocko-Campos, psicanalista, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp e presidente da Abrasco, desenha algumas respostas. Para esse desafio, ela recorre a Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês que atuou por décadas na saúde pública inglesa, trabalhando com crianças.
A teoria de Winnicott sobre a infância e o desenvolvimento tem enorme importância para a compreensão desse fenômeno. Mas Rosana também enxerga as raízes do problema na destruição da “coisa pública”, ampliada nesta fase do neoliberalismo. Na verdade, ela relaciona ambos: a falta de objetos públicos durante a formação dos cidadãos parece funcionar como a ausência dos chamados “objetos transicionais” – a boneca, o paninho ou outro brinquedo que uma criança pequena usa para começar a estabelecer as fronteiras entre si e o mundo.
Essa poderia estar entre as origens da violência nos ataques em escolas como o de São Paulo (SP) e o de Blumenau (SC), que aconteceram em um período de menos de dez dias (27/3 e 5/4). “No mundo interno do sujeito, quando forças cruéis ou destrutivas ameaçam dominar as forças de amor, o indivíduo tem de fazer alguma coisa para salvar-se, e uma das coisas que ele faz é pôr para fora o seu íntimo, dramatizar exteriormente o mundo interior, representar ele próprio o papel destrutivo e provocar seu controle por uma autoridade externa”, escreve Rosana, citando Winnicott.
Sem essa passagem pelos objetos transicionais – ou pela percepção de que os objetos públicos estão presentes –, o sujeito não amadurece. Ou seja: não é capaz de “conter a raiva ou dar-lhe vazão socialmente aceitável”. Hoje, reflete Rosana, a quase totalidade dos jovens está alheia ao público: ou porque estão espremidos entre a violência policial e a escolar, ou porque (entre as minorias) estão trancados em carros blindados e condomínios.
Essa deficiência causa um forte impacto na própria sociedade, como destaca o próprio Winnicott. “De uma democracia verdadeira (…) pode-se afirmar: nesta sociedade e nessa época, há uma proporção suficiente de indivíduos que atingiu um grau suficiente de maturidade emocional para que exista uma tendência inata à criação, à recriação e à conservação da estrutura democrática”, afirmou, citado por Rosana.
Os episódios recentes parecem sugerir que estamos perdendo esta capacidade de criação e recriação. Mas há saídas, conclui Rosana – e estão em restabelecer equipamentos e políticas públicas para as maiorias, de maneira não homogeneizante. “Escolas de tempo integral e cheias de atividades culturais que permitissem a legítima afirmação das diferenças culturais. Eliminação dos obstáculos de acesso aos direitos sociais, estratégia necessária para o restabelecimento de espaços de dignidade (dos nomes, dos corpos), para a recuperação das histórias passadas e recentes dos inúmeros extermínios vividos pelo povo brasileiro”.
Essa deve ser a saída para interromper o ciclo da violência da sociedade brasileira, reflete Rosana. Leia a seguir seu texto, na íntegra.
[Gabriela Leite]
Estado, violência e democracia: contribuições da teoria do desenvolvimento Winnicottiana
Colaboração especial de Rosana Onocko-Campos
O trabalho discute algumas categorias da teoria do desenvolvimento Winnicottiana e propõe sua utilização no atual contexto brasileiro. A necessidade de responsabilização por parte do Estado pela continuidade das políticas públicas e pela garantia de direitos é analisada sob a ótica de conceitos como os de uso da agressão, empatia, vazio etc. A noção de “coisa pública” como possível objeto intermediário social é aventada. Aponta-se também à esperança como importante construção cultural capaz de alavancar a retomada democrática e não violenta.
Introdução: acerca da teoria de D. W. Winnicott
D. W. Winnicott foi um pediatra e psicanalista inglês conhecido pelas suas contribuições ao desenvolvimento humano. Na teoria das relações objetais de Winnicott, o objeto e a relação pressupõem e requerem um ao outro. Para Winnicott, a criança se vale de relações objetais desde tempos muito precoces para estabelecer as primeiras fronteiras entre o que é seu “eu” e o “não eu”. O objeto deve ter certas características para funcionar como um objeto transicional. Mas, mesmo quando possui todas essas características, isso é apenas necessário e não é condição suficiente para produzir amadurecimento. Todos conhecemos esses objetos imprescindíveis das crianças: mantinhas, ursinhos, pelúcias várias que não podem jamais ser perdidos nem lavados!
No marco dessa teoria, o objeto deve ser apresentado ao bebê (geralmente pela mãe), mas a criança deve encontrá-lo de uma maneira criativa e espontânea. Isto destaca a necessidade desse objeto estar aí num momento e lugar “certos”. Winnicott dirá que essa situação contém um paradoxo que precisará ser tolerado.
Diz ele: “el sujeto crea el objeto, en el sentido de que encuentra la exterioridad misma, y hay que agregar que esta experiencia depende de la capacidad del objeto para sobrevivir” [1] (tem importância que sobreviver neste contexto signifique não tomar represálias) (1999: 123).
O objeto – para Winnicott – deve ser como a mãe, meio ‘Hiding in plain sight’. Invisível a plena vista, imperceptível, mas quando se precisa dela, está lá. Ainda, a força criativa do bebê será desenvolvida ao tentar “fazer” algo com os objetos reais. Como disse Winnicott:
“(…) el jugar tiene un lugar y un tiempo. No se encuentra adentro según acepción alguna de la palabra (…) Tampoco está afuera, es decir, no forma parte del mundo repudiado, el no-yo, lo que el individuo ha decidido reconocer (con gran dificultad y aún con dolor) como verdaderamente exterior, fuera del dominio mágico. Para dominar lo que está afuera es preciso hacer cosas, no sólo pensar o desear, y hacer cosas lleva tiempo. Jugar es hacer” [2] (Idem: 64).
Conhecendo essa teoria podemos agora nos determos sobre as possíveis falhas nesse processo. Winnicott aponta a gravidade envolvida quando o gesto criativo da criança não encontra o objeto adequado no lugar e tempo certos, mas o vazio. “para entender isso é necessário pensar não em traumas, mas em nada acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido” (Winnicott, 1963/2007, pp 75).
Ou ao contrário, quando a criança é submetida a invasão ambiental (quando o bebê é perturbado, não lhe sendo permitido o gesto espontâneo) ambas as questões seriam para ele fonte de graves adoecimentos
Nesses casos, a integração do self não ocorre a contento e o core do verdadeiro self ou é escondido por uma falsa camada protetiva (o falso self) ou não se integra levando a transtornos graves. Será essa catástrofe intrassubjetiva a que a psicanálise winnicottiana se dispõe a tratar.
Como disse seu biógrafo Adam Philip: “where Freud and Klein had emphasized the role of disillusionment in human development, in which growing up was a process of mourning, for Winnicott there was a more primary sense in which development was a creative process of collaboration” [3] (Philips, 2007, 101).
No mundo interno do sujeito, quando forças cruéis ou destrutivas ameaçam dominar as forças de amor, o indivíduo tem de fazer alguma coisa para salvar-se, e uma das coisas que ele faz é pôr para fora o seu íntimo, dramatizar exteriormente o mundo interior, representar ele próprio o papel destrutivo e provocar seu controle por uma autoridade externa (Winnicott, 2005: 99). A violência é quase sempre essa dramatização da realidade interior quando é ruim demais para ser tolerada como tal.
Os indivíduos normais fazem sozinhos o que os mais doentes só podem realizar por meio de muita ajuda e tratamento, isto éconter a raiva ou dar-lhe vazão socialmente aceitável (i.e.: jogar boxe, quebrar cerâmica para fazer mosaico etc.). Converter em bem, na vida real, o que era dano na fantasia inconsciente pressupõe uma atividade razoavelmente integrada das coisas internas do sujeito. Para Winnicott nisso condiz o amadurecimento psíquico. Não todos os adultos seriam, portanto, adultos do ponto de vista psíquico. O que levou a Groarke a afirmar que: “Winnicott formulated a psychoanalytical conception of culture grounded in maturity and creativity” (2014: 60)
Isso explica por que o ódio ou a frustração ambiental despertarão reações diferentes (controláveis ou não) conforme o montante de tensão que exista na fantasia inconsciente de cada sujeito.
Ao longo do crescimento da criança, seria tarefa dos adultos impedir que essa agressão fuja ao controle. Espera-se dos adultos que possam oferecer uma autoridade confiante e dentro de cujos limites um certo grau de maldade possa ser experimentado sem perigo (as brigas e as fofocas dentro das turmas de amigos se incluem aí). Cabe aos adultos empreender uma retirada gradual desse lugar de autoridade, tarefa difícil para muitos pais de adolescentes e também para um sem-número de educadores. Contudo, o pior que poderia acontecer seria deixar essas crianças e adolescentes sozinhos no exercício da autoridade. Para Winnicott, isso é fonte de autoritarismo, ditadura. Uma criança poderá facilmente se tornar cruel se sobrecarregada com essas funções (Onocko-Campos, 2018a)
Falando da criminalidade Winnicott disse: “O crime produz sentimentos de vingança pública. A vingança pública redundaria em algo perigoso, se não fosse a lei e aqueles que têm por missão implementá-la […] Só assim podem ser estabelecidas as bases de um tratamento humano ao infrator” (2005: 128).
Goarke (2014) destaca que enquanto para Freud não existe sociedade sem autoridade paterna, para Winnicott, ao contrário, a imaginação, a ilusão e a capacidade de acreditar fundam-se na relação precoce com a mãe.
Contudo, ele não negligenciou a análise da função paterna. Em uma palestra dirigida a magistrados, Winnicott apontou que uma das questões que mais o preocupava com relação ao tema da violência e da criminalidade era evitar os efeitos de uma atitude sentimental em relação ao crime. Para ele, o sentimentalismo seria sinal de ódio recalcado e, sendo assim, ele voltaria, mais cedo ou mais tarde.
No mesmo texto, Winnicott define uma função paterna “faltante”, ou falha, nos criminosos: “Na delinquência plenamente desenvolvida […] o que nos chama a atenção é a necessidade aguda que a criança tem de um pai rigoroso, severo, que proteja a mãe quando ela é encontrada. O pai rigoroso que a criança evoca também pode ser amoroso, mas deve ser, antes de tudo, severo e forte. Somente quando a figura paterna rigorosa e forte está em evidência, a criança pode recuperar seus impulsos primitivos de amor, seu sentimento de culpa e seu desejo de corrigir-se” (2005: 131).
Groarke destaca: “But what role do fathers play? (…) Winnicott identified the paternal function with social management: how to manage the fantasy of violent overthrow and defiant conduct without reducing thing to a juridical model of paternal authority (…) Winnicott assigned fathers the role of meeting the child’s need for a constant and stable (indestructible) framework by safeguarding the mother” [4] (2014: 76)
Como vemos, para Winnicott era uma tarefa do conjunto da sociedade apoiar por meio da interação social e da responsabilização essa atividade das famílias em prol do amadurecimento.
Se o jovem fica inibido no amor, ele só terá capacidade de “sentir” a realidade da violência. Para Winnicott, o tratamento nesses casos não seria a Psicanálise, mas o “manejo”, precisando esses jovens ficar sob forte controle. Ele também indagou sobre as próprias limitações dos psicanalistas para tratar desses casos, questionando se o que torna tão difícil receber esses pacientes em tratamento não é uma forma de resistência contratransferencial, desde que todos abominam ser roubados. Destaca-se desta leitura a ênfase no papel da função paterna, geralmente pouco lembrada nas divulgações da obra do Winnicott, e a reflexão sobre o quanto essas indicações tão valiosas são absolutamente ignoradas pelo sistema judicial e penitenciário brasileiro.
“De uma democracia verdadeira (…) pode-se afirmar: nesta sociedade e nesta época, há uma proporção suficiente de indivíduos que atingiu um grau suficiente de maturidade emocional para que exista uma tendencia inata à criação, à recriação e à conservação da estrutura democrática” (Winnicott, 1965/2001, pp. 231)
Os objetos públicos em tempos neoliberais:
Bonnie Honig propõe em texto de 2013 que pensemos as coisas públicas como objetos intermediários necessários à recriação democrática. Uma sociedade deveria oferecer “coisas públicas” como as mães oferecem ursinhos de pelúcia. Igual que nos objetos intermediários, a relação das pessoas com as coisas públicas excede esses traços e não é assegurado por eles. Desta forma, em contextos democráticos, as coisas públicas são necessárias, mas também condição insuficiente para a saúde democrática. Em que tipo de ambiente de suporte os experimentamos, que tipo de ambiente de suporte eles ajudam a constituir e com que tipo de palavras os adotamos deveriam ser questões norteadoras, segundo a autora. Não seria, portanto, uma questão sobre “as coisas”, mas antes sobre como nós pensamos sobre as coisas:
Do those public objects interpellate those shaped by them into equality? Are we energized or depleted by them? Are they a prod to new forms of life, imagination, creativity, resilience, or joy? What if we political theorists got off the chair and onto the floor, as Tocqueville himself arguably did? Working with Winnicott, approaching the topic of public things as he approaches the study of transitional objects, we would ask, from the floor: What are the properties of such objects? What makes them work? [5] (Honig, 2013: 70)
No mundo inteiro, o neoliberalismo incitou, em tempos recentes, a privatização das coisas públicas apontando questões de eficiência e a falta de motivação dos funcionários públicos quando comparados aos estímulos de mercado. A eficiência sendo colocada como grande valor da democracia. Contudo, as “coisas públicas” existem para serem eficazes e não eficientes (Onocko-Campos, 2003)
Pajaczkowska afirma que a obra de Winnicott foi desenvolvida em um contexto no qual “healthcare professionals saw themselves as working to rebuild a new, democratic, inclusive society where the best would be available for all” [6]. A psicanálise britânica do pós-guerra acreditava que somente se o estágio chamado por Winnicott de “capacity for concern” [capacidade de se preocupar] fosse atingido pela maioria dos indivíduos é que a categoria “sociedade” não seria uma categoria vazia (2008: 34).
Honig provoca:
“In health, democracy is rooted in common love for and contestation of public things. Without such things, citizenship in neoliberal democracies risks being reduced to repetitive (private) work—what Lauren Berlant calls ‘crisis ordinary’—and exceptional (public) emergencies—what we can call crisis extraordinary. A symptom of that reduction—of democratic life to repetitive private work and exceptional public emergencies—in contemporary neoliberal contexts, is the prominence of mourning in recent years in Left political theory and cultural studies” [7] (Honing, 2013: 60)
A autora destaca o quanto as coisas públicas são lembradas somente perante emergências ou catástrofes como terremotos, atentados ou incêndios. Como se a subjetividade cidadã não precisasse que essas coisas públicas estejam lá, ‘Hiding in plain sight’ [invisível a plena vista], como a mãe, como objetos intermediários, mas resilientes e sobrevivendo aos ataques da raiva e do excesso de amor.
Assim como a sobrevivência do objeto intermediário a agressão permite às crianças a transição da continuidade com a mãe (ser uma unidade com ela) para a contiguidade com o próximo (instaurando-se a distinção entre o “eu” e o “não eu”). “Might there also be, analogously, some objects, relations, and contexts that serve as episte-political props to enable democratic citizens to make analogous political (and not just psychic) transitions? In that context, the transitional object, which is ‘not me’ and yet ‘in a relationship with or to me’ might offer a model of democratic orientation to public things, over which we lack mastery but which are nonetheless inescapably ours/us” [8] questiona Honig (2013: 71)
Winnicott observava que as crianças privadas de tais objetos, ou dos contextos que ajudam a torná-los intermediários, ou das figuras maternas que os asseguram falham em se conectar adequadamente e são levadas por essa deprivação a viver em mera conformidade e inautenticidade. Será que isso pode ser verdade para cidadãos privados de “coisas públicas” em uma democracia? Como suportes epistemológicos para permitir que as pessoas transitem da continuidade para a contiguidade, de si para o próximo, do solipsismo para o conhecimento eles precisarão buscar ou estabelecer contextos democráticos, coletividades, movimentos, congressos, alianças transnacionais, para constituir um ambiente democrático que opere saudavelmente.
Nas economias neoliberais, somos estimulados para a finitude e soma zero das coisas e à sua instrumentalidade. Elas fazem o trabalho? Vale a pena possuí-las? Elas nos isolam de outros “indesejáveis”? Mas na teoria democrática, especialmente quando conjugadas com as relações objetais de Winnicott, chama-se a atenção para o poder gerador das coisas, e suas propriedades mágicas para encantar, alterar, interpelar, juntar-nos, igualar-nos ou mobilizar-nos.
O horror à diferença e a violência:
A sociedade brasileira é uma sociedade segregada. As classes abastadas nada sabem da realidade de vida dos setores populares e da vida nas comunidades mais pobres do país. A não ser pelos relatos pontuais e fragmentados de seus próprios funcionários. Nos jovens dessas famílias de classe média temos visto muita depressão, cutting [automutilação], desânimo, desesperança. Eles definham sem ânimo dentro de seus condomínios fechados, sendo passivamente transportados em carros fechados de cá para lá pelos pais e sem conhecer a realidade da maioria do povo brasileiro. Não conhecendo a realidade de seu país não possuem desejo de transformá-la, nem esperança alguma em construir uma vida diferente que a de correr em uma rodinha de hamster atrás do dinheiro.
Os setores mais empobrecidos da sociedade conhecem os setores mais ricos pelos seus empregos e durante a prestação de serviços vários, ao estilo “Que horas ela volta” [2015, direção: Anna Muylaert].
Os jovens da periferia vivem espremidos entre a violência policial e escolar. Sendo os meninos negros os mais massacrados. Em muitas escolas se perpetra violência racista e de gênero e assim – lamentavelmente – se reproduz essa espantosa desigualdade social. O transporte e os equipamentos públicos lhes são extremamente hostis e esses jovens só visitam outras áreas da cidade quando conseguem emprego (a grande maioria precarizado) ou ao atravessar – em um esforço solitário, às vezes das famílias e sempre hercúleo – as barreiras para o ensino técnico ou universitário. A política pública se apresenta às classes populares como estratégia de submissão e humilhação (vide testes de sobrevivência do INSS, papeladas infinitas para acessar aos direitos estabelecidos por lei etc.)
A mudança de uma sociedade segregada para uma sociedade tolerante à diferença e razoavelmente integrada não se dará “naturalmente”. Muito esforço concreto deverá ser empreendido pelas políticas públicas para a superação deste status quo.
Homi Bhabha (2013) destaca que na contemporaneidade só é possível pensar na mudança política a partir de um momento híbrido, que enfatiza a necessidade de heterogeneidade e de negociações agonísticas porque não existe uma comunidade unitária que possa afrontar a necessidade de articulação de interesses.
“Os trabalhadores desempregados, temporários, semiespecializados e não especializados, homens e mulheres, os subempregados, os negros, as classes inferiores: esses signos de fragmentação de classe e do consenso cultural representam tanto a experiência histórica das divisões sociais contemporâneas como uma estrutura de heterogeneidade sobre a qual se poderia elaborar uma alternativa teórica e política” (Bhabha, 2013: 60)
Na atualidade, os agentes de mudança política encontram-se divididos, presos a identidades e interesses conflitantes o que dificulta a construção de hegemonia. Para Bhabha, o trabalho da hegemonia é ele mesmo um processo de repetição e diferenciação.
Ele aponta a necessidade de recusar a lógica essencialista de traduzir a teoria em representação de maneira mimética. Em contrapartida, nos desafia a pensarmos uma outra lógica: a da presença paralela e parcial – metonímica – do antagonismo. “Se a estratégia da hegemonia é, literalmente, insignificável sem a representação metonímica de sua estrutura agonística e ambivalente de articulação, como poderia a vontade coletiva estabilizar-se e unificar sua interpelação como agência de representação, como representante de um povo?” (idem: 63)
Fleury (2014), em estudo sobre a participação social nas favelas do Rio de Janeiro, já apontava o achado de significados metonímicos da participação: “Se a metonímia corresponde a uma combinação por similaridade e contiguidade, a metáfora trata da substituição por analogia. Encontramos nos discursos políticos e ações dos atores significações da participação que ocorrem por contiguidade mais que a substituição desse termo por uma analogia (…) O fato de serem usadas metonímias da participação e não haver sua substituição por um conceito analógico poderia parecer, à primeira vista, que há um esforço político de preservação do seu significado. No entanto, resta nos perguntarmos se, além da forma retórica, o que mais, nesse processo, foi afetado em termos do seu significado político. (…) Ao contrário de polos opostos, a existência de um contínuo – metonímias à metáfora permite, ao longo do tempo, que o efeito de distorção ou deslocamento da metonímia encubra a substituição metafórica que se encontra em processo, em uma disputa ideológica de significados” (2014:4).
Para Bhabha, a metonímia não teria uma função de distorção ou deslocamento, ela só seria a representação possível da imensa diversidade identitária funcionando de maneira agonística.
Ele destaca que: “A cultura só emerge como problema, ou uma problemática, no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação cotidiana entre classes, gêneros, raças, nações” (Bhabha, 2013: 69). Por isso, esse autor insiste em nos propor a ideia de diferença cultural e não de diversidade cultural. A diferença seria um processo de significação através do qual afirmações produzem campos de força, referencias, aplicabilidades e capacidades. O que destaca que não se trata de conteúdos e costumes culturais pré-dados que se manteriam em relação (na diversidade cultural) porém intocados. Para esse autor, o conceito de diferença cultural permitiria concentrar-se no problema da ambivalência da autoridade cultural que opera uma tentativa de dominação cultural em nome de uma supremacia supostamente dada, quando na verdade essa supremacia, para ele, é constituída no próprio momento da diferenciação.
Voltando à necessária troca da continuidade com a mãe pela contiguidade com os objetos intermediários sociais apontada anteriormente a partir da teoria winnicottiana, pensamos que em sociedades segregadas como a brasileira seria necessário o estabelecimento em grande escala de dispositivos de diferenciação cultural a la Bhabha.
Os equipamentos das políticas públicas deveriam ser amplamente reformados para evitar a tentativa neocolonial de produzir identidades homogêneas.
Longe de ser um problema para o caminho progressista (como as leem alguns setores da esquerda) as reivindicações identitárias poderiam ser, assim, o caminho metonímico da mudança social.
Escolas de tempo integral e cheias de atividades culturais que permitissem a legítima afirmação das diferenças culturais. Eliminação dos obstáculos de acesso aos direitos sociais, estratégia necessária para o restabelecimento de espaços de dignidade (dos nomes, dos corpos), para a recuperação das histórias passadas e recentes dos inúmeros extermínios vividos pelo povo brasileiro (Onocko-Campos, 2018b).
Reestabelecimento da função dos adultos, retomada da função paterna no sentido winnicottiano, que deveria passar por uma ampla reforma judiciaria que parasse de encarcerar a juventude preta e periférica.
Nenhuma destas mudanças que propomos é utópica, impossível ou não cabe no orçamento brasileiro. Cabe a todos nos trabalharmos pela sua implementação. Única forma de interromper o ciclo da violência da sociedade brasileira.
Como disse Winnicott:
“Que los jóvenes modifiquen la sociedad y enseñen a los adultos a ver el mundo de forma renovada; pero donde existe el desafío de un joven en crecimiento, que haya un adulto para encararlo. Y no es obligatorio que ello resulte agradable.
En la fantasía inconsciente, esas son cuestiones de vida o muerte” [9]
D. W. Winnicott, 1969
Notas:
[1] “O sujeito cria o objeto, no sentido de que se depara com a própria exterioridade, e é preciso acrescentar que essa experiência depende da capacidade de sobrevivência do objeto.”
[2] “Brincar tem lugar e hora. Não está dentro em nenhum sentido da palavra (…) Tampouco está fora, ou seja, não faz parte do mundo repudiado, do não-eu, que o indivíduo resolveu reconhecer (com muita dificuldade e mesmo com dor) como verdadeiramente exterior, fora do reino mágico. Para dominar o que está fora é preciso fazer coisas, não apenas pensar ou desejar, e fazer as coisas leva tempo. Brincar é fazer”
[3] “Onde Freud e Klein enfatizaram o papel da desilusão no desenvolvimento humano, em que crescer era um processo de luto, para Winnicott havia um sentido mais primário em que o desenvolvimento era um processo criativo de colaboração.”
[4] “Mas que papel desempenham os pais? (…) Winnicott identificou a função paterna com a gestão social: como administrar a fantasia da derrubada violenta e da conduta desafiadora sem reduzir a coisa a um modelo jurídico de autoridade paterna (…) estrutura estável (indestrutível) protegendo a mãe.”
[5] “Esses objetos públicos interpelam aqueles por eles moldados para a igualdade? Somos energizados ou esgotados por eles? Eles são um estímulo para novas formas de vida, imaginação, criatividade, resiliência ou alegria? E se nós, teóricos políticos, saíssemos da cadeira e caminhássemos, como o próprio Tocqueville provavelmente fez? Trabalhando com Winnicott, abordando o tema das coisas públicas como ele aborda o estudo dos objetos transicionais, perguntaríamos, do chão: Quais são as propriedades de tais objetos? O que os faz funcionar?”
[6] “Os profissionais de saúde se viam trabalhando para reconstruir uma sociedade nova, democrática e inclusiva, onde o melhor estaria disponível para todos.”
[7] “Na saúde, a democracia está enraizada no amor comum e na contestação das coisas públicas. Sem essas coisas, a cidadania nas democracias neoliberais corre o risco de ser reduzida a trabalho repetitivo (privado) – o que Lauren Berlant chama de ‘crise ordinária’ – e emergências excepcionais (públicas) – o que podemos chamar de crise extraordinária. Um sintoma dessa redução – da vida democrática a trabalho privado repetitivo e emergências públicas excepcionais – em contextos neoliberais contemporâneos, é a proeminência do luto nos últimos anos na teoria política de esquerda e nos estudos culturais.”
[8] “Pode haver também, analogamente, alguns objetos, relações e contextos que servem como suportes episte-políticos para permitir que os cidadãos democráticos façam transições políticas (e não apenas psíquicas) análogas? Nesse contexto, o objeto transicional, que ‘não sou eu’ e, no entanto, ‘em relação comigo ou para mim’ pode oferecer um modelo de orientação democrática para coisas públicas, sobre as quais não temos domínio, mas que, no entanto, são inescapavelmente nossas/nós.”
[9] “Que os jovens mudem a sociedade e ensinem os adultos a ver o mundo de uma nova maneira; mas onde houver o desafio de um jovem em crescimento, que haja um adulto para enfrentá-lo. E não é necessário que seja agradável. Na fantasia inconsciente, essas são questões de vida ou morte.”
Referências:
Bhabha, Homi, 2013. O lugar da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Fleury, Sonia & Kabad, Juliana, 2014. Metonímias da participação pacificada. In: Scripta Nova REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn497.htm
Goarke, Steven, 2014. Managed lives. Psychanalysis, inner security and the social order. Routledge Ed. Londres
Honig, Bonnie, 2013. The Politics of Public Things: Neoliberalism and the Routine of Privatization. Excerpt from a longer lecture given as part of three lectures in the ‘Thinking Out Loud’ series (2013) in Sydney, Australia, hosted by the University of Western Sydney, forthcoming in book form with Fordham University Press.
Onocko-Campos, 2003. O planejamento no labirinto: uma viagem hermenêutica. São Paulo: Editora Hucitec.
Onocko-Campos, 2018a. Comportamento antissocial nos jovens como sequela da privação: contribuições da clínica winnicottiana para as políticas públicas. In: Interface: comunicação, saúde e educação. DOI: 10.1590/1807-57622017.0315
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Pajaczkowska, Claire, 2008. On Humming: reflections on Marion Milner’s contribution to Psychoanalysis. In: Winnicott and the Psychoanalytic Tradition edited by Caldwel. Karnac Ed. London.
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______________, 1984. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Tradução de Joseti Marques Xisto Cunha. Rio de Janeiro: Ed Imago. (original de 1971)
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WINNICOTT, D.W., (1963). Explorações Psicanalíticas. Tradução: José Octavio de Aguiar Abreu. Porto Alegre: Ed. Artmed, 2007.
WINNICOTT, D.W., (1965). A família e o desenvolvimento individual. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Ed Martins Fontes, 2001.
Fonte: Outra Saúde