Artista homenageia personalidades negras no documentário ‘AmarElo – é tudo para ontem’, lançado na Netflix, que usa como fio condutor um show realizado no Theatro Municipal de São Paulo
NAIARA GALARRAGA GORTÁZARSão Paulo – 11 DEC 2020 – 14:51 EST
O Theatro Municipal de São Paulo é um dos lugares que por muito tempo estiveram fora do alcance de cidadãos negros no Brasil, mesmo que não houvesse uma lei lei segregacionista, como as que existiram nos Estados Unidos. Emicida (São Paulo, 1985), um dos artistas mais relevantes do país, fez um show no fim do ano passado neste majestoso edifício localizado no centro da metrópole. A sala onde atuaram Maria Callas e Duke Ellington acolheu um público muito mais negro e jovem que o habitual. Este poeta, desenhista e produtor musical converteu aquele concerto no fio condutor do documentário AmarElo – é tudo para ontem, que estreou no dia 8 de dezembro na Netflix. É uma homenagem às personalidades negras brasileiras ignoradas pela história e ao movimento antirracista nascido em plena ditadura, nas escadas do teatro. Sem eles, aquela criança criada na periferia por uma mãe empregada doméstica jamais haveria sonhado sequer em ser Emicida, explica o artista em uma entrevista realizada por videoconferência antes da estreia.
Pergunta. Na primeira vez que entrou no Teatro Municipal, você já era famoso e poderoso?
Resposta. Sim, já era Emicida, o que fala bastante sobre o contexto do Brasil. Gostaria de ter sido apresentado ao Theatro na sua grandeza desde pequeno.
P. Até que ponto o seu show e o público que o acompanhou estavam reescrevendo a história do Brasil?
R. Durante muito tempo, nossa sociedade ficou refém de algo que ela chama de alto cultura. Uma cultura elitizada, que se baseia numa ideia questionável de que o povo não compreende arte. Transformar um prédio tão importante em um templo da alta cultura afastou a população, sobretudo a população mais pobre. Não sou o primeiro artista negro, não sou o primeiro representante de um movimento popular a subir naquele palco. Mas conseguimos criar um contexto onde levamos para lá dentro um número imenso de pessoas que passam ao redor do Theatro todos os dias mas não se perguntam: ‘por que a gente nunca entrou nesse teatro?’ Porque nunca nos convidaram a pertencer a ele. Quarenta anos depois do nascimento do Movimento Negro Unificado, em 1978, temos a oportunidade de ocupar esse palco. O mais simbólico e mágico dessa ocupação foi encontrar algumas das pessoas que estavam naquelas escadas lutando por um Brasil mais justo, na criação do MNU, e colocá-los no meio do teatro.
P. São três homens e uma mulher que, no meio do concerto, se levantam.
R. Sim, isso. O momento em que eles se levantam é muito forte e simbólico porque foram aquelas pessoas que lutaram para que eu estivesse naquele palco. Para que eu sonhasse e acreditasse que poderia ser o Emicida. Essa é a importância de trazer o Theatro Municipal para o centro da história que estamos contando.
P. Suas canções são admiradas nos bairros da periferia, mas também por brasileiros de classe média. Você é uma ponte neste país onde esses mundos não se misturam?
P. Volto à importância do Municipal. Porque talvez o evento mais forte que deu fama ao Municipal no Brasil seja a Semana de Arte Moderna de 1922, capitaneada por Mário de Andrade, um grande escritor, intelectual, crítico, professor de piano… ele era um canivete suíço, fazia de tudo. Ele, por mais que fosse próximo da burguesia paulistana herdeira do café e da elite financeira da cidade, entendia que a cultura popular era a melhor lente para entender a realidade do Brasil. Talvez eu produza essa ponte porque intelectualmente eu tenho um material sofisticado, mas não acredito que o povo não consiga compreender. Minha origem é muito mais próxima das pessoas pobres de São Paulo, ao contrário do grupo que abraçou o Mário, e acho que nossas visões se complementam. É na cultura que temos o livro de história oficial do Brasil. Nossos livros de história foram os discos. Se você quiser conhecer o Rio de Janeiro dos anos 70, você precisa escutar o samba dos anos 70. Eles vão te contar, nas camadas da poesia, o modo de se viver nos morros e nas favelas cariocas. Você vai ter outra perspectiva além do que a gente chama de história oficial.
P. Esse documentário, dentro e fora do Brasil, é também um convite para conhecer outros artistas que vieram antes de você e que tiveram a história esquecida?
R. Acho que o melhor termo é invisibilizado. O filme se debruça em cima de uma parte da história brasileira dos últimos 100 anos, mas que foi invisibilizada sobretudo para os brasileiros. Muitos de nós conheciam as figuras, discos, pessoas, e estou apresentando eles para a minha geração para dizer que, sem a contribuição desses homens e mulheres, não existiria a figura que tantos admiram que é o Emicida.
P. Sua obra é uma combinação entre entretenimento e instrumento político. Ao longo de sua carreira, esses dois ingredientes mudaram de peso?
R. Acho que não. O texto não precisa ser ativista para exaltar a vida. Não precisa ser superficialmente político ou panfletário para fazer justiça ao direito de existir das pessoas que sentem que não têm esse direito. Acho que esse equilíbrio se dá porque tenho uma pesquisa grande em cima da linguagem. Nos últimos cinco anos me debruço para entender como o samba conta uma história e, a partir daí, tento elaborar o que seria o rap se alimentando diretamente dessa forma de contar uma história. É por isso que chego nessa forma de dialogar que apresento no AmarElo.
P. Você lê muito desde menino? Onde você lia?
R. Em muitos lugares. Minha mãe era empregada doméstica, então trabalhava em mansões que tinham livros e histórias em quadrinhos que eu lia. Alguns patrões eram legais, me viam desenhar e davam mais livro, papel, caneta, falavam para a minha mãe que eu era talentoso. Mas alguns não gostavam e proibiram minha mãe de me levar ao trabalho. Como ela não tinha com quem me deixar, tive que passar a ficar em casa sozinho. Minha mãe ia a sebos e comprava várias revistas em quadrinhos porque eram muito baratas. Tive o hábito de ler com muita frequência em casa, depois passei a frequentar bibliotecas e comecei a entender melhor esse ambiente de exclusão e essa relação problemática que o Brasil tem com o pensamento crítico, com a intelectualidade. Por minhas características — uma criança pobre de pele escura no Brasil é entendida como um moleque de rua, próxima ao crime — não foram poucas as instituições que eu frequentei onde era perseguido pelas pessoas que faziam a segurança porque, na cabeça deles, talvez eu representasse algum tipo de depredação do lugar. Não podia ficar muito tempo dentro daquele espaço, mas frequentei muitas bibliotecas e livrarias. Fiz amizade com muitos velhinhos donos de livraria que me deixavam ficar lá sentado lendo quando não podia comprar.
P. Quando foi a última vez que o Emicida sentiu preconceito?
R. É uma ótima pergunta. Nem me lembro.
P. Isso é bom, não?
R. É bom, mas temos que considerar o contexto no qual eu vivo. Uma casa confortável em um bairro seguro, de onde saio somente para trabalhar. Não estou à mercê dessa estrutura do Brasil com a frequência que outras pessoas que vivem de uma maneira menos confortável estão. É por isso que eu não sentiria a discriminação em primeira pessoa. Agora que você me perguntou, lembrei de uma ocasião interessante. Eu tenho um imóvel num bairro da zona norte, num condomínio fechado, e um dia fui até lá e perdi a minha chave. Estava com pressa e não conseguia ligar pra pessoa que estava me esperando. Estava no portão do condomínio no qual eu morei por cinco anos e uma senhora foi abrir o portão para ela entrar e, quando fui falar pra ela deixar aberto, ela trancou e saiu correndo desesperada. Na cabeça dela, alguém com as minhas características não estava querendo nada além de cometer um crime. Foi visivelmente assustada, segurando a bolsa. Foi um momento muito triste na minha vida. Fui embora andando com uma vontade de chorar, mas a verdade é que eu vivo uma situação mais confortável hoje. Por me relacionar com uma quantidade menor de pessoas e ser uma figura pública.
Colaborou Diogo Magri, de São Paulo.
Fonte: El País