- Por André Biernath
Durante décadas, a frase “um Engov antes, outro depois” foi um mantra entre as pessoas que iriam consumir álcool e desejavam aliviar os sintomas da ressaca — aquela sensação desagradável de náusea, enxaqueca e indisposição que aparece no dia seguinte.
A medicação, inclusive, é um dos mais frequentes integrantes do chamado “kit ressaca” disponibilizado em bares e baladas, ao lado de soluções contra azia ou queimação e de protetores hepáticos.
No entanto, em bula, este produto está indicado apenas para tratar dor de cabeça e alergias — e, como você verá ao longo desta reportagem, não existe nenhum tratamento farmacológico com eficácia comprovada para lidar com os efeitos de uma bebedeira intensa.
E, ao contrário do que o imaginário popular acredita, tomar Engov junto com o álcool pode até ser prejudicial à saúde (saiba mais a seguir).
Para entender essa história, é preciso antes conhecer o caminho que os drinques fazem pelo sistema digestivo.
Trabalho extra ao fígado
O hepatologista Raymundo Paraná, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, explica que o álcool começa a ser metabolizado no estômago e no intestino delgado.
“Já no fígado, ele passa por uma segunda etapa de metabolização. Ali, forma-se o acetaldeído, uma substância tóxica que está relacionada aos sintomas da ressaca”, diz.
“Essa molécula dilata os vasos sanguíneos, o que provoca vermelhidão na pele, dor de cabeça e outros sintomas comuns”, exemplifica ele.
Além dos incômodos citados pelo médico, algumas vítimas da ressaca também sofrem com náuseas, vômitos, indisposição e sensibilidade à luz.
As bebidas ainda promovem duas outras ações no corpo que repercutem na manhã posterior. Primeiro, elas estimulam a diurese (a vontade de ir ao banheiro para fazer xixi). É por isso que a pessoa acorda desidratada e com muita sede.
Segundo, há uma perda das reservas de glicogênio no fígado, uma espécie de estoque de energia que temos neste órgão. “E isso faz com que o indivíduo também acorde com fome e vontade de comer doces”, complementa Paraná.
É justamente para evitar todas essas sensações desagradáveis que muita gente recorre às supostas estratégias preventivas — e, entre elas, o Engov está entre as opções farmacológicas mais populares.
Histórico inusitado
No livro Vaudeville – Memórias, o jornalista e empresário Ricardo Amaral traz um relato curioso de como o Engov teria sido inventado.
Ele conta que fazia um passeio para Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, num veleiro que pertencia a Dirceu Fontoura, o dono do laboratório farmacêutico que fabricava o famoso biotônico que leva o mesmo sobrenome. Isso teria ocorrido em meados dos anos 1960.
“Por lá passavam todos os internacionais que pintavam no Rio”, destaca o escritor.
“Foi lá que assisti a um momento histórico para os porristas deste Brasil. Dr. Albert Sabin, o famoso inventor da vacina contra a paralisia infantil […], vendo todo o grupo beber quantidades respeitáveis de álcool, escreveu uma fórmula e presenteou o anfitrião.”
“Nascia ali o Engov, criado pelo fantástico cientista. Coisas deste país”, conclui Amaral.
A descrição sobre as origens do produto, no entanto, não aparece em outras fontes históricas — e a Hypera Pharma, atual fabricante do Engov, não respondeu às perguntas da BBC News Brasil até a publicação desta reportagem.
Mas há um fato que certamente contribuiu para a fama deste fármaco até hoje: a telenovela Beto Rockfeller, transmitida pela TV Tupi entre 1968 e 1969.
O ator Luiz Gustavo, o protagonista da trama, afirmou em diversas entrevistas que não recebia “um tostão” do canal de televisão, que passava por uma crise financeira. Por isso, criou, meio sem querer, o que é chamado hoje de merchandising.
“Inventei a coisa junto com o laboratório Fontoura”, relatou Gustavo, numa reportagem da Folha de S.Paulo publicada em 1994.
“Prometeram me pagar um ‘xis’, não lembro quanto, toda vez que o Beto [Rockfeller] citasse o remédio Engov no ar.”
Ele passou então a citar o nome do medicamento até seis vezes em cada capítulo da novela.
“Ninguém entendia nada. O resto do elenco e os diretores da Tupi viviam me perguntando porque citava tanto o Engov. Eu, claro, ficava na moita, nunca abria o jogo”, lembrou o ator, que faleceu em 2021.
A direção da TV Tupi chamou Gustavo para uma conversa e o alertou que um dos patrocinadores de Beto Rockefeller — um outro laboratório farmacêutico — estava incomodado. Afinal, eles também possuíam um remédio que prometia curar a ressaca, chamado Alka Seltzer.
Para agradar o anunciante, a direção do canal de televisão acrescentou uma fala no roteiro da novela, que foi dita pelo personagem Carlucho, interpretado por Rodrigo Santiago:
— Nossa, que ressaca! Bebi demais na festa de ontem à noite. Mas agora vou melhorar. Acabei de tomar um Alka Seltzer.
Como relata a Folha, Luiz Gustavo não perdeu a deixa. Ele disse em cena: “Você é burro, Carlucho. Devia seguir o meu exemplo. Tomei um Engov antes da festa, outro depois, e hoje estou zerinho.”
Os capítulos da novela eram gravados poucas horas da exibição, então a TV Tupi não teve tempo de editar o diálogo antes que ele fosse ao ar, detalha a matéria.
Um comprimido, quatro substâncias
De acordo com o rótulo e a bula, o Engov é composto de quatro substâncias, e cada uma delas tem uma função diferente.
O maleato de mepiramina (15 miligramas) é um anti-histamínico e atua contra alergias. O hidróxido de alumínio (150 mg) diminui a acidez do estômago e alivia a azia e as náuseas. O ácido acetilsalicílico (150 mg) — o mesmo princípio ativo da aspirina — atua contra as dores de cabeça, entre outras funções. Por fim, a cafeína (50 mg) é um estimulante, que também pode ajudar a diminuir enxaquecas.
Oficialmente, o Engov é indicado para “o alívio dos sintomas de dores de cabeça e alergias” — e não há nada na bula que mencione diretamente prevenção ou melhora da ressaca.
“Ou seja, falamos aqui de uma associação de substâncias que, na percepção pública, formam um medicamento contra a ressaca, ou contra o ‘pé na jaca’, digamos assim”, avalia o farmacêutico André Bacchi, professor da Universidade Federal de Rondonópolis, em Mato Grosso.
“Porém, o máximo que esse produto promove é um alívio de alguns sintomas específicos”, complementa o especialista.
Na visão de Bacchi, a visão popular sobre o Engov pode até ser prejudicial. “Ao enxergá-lo como uma solução contra a ressaca, a pessoa acaba bebendo mais por sentir que está resguardada pelo efeito do remédio”, alerta.
Tomar este fármaco junto com o álcool como uma estratégia para prevenir a ressaca, aliás, é algo desencorajado na própria bula.
“Este medicamento é contraindicado para pacientes com histórico de alcoolismo crônico, [ou que ingerem] outras substâncias que deprimem o sistema nervoso central ou bebidas alcoólicas”, diz o texto.
Essa recomendação tem a ver com dois motivos principais. Primeiro, porque “alguns efeitos do ácido acetilsalicílico no trato gastrointestinal podem ser potencializados pelo álcool”, ainda segundo a bula.
E isso, por sua vez, pode agredir o estômago e levar a quadros de gastrite.
Segundo, a associação do álcool com o anti-histamínico da fórmula (o maleato de mepiramina) potencializa o efeito sedativo relacionado às duas substâncias.
Ou seja: aquela sensação de ficar alheio à realidade causada pela bebedeira pode ficar ainda mais forte pela mistura de drinques com esses comprimidos.
Como mencionado anteriormente, a BBC News Brasil entrou em contato com a Hypera Pharma, para que o laboratório pudesse se posicionar a respeito das questões apresentadas, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
Questionada sobre números de vendas da medicação, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), disse que o “Engov é registrado por apenas um fabricante, e portanto, por questões de sigilo empresarial, não é possível repassar informações comerciais sobre ele”.
O que fazer?
Segundo os especialistas, a única forma realmente comprovada de evitar uma ressaca é não beber — ou ao menos moderar no consumo.
“Não existe uma fórmula mágica”, atesta a psiquiatra Olivia Pozzolo, pesquisadora do Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool (Cisa), em São Paulo.
“Vale tentar beber o mínimo possível e adotar algumas estratégias básicas, como tomar água entre uma dose e outra, comer algo para que o estômago fique cheio, espaçar o tempo entre um copo e outro…”, lista a especialista.
Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) defenda atualmente que não existe quantidade segura de álcool, o consumo moderado é classificado como uma dose para mulheres e duas para homens por dia — há uma diferença na forma como essa substância é metabolizada no organismo masculino e feminino.
E o Engov? Será que ele pode ser tomado no dia seguinte, quando os sintomas da ressaca dão as caras?
“Talvez a pessoa que usa esse medicamento até possa sentir algum efeito e ficar mais sedada ou melhorar da azia”, responde Bacchi.
Porém, de acordo com o farmacêutico, o mais adequado nesses casos seria o indivíduo avaliar quais são exatamente os incômodos que está sentindo — e buscar medicações específicas para aliviá-los.
“Para a dor de cabeça, é possível tomar um analgésico específico, como a dipirona. Se há muita náusea, um antiemético reduz a sensação de vômitos. E assim por diante”, exemplifica ele.
Paraná também lembra a importância de outras medidas não farmacológicas nessas 12 a 24 horas em que a ressaca teima em assolar o corpo.
“É importante se hidratar bem para repor os líquidos, comer alimentos leves e fazer repouso”, conclui o hepatologista.
Fonte: BBC Brasil