Entre a profissão e a intimidade: vivências de profissionais de educação física lésbicas no mercado de trabalho

Bahia Brasil saúde social

Para se manterem empregadas, essas mulheres alteram suas posturas no dia a dia, como mostra estudo realizado na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

Por Antonio Carlos Quinto – Sábado, 19 de julho de 2025

As rotinas de profissionais de educação física, principalmente as(os) que trabalham de forma autônoma, como personal trainers, exigem dedicação, boa saúde física e disposição para trabalhar em múltiplas jornadas. Para além disso, um estudo de doutorado realizado na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP analisou os processos pelos quais as profissionais autônomas de educação física, assumidamente lésbicas, têm de negociar suas intimidades, posturas e comportamentos para sobreviverem de seus trabalhos.

Mulher branca, cabelos curtos usando óculos redondos e trajando blusa estampada. Foto em preto e branco
Maria Clara Elias Polo, autora do estudo – Foto: Arquivo pessoal

A pesquisa intitulada “Sapata sim. Às vezes… pra quê, né?” O negociar, o performar e o passar por de profissionais de educação física lésbicas foi realizada pela professora de educação física Maria Clara Elias Polo, sob a orientação do professor José Miguel Nieto Olivar, da FSP da USP, e co-orientação da professora Yara Maria de Carvalho, da Escola de Educação Física e Esporte-EEFE, também da USP. “Eu analiso como essas profissionais negociam suas intimidades, suas sexualidades, a fim de se manterem economicamente equilibradas ou ‘empregadas’ enquanto pessoas jurídicas”, conta a pesquisadora em entrevista ao Jornal da USP.

Pelo período de um ano, ela acompanhou a atuação de três profissionais de educação física lésbicas: uma personal trainer, uma professora de beach tênis e uma administradora de conteúdo. Isso no decorrer dos anos de 2022 e 2023. Devido à jornada múltipla de trabalho das profissionais, Maria Clara, que também assume ser lésbica, as acompanhou em diversas academias e instituições esportivas.

Munida de diários de campo, gravadores, aplicativos de celular e máquina fotográfica, Maria Clara realizou em seu estudo um experimento etnográfico-literário. “Foi possível observar uma gama de experimentos sofisticados produzidos pelas profissionais, os quais buscam isolar as questões que envolvem intimidade e lesbianidade de questões referentes às transações econômicas e atuação profissional”, descreve a pesquisadora.

Elas usam dispositivos como o ‘armário’ e o ‘passar por’ mulheres heterossexuais em determinadas situações.
Maria Clara Elias Polo

A vida laboral e os impactos no próprio corpo

Maria Clara conta que os horários de trabalho começam, em geral, por volta das 6 horas, se estendendo até as 23 horas ou mais, sem pausas para almoço ou refeições “fixas”, com deslocamentos contínuos, sem folgas em finais de semanas ou feriados. “Como se não bastasse essa ‘destruição do próprio corpo’, em termos físicos, há ainda as questões emocionais que as afetam. Por exemplo, o fato de terem de esconder diariamente suas emoções e sentimentos impacta negativamente a saúde mental dessas profissionais”, afirma a pesquisadora.

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Somada aos segredos relacionados aos afetos, dentre as regras que acabam sendo criadas por essas profissionais está a necessidade de se manter “feliz”. “Eu preciso estar feliz. Afinal, os alunos não nos pagam para nos verem tristes”, justifica Maria Clara, acrescentando que a condição “ser feliz enquanto trabalha” não se restringe apenas a profissionais de educação física, mas, também, para profissões que atuam com o público, ou atividades de provisão de cuidado (professoras, enfermeiras, cuidadoras…). Maria Clara exemplifica com falas das interlocutoras do estudo: “Não consigo motivar alguém a fazer atividades físicas estando, eu, desmotivada para tudo. Preciso, portanto, ser feliz o tempo inteiro”. Todas as profissionais fazem uso de medicamentos antidepressivos ou ansiolíticos.

De acordo com a pesquisadora, esse processo de adoecimento entre profissionais de saúde e/ou de educação física pode ser um dos efeitos do neoliberalismo contemporâneo, que incita essas profissionais a atuarem como “pessoas jurídicas”. “Esse processo de ‘pejotização’ tem influência, inclusive, no ‘assumir-se’ lésbica no ramo profissional. Elas optam pelo trabalho autônomo, visto que as regras impostas pela legislação trabalhista [CLT] são entendidas como desvantajosas se comparadas com a ‘liberdade’ da PJ. Ainda que, se existisse essa ‘liberdade’ projetada pelo sonho da pessoa jurídica, ninguém precisaria ‘esconder’ a própria identidade”, afirma Maria Clara.

Para resumir os achados da pesquisa, é possível notar duas questões que se entrecruzam: de um lado, o esforço das profissionais para separar os mundos “privado” e “público”, de aturar a autoridade de qualquer aluna ou chefe. “Mesmo que as emoções das interlocutoras se cruzem e se atropelem, existem contextos, trabalhos e relações em que elas não apenas ‘separam’ as emoções e os sentimentos, mas também os hiperdisciplinam, controlam os menores gestos, submetidos a uma lógica e uma economia de superexploração e de precariedade”, descreve Maria Clara. Por outro lado, ela explica que “em um mundo em que toda ‘crise’ se transforma em ‘crie’, no qual até a própria felicidade está a serviço da produtividade, há uma transferência de todo o fardo da incerteza do mercado fitness – a escassez de emprego, a remuneração precária, a insegurança estrutural de uma pessoa jurídica – para os próprios ombros”, finaliza a pesquisadora.

Imagem: Retirada da pesquisa
Imagem: Retirada da pesquisa

Fonte: Jornal USP / Pelo período de um ano, pesquisadora acompanhou a atuação de três profissionais de educação física lésbicas – Foto: Flickr

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