Pesquisadora investigou a qualidade de 345 escovas compradas em comércios do Estado de São Paulo; foram apontados problemas no formato do cabo e da cabeça e nas pontas das cerdas, entre outros
Texto: Fabiana Mariz – Arte: Carolina Borin Garcia – Sábado, 1 de abril de 2023
Macia, com cabo reto e achatado, cabeça pequena (compatível com a idade do usuário), 18 tufos (contendo 80 cerdas em cada um), e 1.440 cerdas no total. Esses são os requisitos básicos para que uma escova de dentes manual cumpra o seu papel de garantir uma boa escovação sem causar danos aos tecidos da boca, segundo uma pesquisa da USP, que analisou 345 modelos do produto comercializados no Estado de São Paulo.
O estudo, liderado por Sônia Regina Cardim de Cerqueira Pestana, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, teve como objetivo identificar e analisar as normas e exigências técnicas para a produção e comercialização das escovas de dentes manuais, ou seja, para que o consumidor tenha acesso a um produto seguro, sem causar prejuízos à saúde e com características macro e microscópicas adequadas ao uso.
O estudo, liderado por Sônia Regina Cardim de Cerqueira Pestana, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, teve como objetivo identificar e analisar as normas e exigências técnicas para a produção e comercialização das escovas de dentes manuais, ou seja, para que o consumidor tenha acesso a um produto seguro, sem causar prejuízos à saúde e com características macro e microscópicas adequadas ao uso.
Na primeira parte do trabalho, a pesquisadora fez uma revisão integrativa da literatura, um método que sintetiza os resultados obtidos em pesquisas sobre um tema ou questão, de maneira sistemática, ordenada e abrangente. Nesta etapa, Sônia Pestana se deparou com duas normas brasileiras e 29 artigos sobre o tema.
Na etapa seguinte, a pesquisadora propôs um protocolo para avaliar as escovas adquiridas em 26 municípios do Estado de São Paulo, baseado na Portaria 97, de 1996, e na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 142 de 2017, normas vigentes à época em que a autora realizou o estudo (2018). Essas duas leis possuem alguns premissas semelhantes às técnicas preconizadas por Charles Bass, americano pioneiro no estudo das características das escovas dentais. Por isso, Sônia também se baseou no autor para elaborar seu protocolo de avaliação.
Nas análises macroscópicas, em que foram examinados o formato do cabo e o da cabeça, mais de 70% dos instrumentos foram considerados adequados ao uso. Em relação ao número total de cerdas, 63,5% estavam inadequados.
A grande surpresa, segundo os autores da pesquisa, veio das observações microscópicas. Quando as pontas das cerdas e ausência de dilaceramentos foram avaliadas, 82% dos produtos foram reprovados. “A ponta tem que ser arredondada, não tem desconto para isso, e o que a gente enxergou foram cerdas dilaceradas”, relata Sônia Pestana.
Paulo Capel Narvai, professor da FSP e orientador do estudo, disse ao Jornal da USP que, como a escova de dentes se transformou em algo que é utilizado em praticamente todo o mundo, o senso comum sobre esse instrumento é que ele incorpora tecnologia segura, boas práticas industriais e que, portanto, os produtos à venda são seguros para uso humano. “Assim, encontrar que mais de 82% dos modelos não atendem aos requisitos básicos – incluindo aqueles produzidos por marcas reconhecidas no mercado como sinônimo de qualidade – foi um resultado surpreendentemente muito negativo.”
Sônia, que também é pesquisadora do Centro Colaborador do Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde Bucal (Cecol), ligado à FSP, diz que esses resultados indicam fragilidade nos procedimentos regulatórios vigentes no País, além de implicar riscos para a saúde da população. “Temos um problema grave de saúde pública. Se existem normas, ou elas não são cumpridas, ou são frágeis. Cabe aos órgãos governamentais tomarem providências.”
Fiscalização
A produção de escovas de dentes manuais requer boas práticas de fabricação, que devem obedecer ao conjunto de normas regulamentadoras definidas pelos órgãos competentes de cada país. No Brasil, a Portaria 97/1996 especifica os requisitos para escovas dentais de uso geral expostas ao consumo e as classifica por faixa etária, textura dos tufos, medida de altura e tipo de acabamento das cerdas (lisas, plumadas, planas e polidas).
Já a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 142 de 2017, proposta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), estabelece a definição, a classificação, as normas técnicas e de rotulagem e o procedimento eletrônico para a regularização de produtos de higiene pessoal, onde se encaixam as escovas e hastes para higiene bucal. De acordo com o documento, “os produtos descartáveis são isentos de registro e sua comercialização no território nacional fica condicionada ao procedimento de comunicação prévia à Anvisa pela empresa detentora do produto.”
Sônia Pestana contou ao Jornal da USP considerar que houve um retrocesso entre as duas normas, publicadas em um intervalo de 21 anos. “A portaria 97 trata das características dos componentes da escova de dentes, desde o cabo até as cerdas. Já na RDC de 2017 não constam essas informações”, relata a pesquisadora.
Ela ressalta que fiscalizar o cumprimento dessas normas é responsabilidade da Anvisa. “Cabe aos órgãos governamentais tomarem providências.”
Resposta da Anvisa
Procurada, a Anvisa informou, em nota, que “a RDC n. 640, de 2022, é a norma atual que estabelece os requisitos técnicos para a regularização de produtos de higiene pessoal descartáveis destinados ao asseio corporal, incluindo escovas e hastes para higiene bucal, fios e fitas dentais.”
O documento esclarece que “a empresa titular [fabricante] deve garantir que o produto correspondente à documentação enviada cumpra todos os requisitos técnico-regulatórios das normas aplicáveis”.
Por fim, “embora não ocorra análise prévia, é realizada a verificação contínua dos produtos por meio de amostragem, considerando ainda denúncias e atendimento de demandas específicas, as quais podem resultar em pedidos de adequação ou cancelamento da notificação, em caso de irregularidades. A depender do risco da irregularidade, a área de fiscalização pode, ainda, determinar a adoção de medidas cautelares/preventivas. Neste sentido, os resultados do estudo conduzido pela USP serão avaliados pela agência”.
Giuseppe Romito, professor titular da Faculdade de Odontologia (FO) da USP, disse em entrevista que o governo e os órgãos de fiscalização trabalham basicamente a partir de queixas pessoais. “Se todos os dias tivéssemos reclamações registradas, teríamos mais demanda para a Anvisa ou para os órgãos competentes.”
Surpresa
Paulo Narvai contou ao Jornal da USP que a decisão de estudar o tema se deu porque, segundo ele, havia uma espécie de véu a ocultar a qualidade desses materiais.“Parecia-nos, inicialmente, algo quase banal. Partimos da hipótese de que os produtos eram, majoritariamente, adequados ao consumo humano e admitíamos que, provavelmente, os resultados corresponderiam a um achado previsível e que não teríamos nada demais a discutir sobre o tema.”
Ainda assim, os pesquisadores optaram por confirmar essa hipótese, mas os resultados encontrados foram na contramão do esperado. “As escovas são, predominantemente, inadequadas. Foi uma reversão da nossa expectativa, que veio à luz apenas quando removemos o véu que recobria o tema.”
O professor da FSP alerta que escovas inadequadas prejudicam as condições das gengivas e podem desgastar o esmalte dentário, em graus variados, desde desgastes clinicamente insignificantes até prejuízos mais importantes nas regiões dentárias próximas à dentina, no chamado colo dos dentes. “O uso eventual, por um curto período de tempo, pode não ter maiores consequências. Mas produtos inadequados, utilizados por vários meses, anos e mesmo décadas, podem ser altamente nocivos.”
Para o presidente da Câmara Técnica de Periodontia do Conselho Regional de Odontologia (CRO) de São Paulo, Marcelo Cavenague, o trabalho de Sônia Pestana apresenta todo o rigor que se espera de um trabalho científico, mas mesmo assim ele vê os resultados com cautela. “Dizer que as escovas analisadas podem causar prejuízos à saúde do paciente foge um pouco da realidade clínica”, opina.
“No uso diário da escova, por exemplo, se o tamanho da cabeça tem pouca variação em relação ao que foi estabelecido no trabalho, ou seja, se a cabeça é um milímetro maior ou menor, já é classificada como inadequada”, explica Cavenague. “Mas, clinicamente, não vai fazer diferença.”
Para ele, o fato de a população não saber escovar os dentes é mais preocupante do que a qualidade dos instrumentos em si, e orientações de higiene bucal deveriam ser dadas para crianças em idade escolar. “Eu ensino [meus pacientes] a escovarem os dentes há mais de 30 anos, e vejo exatamente a mesma coisa: ou a pessoa escova muito rápido, ou escova um monte de dente ao mesmo tempo, faz uma força extrema para escovar os dentes, e o resultado é sempre ruim.”
Roosevelt Bastos, professor da disciplina de Saúde Coletiva da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP, diz que o benefício deste trabalho está em provocar um alerta para os pesquisadores. “A comunidade científica deve se voltar a realizar mais estudos relacionados às escovas de dentes, pois elas têm uma relação direta com o controle da placa bacteriana, causa das duas doenças bucais que mais assolam a população: a cárie e as doenças periodontais”, diz.
Giuseppe Romito vai na mesma linha ao dizer que seria interessante outro trabalho de campo para investigar que prejuízos essas escovas podem causar para a população. “A partir daí teríamos dados mais consistentes para afirmar se precisaríamos de uma maior fiscalização, por exemplo.”
Fonte: Jornal USP