Pesquisa realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP analisa como os discursos na obra de Jorge Amado demonstram violências sofridas pelos personagens retratados
por Crisley Santana – Domingo, 23 de outubro de 2022
“Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros.” A obra modernista Capitães da Areia, publicada em 1937 pelo escritor baiano Jorge Amado, explora a vida de um grupo de garotos que crescem desamparados nas ruas de Salvador.
Os recursos discursivos usados pelo autor demonstram processos de violações dos direitos humanos de crianças e adolescentes, ficção que encontra ecos na realidade, conforme mostra a dissertação Política, Ideologia e Direitos Humanos em Capitães da Areia: uma abordagem semiótica.
O estudo está em fase de desenvolvimento por Leandro Lima Barreiro no Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo. Em entrevista ao Ciclo22, o pesquisador explicou como símbolos textuais são usados para estigmatizar os personagens no romance e a relação da obra com a realidade vivida no País.
No romance, os menores que vivem nas ruas são ignorados pelas pessoas que os cercam. Porém, ao mesmo tempo, os furtos e as violências cometidas por eles viram notícia no Jornal da Tarde, nome fictício do periódico que compõe o romance. Quando tais atos são noticiados, os adolescentes são colocados em evidência, não pelas faltas que vivem, como a ausência de cuidados básicos, mas pelas consequências dessas faltas. Essa contradição leva os personagens a uma dupla estigmatização social, conforme defendeu o pesquisador. Ao mesmo tempo em que são invisibilizados pela extrema pobreza e abandono que sofrem, são ultravisibilizados pelos atos violentos que resultam disso.
“Na construção da notícia, por exemplo, o Jornal da Tarde mobiliza diversas figuras como ‘assaltantes’, ‘bandidos’, ‘ladrões’, ‘larápios’, ‘indivíduos que infectam a nossa urbe’, etc., visando ultravisibilizar esses corpos, associá-los ao medo e ao terror”, analisou Barreiro.
Fora da ficção, há um processo similar que ocorre com crianças e adolescentes que vivem pelas ruas no País. “Há uma retórica conservadora e intolerante no romance que é muito similar se a gente for pensar nos dias de hoje, com discurso favorável à redução da maioridade penal no Brasil”, afirmou o pesquisador.
Além da exclusão que os priva de direitos básicos, como saúde e educação, tem ainda o agravante das violências físicas e psicológicas cometidas pelo Estado na figura de policiais, demonstra o estudo.
Filme e várias edições do livro Capitães da Areia: obra mostra violações dos direitos humanos – Fotos: Divulgação/Editoras
“O indivíduo que errou sofre uma sanção, como a gente chama na semiótica. Ele vai ser sancionado, ou seja, ele precisa pagar de alguma forma. Seja no seu grau extremo do discurso intolerante, na exclusão ou na atuação do próprio estado penal, porque é o estado penal que atua na exclusão da população mais pobre”, disse Leandro Barroso.
Nesse sentido, a atuação estatal destacada no romance, além de oferecer recursos para analisar as violações de direitos, coloca em prova outra discussão: a ideia de que a identidade nacional foi formada a partir da celebração da mistura entre raças e classes sociais distintas.
Barroso defende que os personagens valorizados na obra de Jorge Amado, como população negra e periférica, mostram os conflitos em torno da aceitação de valores que estejam fora dos padrões sociais da burguesia e da branquitude, por exemplo.
“Em Capitães da Areia é tematizado o conflito de classes. Então há um rompimento com esse projeto de que fomos formados a partir de uma benignidade nacional”, disse o pesquisador.
O pesquisador e a pesquisa
Leandro Lima Barroso é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística do Departamento de Linguística da FFLCH. Sua dissertação é desenvolvida com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Seus objetivos com o estudo envolvem explorar um autor que, para ele, é pouco analisado dentro da Universidade. “Meu intuito é resgatar o Jorge Amado para os dias de hoje, analisando o passado para melhor entender o presente e o futuro, também tentando dialogar com alguns desafios do nosso tempo, sobretudo a questão da população de rua, que vem crescendo constantemente”, afirmou.
Sua dissertação Política, Ideologia e Direitos Humanos em Capitães da Areia: uma abordagem semiótica será defendida em dezembro de 2022.
Fonte: Jornal USP