Programa pedagógico-motor ativista é centrado em alunos com dificuldades motoras a partir do ensino da ginástica educacional; modelo se mostrou acessível para o ambiente escolar, podendo ser modificado
Por Giulia Rodrigues Arte: Diego Facundini – Domingo, 20 de outubro de 2024
Durante a infância, algumas crianças podem apresentar dificuldades no desempenho de habilidades motoras. Essas dificuldades podem ser observadas na prática de atividade física, como saltos, corridas e brincadeiras com bola ou mesmo em tarefas cotidianas, como amarrar o sapato, utilizar talheres e desenhar. Além do atraso no desenvolvimento motor, essa condição pode afetar aspectos sociais e psicológicos, tornando a criança vulnerável a desenvolver problemas como baixa autoestima e sentimento de inadequação.
Para compreender como minimizar as desvantagens entre a participação de crianças com e sem dificuldades motoras em um programa de educação física, a pesquisadora da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP Érica Roberta Joaquim desenvolveu, durante sua tese de doutorado, um programa pedagógico-motor ativista. Centrado em alunos com dificuldades motoras a partir do ensino da ginástica educacional, o trabalho foi orientado pelo professor Luiz Eduardo Pinto Basto Tourinho Dantas.
Por meio do modelo pedagógico desenvolvido na tese, as crianças construíram colaborativamente o Programa de Intervenção Pedagógico-Motor Ativista (Pipma), no qual escolhiam e praticavam rolamentos, posições invertidas (parada de mãos e parada de cabeça), estrelas, saltos e equilíbrios (estático e dinâmico), sempre em parceria com a pesquisadora e com orientações adequadas de segurança.
“A opção pela ginástica educacional foi percebida como uma escolha positiva. Como os desempenhos não eram díspares e todos estavam conhecendo suas possibilidades nessa prática corporal, as crianças com dificuldades motoras ficaram suficientemente confortáveis para experimentar os desafios, estabelecer suas metas e estipular seus critérios de sucesso ou fracasso”, afirma a pesquisadora.
Ao término do estudo, foi possível identificar que os alunos com dificuldades motoras apresentaram progresso na aquisição das chamadas “habilidades gímnicas”, impactando positivamente em seu desenvolvimento global. Realizado na quadra de uma escola municipal, o programa se mostrou plenamente viável para o ambiente escolar e de fácil adaptação às particularidades de cada criança e dos locais de aplicação.
As tarefas incluíam colocar moedas no cofre, entrelaçar cubos com cordão e desenhar o caminho para avaliar a destreza manual – Foto: cedida pela pesquisadora
Ginástica na escola
O programa foi aplicado em uma escola municipal de Ensino Fundamental 1 (do 1º ao 5º ano), localizada no interior de São Paulo, que oferece ensino integral. Ao longo de 20 aulas, a implementação do programa contou com a participação de 12 crianças entre seis e sete anos, sendo que quatro delas apresentavam dificuldades motoras. Cada aula teve a duração de 50 minutos e ocorriam duas vezes por semana. Antes de iniciar o tempo de aprendizado, as crianças tinham dez minutos para brincar livremente.
Em um diário de campo, a pesquisadora registrava os acontecimentos e reflexões de cada aula. Além disso, entrevistas semiestruturadas foram feitas com a professora pedagoga, o professor de educação física, as crianças com dificuldades motoras e seus responsáveis.
A seleção das crianças que participaram desse estudo se deu por meio de testes que avaliam o desenvolvimento motor, compostos por oito tarefas que avaliam três classes de habilidades diferentes. As tarefas incluíam colocar moedas no cofre, entrelaçar cubos com cordão e desenhar o caminho (destreza manual), pegar o saquinho de feijão e arremessá-lo no tapete (mirar e pegar), equilíbrio em uma perna só, caminhar nas pontas dos pés e saltar nos tapetes (equilíbrio).
Além do teste motor, a professora pedagoga e o professor de educação física preencheram uma lista de checagem sobre as atividades de vida diária desenvolvidas por cada criança, atribuindo para cada afirmação da lista uma classificação de desempenho qualitativo: “muito bem”, “bem”, “quase” e “nem perto”. A partir dessas informações, as crianças com dificuldades motoras foram identificadas. Para compor o grupo de intervenção unificado, os mesmos professores indicaram os alunos sem dificuldades, utilizando como critério a percepção do bom relacionamento entre as crianças (com e sem dificuldades).
Crianças com dificuldades motoras
Para preservar suas identidades, as crianças que apresentavam dificuldades motoras foram chamadas no trabalho de Tom, Nic, Max e Tina. O programa foi pautado na ginástica educacional e seu processo de implementação possibilitou observar que, mesmo com dificuldades motoras, as crianças são capazes de aprender tarefas como: ponte de costas, vela, estrela, rolamento para frente e para trás (cambalhota), parada de mãos, parada de cabeça (ficar de ponta-cabeça) e salto sobre mesa, o que contribuiu para fortalecer sua autoconfiança.
A pesquisadora explica que a modalidade não é uma prática usual nas escolas, o que favorece uma certa igualdade no nível de desempenho entre os alunos durante o processo inicial, proporcionando um ambiente mais confortável para que todos se exponham.
De acordo com a pesquisa, a implementação do programa possibilitou a emergência dos elementos críticos de construção colaborativa, agência e aprendizado. Cada elemento corresponde, respectivamente, às ações das crianças observadas ao longo das aulas e nas entrevistas: cooperação para decidir e realizar as atividades; demonstrações de ginástica para a família e prática fora das aulas para benefício próprio; aprendizado de tarefas até então desconhecidas e prestar ajuda para colegas nas aulas.
O tempo de brincadeira livre realizado antes das aulas permitiu que a pesquisadora observasse como o campo de ação das crianças com dificuldades motoras mudaria ao longo do programa. Érica notou que a ginástica também passou a fazer parte desse tempo livre e as crianças passaram a dialogar mais e organizar as próprias brincadeiras em conjunto.
Já as entrevistas feitas com os professores e responsáveis sugeriram que o campo de ação individual das crianças com dificuldades motoras se modificou. “As mães de Max e Tina relataram que as crianças estavam brincando de coisas diferentes e subindo em locais onde antes não se arriscavam”, contou a pesquisadora. A pesquisadora também fala sobre a importância de direcionar a atenção para as crianças que apresentam dificuldades motoras, pois estas se encontram em desvantagem quanto às oportunidades de participação quando em grupo.
“Muitas crianças com dificuldades motoras nascem em famílias que desconhecem o significado de ter essas dificuldades e de como isso pode impactar a vida da pessoa. Essas crianças acabam por ser vistas apenas em suas expressões ‘defeituosas’ comparadas com crianças típicas. Isso faz com que experimentem uma vida isolada mesmo convivendo em grupos e compartilhando espaços sociais de aprendizado, já que não possuem as mesmas possibilidades de participação nesses espaços.”Érica Roberta Joaquim
A pesquisadora discute ainda o problema do capacitismo: “Essas crianças devem ser mais fortalecidas e menos ‘curadas’ de suas ‘deficiências’; precisam se sentir prestigiadas e, para isso, necessitam, no processo interventivo institucionalizado, de professores que estejam olhando para elas como pessoas únicas, com desejos e metas próprias, para que assim possam perceber por si mesmas suas qualidades e potencialidades, não somente suas dificuldades”, concluiu.
O estudo intitulado Intervenção pedagógico-motora ativista em crianças com dificuldades motoras está disponível no banco de teses da USP e pode ser acessado clicando aqui.
*Estagiária sob supervisão de Paula Bassi, da Seção de Relações Institucionais e Comunicação da EEFE. Editado por Tabita Said
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado
Fonte: Jornal USP / Programa centrado em crianças com dificuldades motoras foi aplicado em uma escola municipal de Ensino Fundamental localizada no interior de São Paulo – Foto: cedida pela pesquisadora