Por Alexandre Gusmão (Portal Ipirá City) – Quinta,20 de janeiro de 2021
“ disparo contra o sol/ sou forte, sou por acaso/ minha metralhadora cheia de mágoas/ eu sou um cara” – cantou Cazuza em O tempo não para. No entanto, o tempo não só paralisa, senhor da razão que é, como também se mistura formando um mosaico. Por isso o poeta louco e compositor carioca, roqueiro brazuca dos anos 80, vem fazer coro aqui a Justiniano, lavrador de Ipirá, que viveu por volta dos primeiros anos do século 20. “…extremamente nervoso, ossudo e muito alto” assim é descrita a figura dentro das crônicas de O Mundo da Minha Infância (1969), do crítico literário e escritor ipiraense Eugênio Gomes.
Conta o escritor que, indignado pela escassez impiedosa de chuvas e já descrente de qualquer reza, o pobre coitado que deveria, por vida, se ocupar de estrovengas, sementes, arados e ser, sei lá, temente a Deus, perdeu a cabeça, armou sua espingarda e, tal como o poeta, eivado de mágoas, deu um pipôco no sol. No sol. Um tiro na cara de Apolo, no para-brisa da carruagem de Hélios. Justiniano, como Cazuza, também era um cara. E não por acaso também foi chamado de louco, beatas se benziam quando lhe viam. O outro, moderno, cobaia de deus – como dizia, era do tipo, como se diz, muito louco.
Cheios de mágoa também, mas sem o conflito divino, cantam os versos deIncelênça pra terra que o sol matou, do menestrel Elomar Figueira de Melo. “levanto meus olhos, pela terra seca/ só vejo a tristeza, que desolação/ uma ossada branca fulorando o chão” – assim começa, com essa imagem, a primeira estrofe. As incelências são cantos de guarda e de sentinela. Os versos seguintes, levados pela beleza da melodia, são como dedos em riste mirando no sol: “inté os olhos d’água chorou que secou/ e o sol dessas mágoa/ queimou os imbuzero, os bode e os carnêro, toda a criação/ isso o sol queimou” e vai terminando, com alguma ironia, expondo a justiça insana do sol porque poupou sussarana, onça terrível, e carcará ladrão, um gavião – dois predadores – “isso o sol poupou” encerra. Justo não é, Justiniano diria, talvez. Tupã, Tupi tá puto, dirão certa vez. E o sol sobre a estrada é o sol na cabeça, é o sol, a culpa deve ser do sol.
Culpas & mágoas à parte, o filho da terra que nos legou as histórias dessas pessoas, em cacos da própria memória, teve parte de sua formação também na cidade de Cachoeira, recôncavo baiano. Conta ele que são inesquecíveis as manhãs de bruma ao atravessar a rua da Ponte Nova para ir ao colégio. O nevoeiro. O Paraguassu. A ponte. Guardo lembranças antigas. Atravessar a Dom Pedro II com toda a família numa variante azul e a sonoridade dos lastros chocando ferro e madeira. O ano era 1985. Um seéculo antes, 1885, a ponte, importada por inteira da Inglaterra, foi entregue à população. Ela pertence ao tempo de Justiniano, o justiceiro meeiro.
De cachoeira, pertencem os poetas Damário da Cruz e João de Moraes Filho. Tive o prazer da amizade de um, que já partiu, e tenho a irmandade do outro, com quem convivi. E de travessias, Damário escreveu Navegantes: “De mim/ exijam pouco… pois o tempo que me resta/ é louca busca/ de atravessar o sol”. Também são dele os versos: “quanto mais eu sonho com cachoeira/ mais amanheço em Nova York”. Eugênio Gomes anota que, andando por Nova York, onde também morou, ao ver os arranha-céus daquela cidade, somente lhe vinha à cabeça o sobrado de um seu Manoel Adolfo, com seu pitoresco telhado de três águas. O velho sobrado se destacava imponente na humilde praça de sua cidade natal nos anos de 1900 e alguma coisa.
No mais recente sucesso da Netflix, Não olhe pra cima, o ator Ron Perlman – o neandertal gigante de A Guerra do Fogo, protagoniza talvez a cena de mais arrelia do filme. Desesperado pela ameaça de um grande cometa que devastaria a Terra, um ex-militar de pistola, aos gritos, dispara, ridículo, uma sequência de tiros contra esse corpo celeste de calda longa. Que lombra!
João de Moraes, quase um século e tanto depois do justo tiro de Justiniano, em seu segundo livro, Portuário, literalmente lançado em minigarrafas nos mares do Caribe em Cartagena das Índias (Colômbia), compõe o poema disfarce e olhe, onde se lê: “o sol bate mais forte na cara do homem que capina a esperança por um prato de comida/ quieta, menino, não dispare contra o sol, ele esfria de cansaço”. O sol, diz a ciência, se apagará em cerca de 7,5 bilhões de anos. O danado, confirmam ainda os cientistas, antes do fim, vai se expandir e se contrair, só pra contrariar, penso eu. Penso também que talvez de cansaço somente, não por vingança, quisesse o nosso artilheiro, ossudo e muito alto, de espingarda, matar o astro-rei. Vai saber.