Exposição preserva a memória e a afetividade de desaparecidos e mortos pela ditadura

cultura

Centro MariAntonia da USP apresenta Ausências Brasil, que conta a história de 12 opositores do regime militar brasileiro por meio de fotografias feitas antes e depois do seu desaparecimento ou morte

Jana fez Biologia; Fernando Augusto, Direito. Luiz estudou Ciências Sociais. Ana Rosa, Química e Filosofia. Todos tinham entre 25 e 32 anos e desapareceram devido à ação repressiva do regime militar brasileiro. Esses são só alguns dos 434 nomes que compõem a lista de mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014. Foi visando conservar a memória e os sonhos interrompidos de pessoas como essas, hoje ausentes, que o fotógrafo argentino Gustavo Germano organizou a exposição Ausências Brasil, em cartaz no Centro MariAntonia da USP desde o último dia 31 de março — data que marcou os 61 anos do golpe de Estado de 1964 e inaugurou a ditadura no País. A mostra apresenta duplas de fotos de diferentes mortos e desaparecidos, nas quais a diferença principal da primeira para a segunda, além da passagem de tempo, é sempre a ausência da pessoa em questão.

A ideia foi aplicada pelo fotógrafo pela primeira vez em 2007, na Argentina, com desaparecidos da ditadura militar argentina (1976-1983) e, posteriormente, no Uruguai (cuja ditadura durou de 1973 a 1985). Ausências Brasil foi exposta pela primeira vez no País em 2013 e, neste ano, já percorreu outras instituições – como a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – até chegar no Centro MariAntonia. Com apoio do Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo, a mostra fica em cartaz até 16 de maio, com entrada grátis.

Do sorriso à tristeza

Ao todo, Ausências Brasil exibe 12 duplas de fotos de 12 pessoas diferentes. Na primeira foto de cada dupla, as pessoas aparecem em família, em casal ou sozinhas, e o sorriso prevalece. Na segunda, com a ausência da pessoa desaparecida, o foco volta-se para a seriedade, para a tristeza e para o vazio daqueles que a perderam. Em conversa com o Jornal da USP, o fotógrafo Gustavo Germano, que hoje vive na Espanha, afirma que a ideia da exposição surgiu devido a uma experiência pessoal: seu irmão, Eduardo, foi detido e desapareceu durante a ditadura militar argentina, em 1976. Trinta anos depois, Germano retornou ao seu país natal para concretizar essa ideia. “O meu objetivo era representar, através da fotografia, o que significam os efeitos devastadores da desaparição forçada como método de repressão política”, explica. 

Para o fotógrafo, a disposição das fotos, feita sempre no mesmo lugar da imagem original, também tem um papel a cumprir, ao passar do universo afetivo para o vazio, simbólico e concreto, causado por essa ausência. “Não é a imagem típica do desaparecido, que é uma foto cortada, onde a pessoa está isolada de todo o universo afetivo, mas, sim, de onde o tiraram, mostrar também de onde o tiraram.” No panfleto da exposição, a palavra “Ausências” é escrita sem a letra “i” – exceto o pingo -, como forma de representar, também, a ausência de algo importante e que sempre esteve ali.

Homem de óculos.

O fotógrafo Gustavo Germano – Foto: Reprodução/Arteversa – UFRGS

As 12 pessoas mortas ou desaparecidas retratadas na exposição eram originárias de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande Sul, estados para onde o fotógrafo viajou durante a produção da mostra. Abaixo de cada dupla de fotografias, há um QR code que, quando escaneado, dá acesso a um curto vídeo com a história de vida daquela pessoa, de seu nascimento até seu desaparecimento ou morte, além de trazer uma audiodescrição das fotos. Com isso, o visitante passa a saber mais detalhes sobre os gostos e relações daquelas pessoas (afetividade) e sobre sua atuação na militância (desde a escola, passando pela universidade e chegando a partidos políticos), até quando foram presas pela ditadura. 

A exposição conta, por exemplo, a história de Virgílio Gomes da Silva, 38 anos, que comandou o sequestro de Charles Burke Elbrick, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em 1969. Ele estava vinculado à Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo ligado a Carlos Marighella que nasceu de um braço dissidente do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Também são retratados três homens relacionados a uma mesma mulher, Iara Xavier Pereira. Seus irmãos Iuri e Alex foram presos, torturados e assassinados pelo regime militar, fato que também ocorreu com seu marido, Arnaldo Cardoso Rocha.

Uma foto que mostra um casal entrando na igreja para casar e outra foto que mostra uma senhora na mesma igreja.
Uma foto mostrando um casal sentado num muro baixo e outra foto mostrando uma mulher sozinha sentada no mesmo banco.

Virgílio Gomes da Silva (na foto à esquerda) e Iuri Xavier Pereira (na foto à direita) foram filiados ao PCB e à ALN até serem assassinados em 1969 e em 1972, respectivamente. Os restos mortais de Virgílio nunca foram encontrados – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Brasil: pioneiro no pior sentido

Germano conta que decidiu expandir o estudo de Ausências para fora da Argentina ao ver a repercussão do projeto em outras exibições por países que também haviam passado por regimes autoritários na América Latina. Ele cita o Brasil como um exemplo negativo: “O primeiro país onde se aplicou a desaparição forçada como método foi o Brasil. Em outras ditaduras, como no Chile, Argentina e Uruguai, demorou um pouco mais. No Brasil, isso já acontecia em 1968”. O fotógrafo enfatiza, também, a influência dos Estados Unidos nas práticas de desaparecimento forçado por meio da chamada Operação Condor, campanha de repressão das ditaduras latino-americanas que teve o apoio estadunidense. “Esse método tem ligação com a escola americana na ideia de combate ao comunismo, mas nasce antes disso, com os franceses, primeiro na Coreia, nos anos 1950, e depois na Independência da Argélia, já nos anos 1960.”

Como é informado na exposição, em 2024 a presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Augusta Gonzaga, afirmou que o número de desaparecidos e mortos pelo regime militar pode ser muito maior do que aquele divulgado pela Comissão Nacional da Verdade, já que a CNV adotou os critérios presentes na Lei de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995). Essa lei foi negociada com os militares e considera apenas os desaparecimentos e mortes intimamente ligados à resistência à ditadura por meio da militância, o que deixa de fora camponeses, indígenas, vítimas de esquadrão da morte e do surto de meningite dos anos 1970 — todos ligados, de alguma forma, à atuação do regime militar.

Em reportagem no ano passado – também de acordo com textos exibidos em Ausências Brasil -, a Agência Pública destacou que também são excluídos da conta de desaparecidos 208 ossadas da Vala de Perus, em São Paulo, descobertas em 1993, que nunca foram identificadas, além de mortos na Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970, quando as Forças Armadas praticamente dizimaram todos os militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Os vídeos nos QR codes da exposição citam várias vezes os enterrados como indigentes no cemitério de Perus e os mortos na Guerrilha do Araguaia.

Uma foto mostrando uma mulher com uma criança e outra foto mostrando uma mulher, no mesmo local.
Uma foto mostrando quatro garotos e outra foto, no mesmo local, mostrando três homens.

Jana Moroni Barroso (na foto à esquerda, em pé) e João Carlos Haas Sobrinho (na foto à direita, o segundo garoto sentado na cerca, da esquerda para a direita) foram sequestrados e mortos na região do Araguaia – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A exposição Ausências Brasil fica em cartaz até 16 de maio, de terça-feira a domingo e feriados, das 10 às 18 horas, no Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antônia, 294, Vila Buarque, em São Paulo, próximo às estações Santa Cecília e Higienópolis-Mackenzie do metrô). Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas no site do Centro MariAntonia e pelo telefone (11) 2648-5202.

*Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro / *Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

Fonte: Jornal da USP /  Foto: Cecília Bastos/USP Imagens


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