Presidente dos EUA, visceralmente contrário ao aborto e ao uso de tecidos fetais em pesquisas científicas, chama de “cura milagrosa” medicamento desenvolvido em células que derivam de feto abortado.
O tratamento contra a covid-19 administrado pelos médicos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se baseou em grande parte na droga experimental Regn-Cov2, desenvolvida através de pesquisas que utilizaram células derivadas de tecido fetal.
O medicamento demonstrou eficácia surpreendente no combate ao novo coronavírus, segundo a equipe médica do presidente, e recebeu elogios rasgados do líder americano, que talvez ignorasse o fato de que aquilo que chamou de “cura milagrosa vinda de Deus” tivesse origem em um feto abortado.
O Regn-Cov2, que estimula a produção de anticorpos, foi desenvolvido pela empresa americana de biotecnologia Regeneron, que pediu à agência reguladora do país, a Food and Drug Administration (FDA), a aprovação em caráter emergencial do uso do medicamento.
O fármaco, que consiste em dois anticorpos monoclonais identificados como Regn10933 e Regn10987, foi desenvolvido para possibilitar uma imunização passiva através de anticorpos neutralizantes sintéticos. Esse desenvolvimento se deu através de uma linhagem de células que derivam de tecido fetal.
Levando-se em conta a forte resistência governo Trump a pesquisas científicas que envolvam tecido fetal e o apoio declarado do presidente ao movimento antiaborto, não deixa de ser contraditório que ele exalte o medicamento como uma espécie de presente divino.
No ano passado, Trump cortou verbas federais para iniciativas nacionais de pesquisas para o tratamento de portadores de HIV e pacientes de câncer que tinham como base o tecido fetal. O Departamento de Saúde dos EUA designou uma comissão especial, que inclui ativistas antiaborto, para monitorar e bloquear projetos de pesquisa. Até agora, estima-se que 13 ou 14 propostas tenham sido excluídas.
Ao discursar em janeiro na 47ª Marcha pela Vida, um evento antiaborto realizado em Washington, Trump disse que “as crianças não nascidas jamais tiveram um defensor mais forte na Casa Branca”, e que “cada criança é um presente precioso e sagrado de Deus”.
O Regn-Cov2 não é desenvolvido em células humanas, mas em células de ovários de hamsters chineses, denominadas CHO. Entretanto, a eficácia dos anticorpos foi testada em células derivadas de tecidos de rins retirados de um feto abortado na Holanda, nos anos 1970.
Essa linhagem de células, chamada de 293T, foi utilizada em várias pesquisas em laboratórios em todo o mundo. Os criadores do Regn-Cov2 as utilizaram para produzir pseudopartículas do vírus, que são estruturas semelhantes a esses organismos e que contém as chamadas espículas protéicas que o coronavírus Sars-Cov-2 utiliza para invadir as células humanas. Apenas dessa forma seria possível assegurar a eficácia dos anticorpos no combate ao vírus causador da pandemia de covid-19.
A Regeneron não negou o uso das células 293T, mas, mesmo assim, argumentou que estas não devem ser consideradas como tecido humano, uma vez que foram desenvolvidas em laboratório. “Depende da forma como se quer analisá-las”, disse uma porta-voz da empresa de biotecnologia. “Entretanto, as linhagens das 293T disponíveis hoje não são consideradas tecidos fetais, os quais nós não utilizamos.”
Células originalmente derivadas de fetos abortados são com frequência utilizadas por cientistas em diversas pesquisas em áreas importantes da medicina, inclusive no desenvolvimento de vacinas.
RC/dw/afp