Faz falta um Belchior

cultura social

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes (conhecido Belchior) — Sobral (CE), 26 de outubro de 1946 – Santa Cruz do Sul (RS), 30 de abril de 2017 — rejuvenesceu a juventude que desde a década de 1970 torna realidade o prenúncio de que “uma nova mudança em breve vai acontecer”.

Quando suas composições começaram a se espalhar, o Brasil parecia velho, desgastado, obscuro, perdido no tempo. Era o país da ditadura militar, da crise econômica, da falta de emprego, da ausência de oportunidades. Naquele contexto, a frase “precisamos todos rejuvenescer”, da canção “Velha roupa colorida” (1976), soava como música para os ouvidos dessa juventude.

Belchior expôs a realidade da vida ao cantar que sua alucinação era suportar o dia-a-dia e seu delírio era a experiência com coisas reais. Mas sem renunciar à esperança. Não queria regra nem nada — especialmente as da ditadura —, porque tudo estava “como o diabo gosta”. Considerava-se “um sujeito de sorte, porque, apesar de muito moço”, se sentia “são, salvo e forte”.

Foto: mídias socias

Naqueles tempos de terror oficial, anunciou que tinha “sangrado demais” e “chorado pra cachorro”. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, avisou. E que se quisessem matá-lo deveria ser logo, porque a noite tinha um compromisso e não podia faltar.

Enquanto isso, sua missão era despertar consciências dizendo por onde andara, fazendo com que seu canto torto feito faca cortasse a carne dos recalcitrantes. “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve, correta, branca, suave, muito limpa, muito leve.

Sons, palavras, são navalhas, e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém, mas não se preocupe, meu amigo, com os horrores que eu lhe digo; isso é somente uma canção, a vida realmente é diferente, quer dizer, a vida é muito pior”, cantou, no espírito de que “eles venceram e o sinal está fechado pra nós, que somos jovens”. Fazia falta ao Brasil da década de 1970 um sujeito — ou um rapaz latinoamericano — como Belchior. No Brasil atual, faz mais falta ainda.

Belchior é uma das figuras mais incríveis e misteriosas da música brasileira. Suas músicas não foram feitas somente para serem escutadas e admiradas, mas para serem vividas e foi assim que ele mesmo fez, abandonando os palcos para viver essa vida, desaparecendo completamente num mundo onde é praticamente impossível desaparecer.

Depois de ter lutado muito para consolidar o seu lugar entre os maiores músicos brasileiros:

“A música popular brasileira precisa perder o medo dos ídolos. Não estamos interessados em idolatrias, em mitologias. Todos os mitos são iguais aos sabonetes.”

Mas talvez o mais surpreendente é que mesmo ausente Belchior manteve uma legião de fãs fiéis que se dividiram entre os que nunca perderam a esperança de que ele voltaria e os que acreditavam que ele tinha encontrado o seu caminho e respeitava essa sua decisão.

Toda a sua arte era a mais pura expressão da sua alma, da sua essência, então nesse episódio de oito frases incríveis, temos algo que vai além de simples frases inspiradoras, temos uma verdadeira filosofia estruturada. Além do impacto singular de cada frase, vamos ver como elas conversam entre si de forma harmoniosa, formando uma corrente de pensamento interligada e coesa.

1- “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro; ano passado eu morri,
mas esse ano eu não morro.”

Quem nunca teve um ano ruim, um ano que parece que tudo deu errado? pois então, é isso que Belchior compara com ‘morrer’. Ele, inclusive, diz ter sangrado demais, com referência a tudo que sofreu no ano que passou, fazendo que a metáfora para a morte seja ainda mais expressiva. Mas apesar das aparências essa música é bem otimista, o próprio título é Sujeito de Sorte. Toda a dor que passou não vai se repetir. Se no ano passado ele sente que morreu, esse ano não, esse é o ano de viver.

Ele ainda completa esse pensamento de uma forma que é tão óbvia quanto
genial: “Não posso sofrer no ano passado” – é literalmente impossível sofrer no passado. Quando sofremos pelo que passou, estamos sofrendo no presente por coisas que já aconteceram, que não estão mais aqui, o que restou foi o sentimento, a lembrança de ter sangrado, mas já é hora de deixar isso para trás, no ano passado e viver o agora, o ano presente.

2 – “O passado é uma roupa que não nos serve mais”. 

Quando eu disse que as frases de Belchior conversam entre si não foi por acaso.
Aqui ele explora o outro lado do passado, a nostalgia. Por mais maravilhoso que
tenha sido o passado, ele não se repete nunca mais. As coisas mudam o tempo todo e não temos outra escolha senão aceitar.

Nessa música belchior diz: “O que era jovem e novo, hoje é antigo, precisamos todos rejuvenescer.” – isto também é visto como uma crítica ao comodismo do estado em que a música se encontrava na época, que recusava qualquer forma nova de expressão e tentava manter os mesmos artistas de maneira intocável, sem aceitar as mudanças e as renovações inevitáveis que surgiam.

Por outro lado também é uma bela releitura da filosofia de Heráclito, de
aproximadamente 535 anos antes de Cristo, que dizia que nada é permanente, exceto a mudança e que ninguém se banha no mesmo rio duas vezes, remetendo à ideia de que tanto a água quanto a pessoa já terão mudado na segunda vez em que entrar em contato.

Da mesma forma Belchior diz que a velha roupa colorida, que antes nos servia, não nos serve mais, e devemos portanto aceitar a mudança.

3 – “tenho pressa de viver, mas quando você me amar, me abrace e me beije bem devagar, que é para eu ter tempo de me apaixonar.”

Essa é, na minha opinião, uma das frases que melhor resume o coração jovem, aquela necessidade de viver intensamente, experimentar o mundo por completo e fazer tudo o mais rápido possível, como se não houvesse amanhã, até que em meio a toda essa tempestade surge a breve calmaria do momento a dois, quando o casal se conhece, se encontra, se encosta e cada segundo é sagrado. Quando esquecermos do passado e paramos de correr atrás do futuro para vivermos somente o presente. Quando dois corpos viram um é como se o mundo de repente deixasse de correr em velocidade dobrada e tudo ficasse em câmera lenta, dando tempo para a paixão nascer aos poucos, florescendo em meio ao caos.

4 – “Viver é melhor que sonhar e eu sei que o amor é uma coisa boa, mas
também sei que qualquer canto é menor que a vida de qualquer pessoa.”

A vida é melhor que o sonhos, a vida é maior do que a música. Belchior nos
mostra aqui que não importa o quão magnífico e espetacular seja o seu sonho, a vida sempre vai ser mais incrível. Não importa o quão perfeitas sejam a melodia, a letra e a composição, a música nunca vai ser mais importante do que a vida em si.

Se Nietzsche dizia que “sem a música a vida seria um erro”, Belchior parece
acrescentar que sem a vida, a música não seria nada. É interessante como esse tema é recorrente na obra de Belchior. Ele, que parece totalmente devoto a arte, a música, a poesia sempre faz questão de deixar claro que o seu amor verdadeiro é a vida e ela sempre virá em primeiro lugar. Prestem bem atenção no que ele queria dizer, por mais difícil que seja concordar com Belchior e botar a arte em segundo plano, é simplesmente impossível discordar. A vida é o combustível e a razão da arte, o começo e o fim, a causa e a consequência.

5 – “Não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”

Sabe aquela sensação de sempre estarmos correndo atrás de algo para
preencher os vazios das nossas vidas? queremos sucesso, felicidade, dinheiro, etc. Racionalmente nós sabemos o que queremos, mas quando alcançamos esses objetivos, não nos sentimos completos, queremos sempre mais. Parece que Belchior entende que não adianta seguir o que a cabeça pensa, o caminho é mais profundo. A vida é para ser vivida e não planejada. No dia a dia, no momento presente, o que realmente importa é o que a alma deseja.

Vale refletir: será que estamos correndo atrás dos objetivos certos, será que sabemos o que realmente precisamos, o só sabemos o que queremos
momentaneamente?

6 – “Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém sem querer ferir ninguém.”

Mais uma vez belchior mostra que a sua música vai refletir diretamente no mundo real, que quando ele se expressa através da sua arte, existem grandes chances de alguém sair ferido.

Como disse Jordan Peterson na famosa entrevista do Channel 4: “Para poder
pensar, você tem que arriscar a ser ofensivo”. Essa é a premissa da liberdade de expressão, em busca da verdade você pode machucar pessoas que discordam de você, da mesma forma em que elas podem te machucar em busca do mesmo. Se tentarmos limitar isso, teremos como consequência o totalitarismo, uma realidade, infelizmente, não muito distante do que vivemos hoje, onde qualquer discurso contrário ou politicamente correto é considerado ofensivo e fica cada vez mais perto de ser censurado por completo.

Em outra música, A Palo Seco, Belchior é mais enfático ainda: “Eu quero ´[e que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês”. Aqui cabe a famosa frase de Evelyn Beatrice Hall sobre a filosofia de Voltaire: “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.

7 – “Mamãe quando eu crescer eu quero ser um grande milionário socialista. De carrão eu chego mais rápido à revolução”.

Belchior realmente não tava preocupado em agradar e, talvez, paradoxalmente seja por isso que ele foi um dos únicos músicos que podemos dizer que caíram nas graças tanto da esquerda, quanto da direita e não se comprometia com nenhum dos lados e tinha liberdade para criticar ambos. No caso dessa música, especificamente a hipocrisia da famosa esquerda caviar.

Nessa frase ele ironiza a contradição de quem prega uma realidade e vive outra, da mesma forma que ele confronta Caetano em algumas músicas como em Fotografia 3/4 com a frase: “Veloso, o sol não é tão bonito para quem vem do norte e vai viver nas rua”, com referência ao otimismo da música Alegria Alegria.

Belchior não fugia de polêmicas e nem tentava se encaixar nos padrões
impostos pelo pessoal que monopolizava a MPB. Como vimos antes, ele queria ser a inovação, abre aspas: “Eu acho que até agora a gente tem feito uma arte de evasão, eu quero é que o meu trabalho seja um trabalho de confrontação como real”.

8 – “Amar e mudar as coisas me interessa mais”

mesmo analisando somente essas oito frases, não é difícil notar que nas
músicas de Belchior a vida é a temática central, mais especificamente, viver a vida intensamente.

Nessa música ele diz que não ta interessado em teorias, fantasias , tinta pro
rosto, romances astrais, todas essas coisas que permeiam o mundo dos
intelectuais acadêmicos e revolucionários de sofá. Ele descarta a parte teórica e enfatiza a prática.

Mesmo Belchior, que era um ávido leitor, com extenso conhecimento poético e literário, entendia explicar a vida e teorizar sobre a existência não é tão importante quanto viver em si, quanto existir. O que interessa mesmo é amar e mudar as coisas, agir, sentir, compartilhar essa jornada na Terra com outros seres humanos. Não é se refugiando em um quarto, se isolando em uma montanha que vamos experimentar a vida, que vamos mudar as coisas, que vamos amar os outros.

Nessa mesma música ele usa uma frase que fecha esse pensamento de forma perfeita: ” A minha alucinação é suportar o dia a dia e o meu delírio é a experiência com coisas reais.

E é isso aí, ouvir, ler e experimentar Belchior é ter uma verdadeira aula, é
engrandecer a alma. Não era só inteligência e cultura, não era só um poeta nem só um músico. Era alguém que tinha uma relação fiel com a vida, seja nos bons ou nos maus momentos, mas sempre realisticamente apaixonado por viver e sempre pronto para se reerguer. Então, finalizando com uma frase da sua música Hora do Almoço:
“Eu ainda sou bem moço para tanta tristeza, deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a Morte ou coisa parecida e nos arrasta moço sem ter visto a vida”.

Esse texto é uma transcrição do vídeo 8 Frases de BELCHIOR pra MUDAR A SUA VIDA do canal Epifania Experiência e do Site outroladodanoticia.com.br por Osvaldo Bertolino Jornalista, escritor e historiador. Nasceu em 1962, em Maringá, Noroeste do estado do Paraná, e mora atualmente em Brasília. 

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