Exposição na Pinacoteca mostra artista complexo que atuou em diversas frentes e pensou o Brasil dos anos de chumbo
Flávio Império: Tens a Vontade e Ela É Livre é o nome da nova exposição em cartaz na Pinacoteca de São Paulo. Com curadoria de Yuri Quevedo, traz um panorama da obra do cenógrafo, figurinista, artista visual, arquiteto, designer gráfico e professor da USP. Em sua breve vida, Flávio Império (1935-1985) manteve uma prática artística crítica e engajada e tornou-se um dos renovadores da cenografia teatral brasileira, trabalhando com grupos seminais dos anos 1960.

A exposição ocupa três salas do edifício Pina Estação, que abrigam a trajetória do artista entre as décadas de 1960 e 1980. São cerca de 300 obras, entre pinturas, serigrafias, colagens, fotografias, vídeos e maquetes, trazendo produções realizadas sobretudo durante o período da ditadura militar (1964-1985). Parte delas foi emprestada pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que desde 2016 guarda o acervo de Império, com mais de 3 mil itens doados pela família. Para a exposição, o IEB cedeu 38 originais, entre desenhos, maquetes, colagens, projetos de cenografia e figurinos.
O curador Yuri Quevedo conta que Império foi um personagem complexo e atuante em diversas áreas, características que a exposição buscou contemplar. Isso justifica a organização das salas por décadas, em vez de uma divisão mais tradicional por técnicas ou áreas de atuação. O passeio pelas galerias conta a história da vida e das inquietações do artista, materializadas nos suportes que mais lhe convinham, sem restrições.
Essa disposição permitiu também, aponta Quevedo, evidenciar como os anos da ditadura militar brasileira não foram uniformes, mas sim compostos de diferentes momentos. O período pós-golpe, o endurecimento do regime com o Ato Institucional Número 5 (AI-5) e a abertura gradual a partir da segunda metade dos anos 1970 ganham relevo no percurso artístico de Império, que respondeu a cada ocasião dando direcionamentos diferentes à sua produção.

“Retomar a figura de Flávio Império é complexificar a visão das artes visuais que temos daquela época”, indica Quevedo. Para o curador, o trânsito de Império por várias linguagens e grupos o torna um bom retrato da cena do período. “O cenário era muito mais complexo e o pensamento progressista era muito mais diverso. Flávio mostra isso nele próprio, como que dizendo ‘todos somos contra a ditadura, mas somos de jeitos diferentes’.”
Quevedo é um especialista na obra de Império, com 16 anos de pesquisas sobre o artista e uma dissertação de mestrado apresentada em 2019 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP, mesma instituição em que o homenageado estudou e foi professor. De acordo com o curador, Império ficou à margem das grandes antologias das artes plásticas do País e a exposição procura mudar esse quadro.
Segundo Quevedo, Império é central, por exemplo, para se entender a repercussão que o teatro teve nas artes plásticas. Efeito sentido também na obra de outros artistas, mas ainda pouco evidenciado. “Flávio é quase um ponto cego dessa produção, que precisa ser retomado para se entendê-la”, afirma o curador.
Refugos, misticismos e mangarás
Está ali o burguês com aspecto de rato, em UDN (Respeitosamente) o Extinto Era Muito Distinto (1965). E também as conservadoras senhoras da elite, retratadas feitas de lixo em Marchadeira das Famílias Bem Pensantes (1965). E em L’Uomo (1966) é o próprio ser humano que surge montado a partir de armas e engrenagens.
A primeira sala da exposição é batizada como A Pintura Nova É a Cara do Cotidiano. Nela foram reunidos trabalhos dos anos 1960, a maioria pós-1964. Traduzem a reação de Império e dos grupos aos quais estava associado ao golpe militar. As relações profundas entre teatro e produção plástica se destacam, traduzindo o envolvimento do artista com os palcos. Nessa época, Império integrou tanto o Teatro de Arena, dirigido por Augusto Boal, quanto o Teatro Oficina, sob o comando de José Celso Martinez Corrêa.
As figuras que apoiaram e financiaram a ditadura surgem em sátiras impiedosas, dirigidas também ao imperialismo estadunidense. Com muito uso da assemblagem– técnica de colagem de materiais diversos sobre a tela –, Império constrói com materiais diversos, fazendo uso dos refugos da sociedade moderna. São restos de gesso e madeira, cadeados, engrenagens velhas e crucifixos corroídos pelo tempo.


É como se o artista buscasse fundir essas figuras conservadoras à precariedade, estabelecendo um diálogo com a política brasileira. Nessa dinâmica, surge com força a ideia de Império a respeito do neutro e do máximo teatral. O neutro seria o objeto em cena visto como ele é. Já o máximo, sua transformação em outra coisa. Como as engrenagens que compõem a cabeça da mulher de Marchadeira. Era importante que o público visse as duas coisas, pois cabia a ele fazer a obra.
Quevedo explica que esses trabalhos dizem muito dos anos 1960, da visão específica que uma parte da comunidade artística tinha do povo. A partir das leituras de orientação marxista, o povo era pensado como classe trabalhadora e cabia ao artista o papel de ajudá-lo a se identificar para tomar lugar na luta de classes. Esse foi o grande norte do trabalho do Teatro de Arena, por exemplo, que aparece ao lado do Teatro Oficina em fotos, cartazes e desenhos feitos por Império para seus cenários e figurinos.
A segunda sala, intitulada Aspectos do Inconsciente Coletivo na Comunicação de Massas, se concentra principalmente nos trabalhos que Império realizou na virada dos anos 1960 para os 1970. Trata-se de obras mais introspectivas, em grande parte realizadas sob o impacto do endurecimento da ditadura após o AI-5.

Nessa época, o artista viu sua rede de relações e de trabalho se desarticular. Os grupos de teatro, alvo de perseguições, se dispersaram. Sua irmã e seu cunhado foram presos, assim como os companheiros do movimento Arquitetura Nova, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, encarcerados por um ano. O próprio Império também acabaria detido por alguns dias.
Completamente perdido, como escreveu em carta para a amiga Renina Katz, o artista voltou-se para uma pesquisa que chamou de “aspectos do inconsciente coletivo na comunicação de massa”. Tentava encontrar arquétipos do inconsciente coletivo brasileiro como uma resposta aos novos tempos. “Ele se volta para dentro de si para reaver essa coletividade”, conta Quevedo.
Os quadros desse período trocam a sátira e a assemblagem por simbolismos e ambiguidades. Mitos e retratos de amigos e familiares se confundem, fazendo surgir figuras místicas e, simultaneamente, autobiográficas. É o que se pode ver em Retrato de Família (1973), Ogum ou a Descida do Corcovado (1972) ou nas serigrafias de Sou Pedro, Sou Antônio e Sou João, de 1972.
Para Quevedo, há uma relação muito forte com a máscara, oriunda do teatro. Se Império passou a década anterior vestindo atrizes e atores com seus figurinos e criando arquétipos, agora levava o processo para as artes plásticas. Nisso, se antes suas figuras apareciam fragmentadas, nessa fase são retratadas por inteiro, na busca por uma unidade mística.
A partir desse momento há também um interesse de Império pelo que está em vias de desaparecer. O artista se engaja então em uma batalha pela memória. Isso aparece na exposição com o registro em Super 8 realizado em seu bairro natal, a Bela Vista – o popular Bixiga –, em São Paulo, feito originalmente para uma disciplina de pós-graduação que cursava na USP tendo como professor o geógrafo Aziz Ab’Saber.


Império tentava de alguma maneira preservar as formas de vida que testemunhava estarem desaparecendo. Mas ele iria além do registro, conta Quevedo, assumindo a redação do projeto de tombamento da Vila Itororó e seu entorno, no Bixiga, assim como escreveria também o projeto de tombamento do próprio Teatro Oficina.
Os trabalhos com cenografia e figurino não deixaram de ocupar o artista nessa época. Manteve uma profícua parceria com o diretor Fauzi Arap e atuou na montagem de uma série de espetáculos musicais. A exposição destaca suas contribuições para os shows de Maria Bethânia, trazendo os desenhos para o espetáculo Rosa dos Ventos (1971) e a maquete para a cenografia de Pássaro da Manhã (1977). Nela, da noite escura lá no fundo, surge a alvorada a partir dos tecidos que descem do palco para envolver o público. Estão expostos também estudos não utilizados para a capa do disco Doces Bárbaros (1976), fruto da apresentação que reuniu Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Bethânia e teve também cenografia e figurinos de Império.
A terceira sala, Mãos e Mangarás, trata do interesse do artista pelo cotidiano. São produções que abarcam a virada para os anos 1980 e chegam até sua morte, em 1985. É o momento em que Império volta a morar na casa em que nasceu, no Bixiga, e procura uma vida mais prosaica. Não queria mais ser um artista notório, mas um artesão, comenta Quevedo.
Dos fundos do seu quintal, surgem então os corações de banana – os mangarás – que se tornam temas de muitas gravuras e telas dessa época. Quevedo explica que a atenção do artista não estava exatamente no objeto, mas no estudo da interação das cores. Contudo, as estruturas vegetais fálicas e pendentes também apontam para um interesse a respeito da sexualidade no trabalho de Império, tema ainda inexplorado em sua carreira. Isso fica explícito em obras como Seis Mangarás (1981) e Mangará-Phallus (s/d).
A questão das máscaras volta a aparecer aqui, reunida agora em uma série de representações de tipos indígenas. À primeira vista, podem soar como idealizações ingênuas e até preconceituosas, sugere Quevedo. Mas um olhar atento não deixa dúvidas da coerência de Império. “É mais um carnaval do que uma representação das pessoas indígenas”, analisa o curador. Carnaval que também está presente nos desenhos do artista para a decoração da Avenida Tiradentes, por ocasião dos festejos de 1984.

Do Bixiga para as artes
Flávio Império nasceu em 19 de dezembro de 1935, em São Paulo. Passou a infância no bairro do Bixiga e aos 5 anos já participava dos balés apresentados anualmente na escola. No ensino médio, escreve seus primeiros textos sobre teatro para os jornais estudantis.
No início dos anos 1950, realiza suas primeiras pinturas. Em 1956, ingressa no curso de Arquitetura da FAU, mesma época em que se matricula no curso de Desenho da Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Datam desse período também seus primeiros trabalhos no teatro, atuando como cenógrafo, figurinista e diretor do grupo amador da Comunidade de Trabalho Cristo Operário, na periferia de São Paulo.

Sua aproximação com o Teatro de Arena aconteceria no ano seguinte, com o projeto gráfico e os desenhos para o programa de A Falecida Senhora Sua Mãe. Em 1959, também faria o projeto gráfico e os desenhos para o programa de outro espetáculo do Arena: Chapetuba Futebol Clube. Assinaria ainda naquele ano a primeira cenografia e figurino para o grupo, na montagem de Gente Como a Gente.
Seu trabalho com o Arena viria a revelar os aspectos da produção teatral, deixando de lado o ilusionismo da cena. Em coerência com a proposta geral do grupo, elementos construtivos da cenografia são expostos, fazendo contato com a arquitetura brasileira praticada desde os anos 1940 e estudada por Império na graduação.
Em 1961 forma-se na FAU e no ano seguinte passa a integrar seu corpo docente, permanecendo até 1977. Também se torna professor responsável pelo curso de Cenografia da Escola de Arte Dramática (EAD), onde fica até 1966. São de 1962 também as primeiras cenografias e figurinos para o Teatro Oficina, nas montagens de Um Bonde Chamado Desejo e Todo Anjo é Terrível.
Suas primeiras exposições de artes plásticas acontecem em 1965, nas coletivas Opinião 65, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, e Propostas 65, na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo. Faz também nesse ano a cenografia e o figurino para Arena Conta Zumbi.
A Galeria Goeldi, no Rio de Janeiro, e a Galeria Teatro de Arena, em São Paulo, recebem suas primeiras exposições individuais em 1966. Enquanto se firmava como artistas plástico, acumula prêmios como cenógrafo e figurinista, que só iriam aumentar nas décadas seguintes.
Como arquiteto, integra ao lado de Sérgio Ferro e Rodrigo Levèfre o movimento Arquitetura Nova, que, em busca de soluções populares, trabalha com elementos usados pelo próprio povo em suas construções. Nesse espírito, participa em 1967 da elaboração dos projetos da Escola Normal e Ginásio Estadual em Brotas, do Instituto de Educação Sud Menucci, em Piracicaba, e do Ginásio Estadual de Vila Ercília, em São José do Rio Preto, todos no Estado de São Paulo.
Em 1968, faz a cenografia e o figurino para Roda Viva, texto de Chico Buarque dirigido por José Celso, fora do Teatro Oficina, no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. Meio missa, meio programa de TV, o conceito de Império mostrava seu fascínio pelos programas populares, como o comandado por Chacrinha. Também faz naquele ano sua estreia na direção, com Os Fuzis de Dona Tereza, peça do Teatro dos Universitários de São Paulo (Tusp).


Nos anos 1970, enquanto aumenta sua produção em artes visuais, inicia a parceria com Fauzi Arap, assumindo a cenografia e os figurinos de espetáculos musicais. Também segue trabalhando no teatro, destacando-se nas montagens de Réveillon (1975), Pano de Boca (1976) e A Falecida (1979). Nesta, arranca elogios do autor, Nelson Rodrigues, que originalmente havia indicado que não deveria haver cenário nenhum no palco.
Império morreria em 7 de setembro de 1985, em decorrência do HIV, aos 50 anos, mesmo ano em que voltava à docência na FAU. Não teve tempo de se tornar um artesão da democracia.
A exposição Flávio Império: Tens a Vontade e Ela é Livre, fica em cartaz até 1o de fevereiro de 2026, de quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 18h, no Edifício Pina Estação (Rua General Osório, 99, Santa Ifigênia, em São Paulo).
*Estagiária sob orientação de Moisés Dorado

Flávio Império: tens a vontade e ela é livre, é a nova exposição em cartaz na Pinacoteca de São Paulo. Com curadoria de Yuri Quevedo, traz um panorama da obra do cenógrafo, figurinista, artista visual, arquiteto, professor e designer gráfico. Em sua breve vida, Império (1935-1985) manteve uma prática artística crítica e engajada e tornou-se um dos renovadores da cenografia teatral brasileira, trabalhando com grupos seminais dos anos 1960.
A exposição ocupa três salas do edifício Pina Estação, que abrigam a trajetória do artista entre as décadas de 1960 e 1980. São cerca de 300 obras, entre pinturas, serigrafias, colagens, fotografias, vídeos e maquetes, trazendo produções realizadas sobretudo durante o período da ditadura militar (1964-1985). Parte delas foi emprestada pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que desde 2016 guarda o acervo de Império, com mais de três mil itens doados pela família. Para a exposição, o IEB cedeu 38 originais, entre desenhos, maquetes, colagens, projetos de cenografia e figurinos.
Quevedo conta que Império foi um personagem complexo e atuante em diversas áreas, características que a exposição buscou contemplar. Isso justifica a organização das salas por décadas, em vez de uma divisão mais tradicional por técnicas ou áreas de atuação. O passeio pelas galerias conta a história da vida e das inquietações do artista, materializadas nos suportes que mais lhe convinham, sem restrições.
Essa disposição permitiu também, aponta Quevedo, evidenciar como os anos da ditadura militar brasileira não foram uniformes, mas sim compostos por diferentes momentos. O período pós-golpe, o endurecimento do regime com o AI-5 e a abertura gradual a partir da segunda metade dos anos 1970 ganham relevo no percurso artístico de Império, que respondeu a cada ocasião dando direcionamentos diferentes a sua produção.
“Retomar a figura de Flávio é complexificar a visão das artes visuais que temos dessa época”, indica Quevedo. Para o curador, o trânsito de Império por várias linguagens e grupos o torna um bom retrato da cena do período. “O cenário era muito mais complexo e o pensamento progressista era muito mais diverso. Flávio mostra isso nele próprio, como que dizendo ‘todos somos contra a ditadura, mas somos de jeitos diferentes’”.
Quevedo é um especialista na obra de Império, com 16 anos de pesquisas sobre o artista e uma dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e de Design (FAU) da USP, mesma instituição em que o homenageado estudou e foi professor. De acordo com o curador, Império ficou à margem das grandes antologias das artes plásticas do país e a exposição procura mudar esse quadro.
Segundo Quevedo, Império é central, por exemplo, para se entender a repercussão que o teatro teve nas artes plásticas. Efeito sentido também na obra de outros artistas, mas ainda pouco evidenciado. “Flávio é quase um ponto cego dessa produção, que precisa ser retomado para se entendê-la”, afirma o curador.
Refugos, misticismos e mangarás
A primeira sala da exposição é batizada como A pintura nova é a cara do cotidiano. Nela foram reunidos trabalhos dos anos 1960, a maioria pós-1964. Traduzem a reação de Império e dos grupos aos quais estava associado ao golpe militar. As relações profundas entre teatro e produção plástica se destacam, traduzindo o envolvimento do artista com os palcos. Nessa época, Império integrou tanto o Teatro de Arena, dirigido por Augusto Boal, quanto o Teatro Oficina, sob o comando de Zé Celso.
As figuras que apoiaram e financiaram a ditadura surgem em sátiras impiedosas, dirigidas também ao imperialismo estadunidense. Com muito uso da assemblagem– técnica de colagem de materiais diversos sobre a tela – Império constrói com materiais diversos, fazendo uso dos refugos da sociedade moderna. São restos de gesso e madeira, cadeados e engrenagens velhas, crucifixos corroídos pelo tempo.
Está ali o burguês com aspecto de rato, em UDN (Respeitosamente) o extinto era muito distinto (1965). E também as conservadoras senhoras da elite, retratadas feitas de lixo em Marchadeira das famílias bem pensantes (1965). E em L’uomo (1966), é o próprio ser humano que surge montado a partir de armas e engrenagens.
É como se o artista buscasse fundir essas figuras conservadoras à precariedade, estabelecendo um diálogo com a política brasileira. Nessa dinâmica, surge com força a ideia de Império a respeito do neutro e do máximo teatral. O neutro seria o objeto em cena visto como ele é. Já o máximo, sua transformação em outra coisa. Como as engrenagens que compõem a cabeça da mulher de Marchadeira. Era importante que público visse as duas coisas, pois cabia a ele fazer a obra.
Quevedo explica que esses trabalhos dizem muito dos anos 1960, da visão específica que uma parte da comunidade artística tinha do povo. A partir das leituras de orientação marxista, o povo era pensado como classe trabalhadora e cabia ao artista o papel de ajudá-lo a se identificar para tomar lugar na luta de classes. Esse foi o grande norte do trabalho do Teatro de Arena, por exemplo, que aparece ao lado do Teatro Oficina em fotos, cartazes e desenhos feitos por Império para seus cenários e figurinos.
A segunda sala, intitulada Aspectos do inconsciente coletivo na comunicação de massas, se concentra principalmente nos trabalhos que Império realizou na virada dos anos 1960 para os 1970. Tratam-se de obras mais introspectivas, em grande parte realizadas sob impacto do endurecimento da ditadura após o AI-5.
Nessa época, o artista viu sua rede de relações e de trabalho se desarticular. Os grupos de teatro, alvo de perseguições, se dispersaram. Sua irmã e seu cunhado foram presos, assim como os companheiros do movimento Arquitetura Nova, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, encarcerados por um ano. O próprio Império também acabaria detido por alguns dias.
Completamente perdido, como escreveu em carta para a amiga Renina Katz, o artista voltou-se para uma pesquisa que chamou de “aspectos do inconsciente coletivo na comunicação de massa”. Tentava encontrar arquétipos do inconsciente coletivo brasileiro como uma resposta aos novos tempos. “Ele se volta para dentro de si para reaver essa coletividade”, conta Quevedo.
Os quadros desse período trocam a sátira e a assemblagem por simbolismos e ambiguidades. Mitos e retratos de amigos e familiares se confundem, fazendo surgir figuras místicas e, simultaneamente, autobiográficas. É o que se pode ver em Retrato de família (1973), Ogum ou a descida do Corcovado (1972) ou nas serigrafias de Sou Pedro, Sou Antônio e Sou João, de 1972.
Para Quevedo, há uma relação muito forte com a máscara, oriunda do teatro. Se Império passou a década anterior vestindo atrizes e atores com seus figurinos e criando arquétipos, agora levava o processo para as artes plásticas. Nisso, se antes suas figuras apareciam fragmentadas, nessa fase são retratadas por inteiro, na busca por uma unidade mística.
A partir desse momento há também um interesse de Império pelo que está em vias de desaparecer. O artista se engaja então em uma batalha pela memória. Isso aparece na exposição com o registro em Super 8 realizado em seu bairro natal, o Bixiga, feito originalmente para uma disciplina de pós-graduação que cursava tendo como professor Aziz Ab’Saber.
Império tentava de alguma maneira preservar as formas de vida que testemunhava estar desaparecendo. Mas ele iria além do registro, conta Quevedo, assumindo a redação do projeto de tombamento da Vila Itororó e seu entorno, assim como escreveria também o projeto de tombamento do próprio Teatro Oficina.
Os trabalhos com cenografia e figurino não deixaram de ocupar o artista nessa época. Manteve uma profícua parceria com o diretor Fauzi Arap e atuou na montagem de uma série de espetáculos musicais. A exposição destaca suas contribuições para os shows de Maria Bethânia, trazendo os desenhos para o espetáculo Rosa dos Ventos (1971) e a maquete para a cenografia de Pássaro da Manhã (1977). Nela, da noite escura lá no fundo, surge a alvorada a partir dos tecidos que descem do palco para envolver o público. Estão expostos também estudos não utilizados para a capa do disco Doces Bárbaros (1976), fruto da apresentação que reuniu Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Bethânia e teve também cenografia e figurinos de Império.
A terceira sala, por sua vez, Mãos e mangarás, trata do interesse do artista pelo cotidiano. São produções que abarcam a virada para os anos 1980 e chegam até sua morte, em 1985. É o momento em que Império volta a morar na casa em que nasceu, no Bixiga, e procura uma vida mais prosaica. Não queria mais ser um artista notório, mas um artesão, comenta Quevedo.
Dos fundos do seu quintal, surgem então os corações de banana – os mangarás – que tornam-se temas de muitas gravuras e telas dessa época. Quevedo explica que atenção do artista não estava exatamente no objeto, mas no estudo da interação das cores. Contudo, as estruturas vegetais fálicas e pendentes também apontam para um interesse a respeito da sexualidade no trabalho de Império, tema ainda inexplorado de sua carreira. Isso fica explícito em obras como Seis mangarás (1981) e Mangará-Phallus (s/d).
A questão das máscaras volta a aparecer aqui, reunida agora em uma série de representações de tipos indígenas. A primeira vista, podem soar como idealizações ingênuas e até preconceituosas, sugere Quevedo. Mas um olhar atento não deixa dúvidas da coerência de Império. “É mais um carnaval do que uma representação das pessoas indígenas”, analisa o curador. Carnaval que também está presente nos desenhos do artista para a decoração da Avenida Tiradentes, por ocasião dos festejos de 1984.
Do Bixiga para as Artes
Flávio Império nasceu em 19 de dezembro de 1935 em São Paulo. Passou a infância no bairro do Bixiga e aos cinco anos já participava dos balés apresentados anualmente na escola. No ensino médio, escreve seus primeiros textos sobre teatro para os jornais estudantis.
No início dos anos 1950 realiza suas primeiras pinturas. Em 1956, ingressa no curso de Arquitetura da FAU, mesma época em que se matricula no curso de desenho da Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Data desse período também seus primeiros trabalhos no teatro, atuando como cenógrafo, figurinista e diretor no grupo amador da Comunidade de Trabalho Cristo Operário, na periferia de São Paulo.
Sua aproximação com o Teatro de Arena aconteceria no ano seguinte, com o projeto gráfico e os desenhos para o programa de A falecida senhora sua mãe. Em 1959, também faria o projeto gráfico e os desenhos para o programa de outro espetáculo do Arena: Chapetuba Futebol Clube. Assinaria ainda nesse ano a primeira cenografia e figurino para o grupo, na montagem de Gente como a gente.
Seu trabalho com o Arena viria a revelar os aspectos da produção teatral, deixando de lado o ilusionismo da cena. Em coerência com a proposta geral do grupo, elementos construtivos da cenografia são expostos, fazendo contato com a arquitetura brasileira praticada desde os anos 1940 e estudada por Império na graduação.
Em 1961 forma-se na FAU e no ano seguinte passa a integrar seu corpo docente, permanecendo até 1977. Também torna-se professor responsável pelo curso de cenografia da Escola de Arte Dramática (EAD), onde fica até 1966. É de 1962 também as primeiras cenografias e figurinos para o Teatro Oficina, nas montagens de Um bonde chamado desejo e Todo anjo é terrível.
Suas primeiras exposições de artes plásticas acontecem em 1965, nas coletivas Opinião 65, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro e Propostas 65, na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Faz também nesse ano a cenografia e o figurino para Arena conta Zumbi.
A Galeria Goeldi, no Rio de Janeiro, e a Galeria Teatro de Arena, em São Paulo, recebem suas primeiras exposições individuais, em 1966. Enquanto se firmava como artistas plástico, acumula prêmios como cenógrafo e figurinista, que só iriam aumentar nas décadas seguintes.
Como arquiteto, integra ao lado de Sérgio Ferro e Rodrigo Levèfre o movimento Arquitetura Nova, que, em busca de soluções populares, trabalha com elementos usados pelo próprio povo em suas construções. Nesse espírito, participa em 1967 da elaboração dos projetos da Escola Normal e Ginásio Estadual em Brotas, do Instituto de Educação Sud Menucci, em Piracicaba e do Ginásio Estadual de Vila Ercília, em São José do Rio Preto, todos no estado de São Paulo.
Em 1968, faz a cenografia e o figurino para Roda Viva, texto de Chico Buarque dirigido por Zé Celso, fora do Teatro Oficina, no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. Meio missa, meio programa de TV, o conceito de Império mostrava seu fascínio pelos programas populares, como o comandado por Chacrinha. Também faz nesse anos sua estreia na direção, com Os fuzis de Dona Tereza, peça do Teatro dos Universitários de São Paulo (TUSP).
Nos anos 1970, enquanto aumenta sua produção em artes visuais, inicia a parceria com Fauzi Arap, assumindo a cenografia e os figurinos de espetáculos musicais. Também segue trabalhando no teatro, destacando-se nas montagens de Réveillon (1975), Pano de boca (1976) e A falecida (1979). Nesta, arranca elogios do autor, Nelson Rodrigues, que originalmente havia indicado que não deveria haver cenário nenhum no palco.
Império morreria em 7 de setembro de 1985, em decorrência do HIV, aos 50 anos, mesmo ano em que voltava à docência na FAU. Não teve tempo de se tornar um artesão da democracia.
A exposição Flávio Império: tens a vontade e ela é livre, fica em cartaz até 1o de fevereiro de 2026, no Edifício Pina Estação, localizado na Rua General Osório, 99, Santa Ifigênia, São Paulo – SP. As visitas acontecem de quarta a segunda, das 10 às 18h.
Fonte: Jornal da USP / A exposição de obras de Flávio Império na Pinacoteca de São Paulo – Foto: Marcos Santos/USP Imagens