- Jeremy Bowen
- Role,Da BBC News em Jerusalém
- Quinta, 28 de março de 2024
Após meses de alerta, um relatório recente apoiado pela ONU apresentou evidências estatísticas concretas de que a catástrofe humanitária em Gaza está se transformando em uma situação de fome provocada pelo homem.
O relatório aumentou a pressão sobre Israel para que cumpra suas responsabilidades legais de proteger os civis palestinos — e permitir que fornecimentos adequados de ajuda humanitária cheguem às pessoas que necessitam.
Em entrevista à BBC, o alto comissário da ONU para direitos humanos, Volker Türk, disse que Israel tinha uma culpa significativa — e que era um caso “plausível” de que o país estava usando a fome como arma de guerra em Gaza.
Türk afirmou ainda que se a intenção for comprovada, equivaleria a um crime de guerra.
O ministro da Economia de Israel, Nir Barkat, um político importante do partido Likud, do premiê Benjamin Netanyahu, rejeitou as advertências de Türk, classificando-as como um “total disparate — uma coisa totalmente irresponsável de se dizer”.
Assim como seus colegas de gabinete, Barkat insistiu que Israel estava permitindo a entrada de toda a ajuda oferecida pelos EUA e pelo resto do mundo. Israel alega que a ONU não distribui o que resta depois que o Hamas se beneficia do que chega.
Mas uma longa fila de caminhões carregados com suprimentos de ajuda humanitária, dos quais a Faixa de Gaza precisa desesperadamente, está se acumulando no lado egípcio da fronteira com Rafah. Eles só podem entrar em Gaza por Israel, após uma série de verificações complexas e burocráticas.
A falta de abastecimento adequado forçou a Jordânia, e agora outros países, incluindo os EUA e o Reino Unido, a realizar lançamentos aéreos de suprimentos —a forma menos eficaz de entregar ajuda humanitária.
Palestinos que lutavam em solo para garantir uma parte da ajuda se afogaram enquanto tentavam nadar até pacotes que caíram no mar, ou foram atingidos pelos mesmos quando os paraquedas falharam.
A Marinha dos EUA também está enviando uma frota de engenharia pelo Atlântico para construir um cais temporário para desembarcar ajuda pelo mar.
Nada disso seria necessário se Israel concedesse acesso rodoviário total a Gaza — e acelerasse a entrega de suprimentos de ajuda humanitária pelo moderno porto de Ashdod, a apenas cerca de meia hora de carro da Faixa de Gaza.
Durante a entrevista, Türk disse que surgiram evidências de que Israel estava retardando ou retendo a entrega de ajuda humanitária.
O alto comissário da ONU condenou os ataques do Hamas contra civis e soldados israelenses em 7 de outubro, incluindo assassinatos, estupros e a tomada de reféns. Mas ele também disse que nenhum lado na guerra deve fugir da responsabilidade por suas ações, incluindo qualquer tentativa de reter o fornecimento de ajuda às pessoas que necessitam em Gaza.
“Todos os meus colegas da área humanitária continuam a dizer que há muita burocracia. Existem obstáculos. Existem entraves… Israel é culpado de forma significativa”, ele afirmou.
“Só posso dizer que os fatos falam por si só… Entendo que é algo que precisa ser controlado, mas não pode demorar dias para que isso seja feito.”
“Quando você coloca na mesa todos os tipos de exigências que não são razoáveis em uma emergência… isso levanta o questionamento, diante de todas as restrições que vemos atualmente, se há uma alegação plausível a ser feita de que a fome está sendo, ou pode ser usada, como uma arma de guerra.”
A preocupação com a catástrofe humanitária na Faixa de Gaza se aprofundou na semana passada com a divulgação de um estudo respaldado por uma série de mapas, gráficos e estatísticas. E suscitou mais alertas por parte de aliados de Israel de que o país deveria mudar a forma como está travando a guerra contra o Hamas para poupar civis da morte por explosivos ou pela fome.
O estudo é o mais recente relatório de uma respeitada rede internacional, conhecida como IPC (acrônimo em inglês para Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar). A organização fornece aos governos, à ONU e às agências de ajuda humanitária dados apolíticos para medir a dimensão da fome. A manchete do relatório era forte: “Faixa de Gaza: a fome é iminente, à medida que 1,1 milhão de pessoas, metade de Gaza, enfrentam uma catastrófica insegurança alimentar”.
Os dados do relatório explicavam como uma grande fome poderia surgir a qualquer momento nas próximas oito semanas, se não houvesse um cessar-fogo e se a ajuda humanitária não chegasse à Faixa de Gaza.
Pais palestinos que conseguiram levar os filhos doentes e famintos até um dos poucos hospitais que ainda funcionam em Gaza depois do ataque de Israel não precisaram esperar pelas estatísticas. Durante semanas e meses, enquanto lutavam para alimentá-los, eles observaram de perto o declínio dos filhos.
Gaza não é um lugar para ficar doente. Uma menina internada no hospital, contactada por um jornalista freelancer palestino que trabalha para a BBC, estava deitada semiconsciente em uma cama.
Noora Mohammed tem fibrose pulmonar e hepática, duas condições que podem ser fatais mesmo em tempos de paz. Nos meses de fome desde o início da guerra, e sem os cuidados médicos adequados, o estado de saúde dela está se deteriorando rapidamente.
“Minha filha não consegue se mover”, diz a mãe. “Ela está anêmica, sempre dormindo, e não há nada nutritivo para comer.”
Pelo menos Noora conseguiu chegar ao hospital. A maior parte dos pouco mais de um milhão de habitantes de Gaza considerados em situação de extrema necessidade não vai ter essa opção.
As evidências da catástrofe humanitária em Gaza são avassaladoras. As fotos que tiramos no hospital mostram crianças com articulações inchadas, membros atrofiados e dermatite, todos sintomas clássicos de desnutrição aguda.
Israel ignorou a resolução do Conselho de Segurança da ONU que exige um cessar-fogo imediato. Nir Barkat, o ministro da Economia israelense, disse que nada poderia ficar no caminho da meta de Israel de acabar definitivamente com o Hamas e libertar os reféns feitos pelo grupo em 7 de outubro.
Ele acrescentou que aliados em todo o mundo apoiaram o objetivo estratégico de Israel. Quando apresentado ao fato de que muitos dos amigos de Israel, a começar pelo presidente dos EUA, Joe Biden, não estavam gostando da forma como Israel estava travando a guerra, Barkat foi contundente.
“Isso é duro. Vamos acabar com a guerra. Vamos fazer tudo que pudermos para matar os terroristas do Hamas e minimizar os danos colaterais o máximo possível”, afirmou.
“Com todo o respeito, estamos lutando contra o mal, e esperamos que o mundo nos ajude a combater o mal até eliminarmos o Hamas do mapa.”
O alto comissário de direitos humanos da ONU deu uma resposta sucinta às duras críticas de Israel.
“A única coisa que posso dizer a eles é que existe um consenso internacional emergindo, e pode não ter existido antes, mas está claramente presente agora, inclusive com a resolução do Conselho de Segurança desta semana, sobre a situação humanitária”, disse Türk.
“A situação dos direitos humanos é tão trágica que é necessário um cessar-fogo imediato. Esta é a minha resposta a isso.”
Fonte: BBC / Noora Mohammed não consegue obter o tratamento que precisa em um hospital de Gaza