Apesar de dois meses seguidos de deflação (queda de preços) puxada pela redução das alíquotas de ICMS sobre combustíveis e energia elétrica, o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) acumula alta de 8,73% em 12 meses.
NATHALIA GARCIA E PEDRO LADEIRA
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Fome, precariedade no mercado de trabalho e corrosão do poder de compra provocada pela inflação, que se manteve em dois dígitos durante quase um ano, ainda desafiam o discurso do presidente Jair Bolsonaro (PL), em campanha pela reeleição, sobre o Brasil ressurgir com uma economia pujante.
Apesar de dois meses seguidos de deflação (queda de preços) puxada pela redução das alíquotas de ICMS sobre combustíveis e energia elétrica, o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) acumula alta de 8,73% em 12 meses.
O aumento no custo da alimentação no mesmo período chegou a 13,43%, embora o ritmo de elevação tenha perdido força em agosto (0,24%).
Comida cara castiga sobretudo os mais pobres. Nem sempre o cardápio do almoço ou do jantar vai além do prato de arroz e feijão na casa de Francisca Maria do Nascimento Bezerra, a Dona Caçula.
“Às vezes, a gente acha [carne] na lixeira e come, mas quando é para comprar, só de mês em mês, compra um frango, toucinho. Carne vermelha não dá para comprar, não”, conta a mulher que vive em situação de vulnerabilidade e desinfeta o alimento tirado do lixo com limão e vinagre antes do consumo.
Caçula paga R$ 200 mensais em um apartamento em um conjunto de baixa renda em Brasília. Para trabalhar como catadora de materiais recicláveis, no entanto, acaba vivendo com o marido ao lado de outras famílias em uma ocupação no Noroeste.
Aos 55 anos, ela ganha até R$ 350 por mês com o que recolhe de bicicleta pelas ruas. Como seu marido recebe o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que paga um salário mínimo a idosos de baixa renda e pessoas com deficiência –caso do marido de Caçula–, ela não tem direito ao Auxílio Brasil.
“O rapaz que compra o material está falando que vai baixar cada vez mais, as coisas vão ficar mais difíceis, tudo subindo, arroz, óleo e feijão são muito caros” diz a catadora.
A história de Caçula e seus vizinhos mostra uma realidade diferente da expressa por Bolsonaro, que disse que não existe “fome para valer” no Brasil.
Em discurso nas comemorações do dia 7 de Setembro em Brasília, o presidente chegou a dizer: “Quando parecia que tudo estaria perdido para o mundo, eis que o Brasil ressurge, com uma economia pujante, com uma gasolina das mais baratas do mundo, com um dos programas sociais mais abrangentes do mundo, que é o Auxílio Brasil, com recorde na criação de empregos, com inflação despencando”.
O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), indicou que 33 milhões de pessoas passam fome no país.
“A insegurança alimentar, que é um problema de saúde pública e compromete o futuro da sociedade, está relacionada a diversas causas. O desemprego, a queda do rendimento médio das famílias e a inflação estão entre elas”, afirmou o sociólogo Rogério Baptistini, professor do CCSA (Centro de Ciências Sociais e Aplicadas) da Universidade Mackenzie.
A comida cara tem levado a classe média a mudar seus hábitos de compra. Elis Regina Dias de Assis, servidora pública, está sempre atenta a promoções e não se apega a marcas na hora de escolher os produtos.
Com a alta dos preços, diminuiu o consumo de carne vermelha, tem evitado comprar feijão e passou a fazer pão caseiro. Vez ou outra, leva para casa uma caixa de leite.
O orçamento mais apertado levou Elis Regina a mudar o plano na academia, a deixar o carro próprio encostado na garagem e ir ao trabalho de transporte público. Buscou um apartamento com aluguel mais barato, ainda que mais distante.
“Seis salários mínimos antigamente era algo bom, já não é mais. Meu padrão de vida diminuiu, sim. Agora, a gente tem de pensar bem antes de comprar muita coisa”, afirma.
O economista Heron do Carmo, professor da FEA-USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo), ressalta que, “mesmo que a inflação dê um certo alívio daqui por diante, não dá para [o consumidor] esquecer o saldo dos aumentos anteriores”.
A inflação, que ficou na casa dos dois dígitos de setembro de 2021 a julho deste ano, corroeu o poder de compra dos brasileiros ao longo do último ano.
Os preços dos alimentos estão indiretamente ligados aos dos combustíveis. O litro da gasolina ficou mais barato no Brasil em meio ao corte de ICMS. O movimento de baixa, contudo, não foi acompanhado no mesmo ritmo pelo diesel, afetado por um descompasso entre oferta e demanda mundial em decorrência da Guerra da Ucrânia.
Flávio Console, no ramo de transporte de cargas desde 1994, sofre com a queda da sua margem de lucro nos últimos meses. Está decidido a vender sua “segunda casa”, um caminhão que o acompanha há 12 anos.
“Tempos atrás, o nosso custo de combustível por viagem era em torno de 40%. Só de combustível, hoje chega a 60% do valor do frete”, disse o motorista, ao preparar-se para pegar a estrada rumo a Araguari (MG), levando soja para exportação.
Em média, ele faz duas viagens por semana. “Uma viagem de R$ 4.400 de frete, ida e volta são 740 km, o custo é na faixa de R$ 2.600 só de óleo [diesel]”, detalhou. “Isso sem contar pneu, desgaste de veículo, trabalho do motorista, comida, pedágio. Está ficando difícil trabalhar nesse ramo.”
O auxílio distribuído pelo governo aos caminhoneiros em seis parcelas de R$ 1.000 mensais até dezembro não é suficiente para fazer Console desistir de abandonar as estradas.
Na visão de especialistas, outro ponto sensível politicamente para a gestão Bolsonaro é a precarização do mercado de trabalho.
Embora a taxa de desemprego tenha recuado para 9,1% no trimestre encerrado em julho, o número de trabalhadores informais chegou a 39,3 milhões, de acordo com a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), divulgada pelo IBGE.
Caio Cardoso, nos últimos meses, tem feito bicos de pintor ao lado do pai, atuado como ajudante de pedreiro e participado da montagem de tendas para eventos, serviço que lhe rende R$ 120 por dia.
Ele trabalhou durante três anos na limpeza e mais um na jardinagem, como operador de micro trator, em uma empresa de serviços gerais. Viu a carga de trabalho aumentar após corte de 50% do pessoal durante a pandemia até ter seu contrato rescindido.
“Moro de aluguel, tenho minha esposa, meu filho. A gente vai fazendo do jeito que consegue”, afirma. Em agosto, recebeu a última parcela do seguro-desemprego de R$ 1.200. A queda da renda nos próximos meses preocupa Cardoso, pai de um menino de 2 anos.
Fonte: Notícias ao Minuto