O governo federal usou o segundo apagão prolongado em São Paulo, que ocorreu em outubro, em campanha contra as agências reguladoras. O discurso de desqualificação, no entanto, vem acompanhado de um desmonte operacional promovido pelo Executivo, incluindo restrições orçamentárias e de pessoal, que dificultam o trabalho dos órgãos.
O principal alvo é a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), mas a ANM (Agência Nacional de Mineração) e a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis), sob o guarda-chuva do MME (Ministério de Minas e Energia), também sofreram desmonte.
Nos três casos, a restrição de recursos cresceu sob o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o que vem comprometendo atividades básicas, como a fiscalização. Todas têm fontes próprias de receita para custear as operações, mas parte significativa dos recursos é retida.
A Aneel, por exemplo, tem direito aos recursos da Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica (TFSEE), imposta a todo o setor elétrico —geradores, transmissores e distribuidores. Só neste ano, a agência prevê arrecadar R$ 1,2 bilhão, mas as despesas obrigatórias e discricionárias devem somar R$ 350 milhões. Ou seja, R$ 865 milhões (72%, em valores arredondados) não serão direcionados para a agência.
A legislação que trata sobre a TFSEE não fixa a fatia exata que a Aneel deve receber da arrecadação. Mas levantamento feito pelo órgão mostra que a discrepância entre a arrecadação e as despesas da agência nunca foi tão grande quanto no atual governo.
Com menos dinheiro, o trabalho diário ficou comprometido. Houve, por exemplo, redução do atendimento ao público. O call center da agência, que antes operava das 6h20 à meia-noite, passou a atender das 8h às 20h. A verba da fiscalização caiu 50%, indo do valor original de R$ 33,60 milhões para R$ 16,55 milhões.
Foram afetados também os pagamentos de convênios com agências estaduais que fazem a fiscalização local, entre eles o da Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), responsável por acompanhar a Enel SP.
A situação também é complicada na ANM, agência responsável por fiscalizar as operações das mineradoras, tanto em relação à segurança de barragens, como as que provocaram as tragédias de Mariana e Brumadinho, quanto ao pagamento de impostos.
A legislação prevê que 7% da arrecadação dos royalties da mineração (chamado de Cfem) devem ir para a agência, mas historicamente o valor repassado não fica acima de 1,5%. No governo atual, porém, o máximo até agora foi de 0,6% –o menor repasse desde 2018, primeiro ano após a criação da agência.
Em 2023, a ANM deveria receber R$ 483 milhões dos royalties, mas menos de R$ 15 milhões foram para a conta da agência. A Folha teve acesso a um documento assinado em setembro por um superintende da agência constatando que visitas ordinárias de técnicos da ANM a barragens em Minas Gerais foram adiadas para os meses seguintes devido a um contingenciamento de R$ 500 mil na superintendência de segurança de barragens de mineração.
“A ANM já foi criada natimorta, porque o governo faz esses contingenciamentos desde quando ela nasceu e isso potencializa os riscos que vêm da mineração. Nós não temos dúvida nenhuma que as tragédias de Mariana e Brumadinho são reflexos de uma agência que não exerce o seu papel, assim como o que aconteceu com a Braskem”, diz Waldir Salvador, consultor da Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais e do Brasil.
Em nota a ANM disse ter reservado orçamento mínimo para eventuais vistorias emergenciais que possam demandar a equipe nos próximos meses e que se dedica às fiscalizações remotas. “As ferramentas de acompanhamento remoto permitem ações em curtíssimo prazo pela equipe de fiscalização da ANM”, afirmou.
Já a ANP é custeada por parcela dos bônus de assinatura de áreas exploratórias, da participação especial paga por campos de grande produção e pela taxa pela retenção de áreas para exploração de petróleo. Embora essas receitas tenham crescido desde sua criação, o montante de recursos liberados vem caindo.
A reserva de contingência da agência, cujos recursos são utilizados para abertura de possíveis créditos adicionais e não podem ser usados pela agência, vem crescendo em relação à receita do órgão —no ano passado, essa fatia representou 84% do valor previsto pela lei orçamentária.
Sem recursos, a agência reduziu em julho a abrangência de sua pesquisa de preços dos combustíveis, que apoia investigações sobre cartéis e abuso de poder econômico. Em outubro, suspendeu o programa de monitoramento da qualidade dos combustíveis no país, que identifica fraudes e adulterações.
“Essa situação deixa as agências numa insegurança muito grande, precisando cortar coisas que são fundamentais”, diz o presidente da Abar (Associação Brasileira de Agências Reguladoras), Vinícius Benevides.
“As agências precisam contratar consultorias para estudos, investir em softwares, inteligência artificial, equipamentos para fiscalizar setores que têm recursos. O regulador não pode ficar para trás daquele ente que ele regula”, acrescenta.
O dinheiro que não é repassado às agências é usado pelo governo para custear demais despesas da União e cumprir a meta fiscal estabelecida junto ao Congresso no ano anterior.
O Ministério do Planejamento disse em nota que “receitas arrecadas em um exercício e não utilizadas, constituem superávit financeiro apurado no Balanço Patrimonial da União”. No caso da Aneel, informou, o superávit acumulado é de R$ 1,6 bilhão; já o da ANM é de R$ 3,5 bi. O Ministério da Fazenda não informou para qual área ou projeto do governo foram alocados os recursos oriundos da TFSEE e da Cfem.
A consultora tributária Roseane Seabra aponta que o governo adota essa estratégia a partir de uma norma que permite a União gastar livremente 30% do que arrecada com tributos. “Com isso, o governo pode utilizar essa fatia de uma forma discricionária, então não é uma pedalada fiscal”, diz.
“Essa medida não é ilegal, mas é ruim, porque impede que a agência cumpra o seu papel”, acrescenta o presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, Luiz Eduardo Barata.
O economista Marcos Mendes, especialista em contas públicas e colunista da Folha, diz que a discussão não pode ser simplista. O contingenciamento se faz sobre despesa discricionária, como investimento e manutenção, não sobre a despesa obrigatória, como de pessoal. Restrição orçamentária pode estrangular a capacidade operacional, e de fato não deveria ocorrer. Mas ele lembra que excessos de recursos poderiam levar a um padrão perdulário de gastos, igualmente ruim.
Mendes afirma que o correto seria monitorar e revisar as necessidades orçamentárias, até para não penalizar a sociedade com cobranças por taxas acima do desnecessário. O que ele considera nevrálgico é a restrição de capital humano.
“O problema seria o estrangulamento por não haver dotação orçamentária suficiente para contratar gente, porque nem o Congresso, nem Executivo gostam das agências —para as forças políticas, não é bom ter agências fortes”, diz o economista.
Fabio Rosa, presidente do Sinagências, sindicato que representa os funcionários das agências reguladoras, também aponta para a falta de profissionais, além de má gestão dos diretores indicados pela classe política. “É necessário olhar não só o orçamento público, mas também a execução que órgão faz; e nesses caos as áreas mais prejudicados são de fiscalização”, diz.
A Aneel, por exemplo, opera com um déficit de 248 servidores, uma defasagem de quase 30% do efetivo em relação ao previso em lei. Os concursos em 2019 e 2024 não foram suficientes para cobrir a lacuna. Só neste ano, a agência já perdeu 19 servidores que migraram para carreiras que oferecem mais retorno e ascensão.
Na Aneel, falta até diretor. Há uma vaga no colegiado desde maio de 2024 a espera de indicação, o que vem comprometendo até as votações do colegiado.
No caso da ANM, análise do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou que os sistemas eletrônicos da agência estão obsoletos e há apenas cinco servidores e um coordenador responsáveis pela fiscalização do pagamento de royalties em todo o país.
Já a ANP registrou neste ano 638 servidores efetivos, o menor número desde 2013.
Questionado sobre os impactos dos cortes das agências, o MME disse apenas que o assunto diz respeito ao Ministério do Planejamento.
O presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales, lembra que as agência formam um pilar básico de sustentação do setor, oferecendo governança e segurança regulatória, mas que o governo e o Congresso têm promovido mudanças traumáticas, sem nenhum planejamento.
“Medidas que alteram profundamente a estrutura do setor de energia aparecem de manhã no Congresso, entram em regime de urgência na hora da almoço e viram lei antes do jantar”, afirma Sales. “Estamos presenciando uma espiral nunca antes de vista de ataques aos organismos do setor, especialmente às agências, levando a uma desgovernança institucional que compromete a prestação de serviços básicos e a atração de investimentos.”
Alexa Salomão, Pedro Lovisi e Nicola Pamplona/Folhapress / Foto: Alexandre Silveira