Por Carlos Augusto Silva
Quando, ainda calouro no curso de História — que abandonei para cursar Letras, e que anos depois retomei em São Paulo para poder lecionar História da Arte na capital paulista —, já carregava em mim as questões que viriam a guiar toda a minha trajetória intelectual: onde se traça a linha entre a literatura e a história?
No primeiro semestre, na disciplina de Teoria da História, deparo-me com Aristóteles e sua “Poética”, pronto para o embate ao lado dos poetas, opondo-se aos historiadores positivistas. O filósofo grego afirmava: “a poesia é mais filosófica e profunda que a história, pois enquanto a história trata do que aconteceu, a poesia trata do que pode acontecer”. A aula em que Aristóteles me foi apresentado gerou acalorados debates. Ousado, atrevi-me a discordar de meu mestre grego. Sua visão parecia demasiadamente presa a uma ideia de história que aspirava a uma verdade incontestável, sem questionar se tal verdade era possível de se alcançar. Nós, homens do nascente século 21, já havíamos lido Eric Hobsbawm, que, na introdução de “A Era dos Extremos”, lembrava que o dia da ascensão de Hitler não era para ele apenas um dado histórico, mas também o dia em que voltava da escola com sua irmã e viu essa manchete estampada em um jornal — quase uma cena de romance.
Minhas inquietações sobre a fronteira entre literatura e história se aprofundaram à medida que conhecia os fundamentos da Nova História e da Escola dos Annales, em contraste com as prerrogativas da história marxista. Com Max Weber, aprendi que era possível partir da análise do indivíduo para compreender o coletivo; as ciências humanas podiam mirar o micro para entender o macro. Essa visão foi ainda mais refinada pelas leituras dos grandes intérpretes do Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado, Caio Prado, Câmara Cascudo, Joaquim Nabuco, Milton Santos e Raymundo Faoro.
No entanto, uma questão permanecia como a pedra angular de todo esse debate entre literatura e história: fosse a história uma ficção com outras regras, ou a literatura uma história disfarçada de invenção, havia sempre uma voz conduzindo ambos os textos. Essa voz era a fonte de minha inquietação: existe história? Existe literatura? Ou tudo não passa de criação? A resposta para essa pergunta demandaria um texto à parte, ou talvez uma tese inteira. Mas posso adiantar que, seja na História, seja na Literatura, existe, necessariamente, a figura de um narrador. Alguém precisa contar a história, ou a História. Já aprendemos com Cervantes: narrar é um ato arbitrário. Narrar significa escolher o que contar, de que ponto partir e quando encerrar. Narrar é, enfim, um gesto de poder, tanto na história quanto na literatura.
Os romances e poemas passaram a me ensinar mais sobre a História do que meras narrativas factuais. Tornaram-se portais pelos quais eu podia compreender as ações humanas inseridas no tempo — como desejava Marc Bloch — com mais profundidade. Foi lendo Proust que aprendi sobre a Belle Époque com mais clareza do que em qualquer estudo histórico, como o clássico “França fin-de-siècle”, de Eugen Weber. Com Tolstói, desvendei mais da Rússia do que em qualquer aula ou livro de história moderna ou contemporânea.
Nessa disputa, dois romancistas tornaram-se essenciais para mim: Proust e Tolstói. Proust talvez não tenha igual quando se trata da captura do espírito de uma época. Já Tolstói, não tem rival ao retratar personagens históricos. Seu Napoleão é inesquecível. Harold Bloom, em “O Cânone Ocidental”, afirma que Proust é o único rival de Shakespeare na criação de personagens com alma e sentimentos. Ouso discordar de Bloom: Tolstói, nesse aspecto, é tão grandioso quanto Proust e Shakespeare.
Tolstói transformou o debate entre literatura e história em um exercício de inteligência. Ao invés de colocar as duas em oposição — a ciência histórica contra a literatura como produtora de verdades —, ele habilmente utilizou os instrumentos de ambas para construir suas próprias verdades. Essa é apenas uma das razões que fazem de Tolstói uma figura tão imensa.
Na literatura universal, poucos nomes brilham com a intensidade de Liev Tolstói. Autor de clássicos como “A Morte de Ivan Ilitch” e “Anna Karenina”, o escritor russo não apenas revolucionou a forma de contar histórias, como também desnudou, com sensibilidade ímpar, as complexidades da condição humana. Ele capturou como poucos as emoções, dilemas e motivações que nos definem, oferecendo aos seus leitores um reflexo muitas vezes perturbador de si mesmos.
Tolstói é reverenciado por sua busca incessante por significado e verdade. Ao longo de sua vida, passou por uma transformação espiritual profunda, afastando-se do luxo da nobreza para abraçar uma vida de simplicidade e devoção religiosa. Seus textos filosóficos e religiosos, como “Confissão”, refletem essa jornada de autodescoberta e questionamento existencial. Sua capacidade de desafiar as normas estabelecidas e buscar uma vida autêntica inspira aqueles que, ainda hoje, se sentem perdidos em um mundo de superficialidades.
Tolstói também se destacou por seu compromisso com a justiça social e os direitos humanos. Em uma época marcada pela opressão e desigualdade, sua voz erguia-se em defesa dos oprimidos. Ele criticou o sistema de servidão russo e defendeu uma educação justa e acessível para todos, um testemunho de sua visão progressista.
A relevância de Tolstói está em sua habilidade de transformar o particular em universal. Sua célebre frase, “se queres ser universal, fala da tua aldeia”, sintetiza sua genialidade. Embora profundamente enraizadas na cultura russa, suas histórias tratam de temas universais que transcendem tempo e espaço: amor, guerra, paz, fé, dúvida — todos explorados com uma maestria que faz seus escritos permanecerem atuais, mais de um século depois. Reverenciar Tolstói é reconhecer a eternidade de suas palavras e o impacto profundo que tiveram sobre a humanidade.
“Guerra e Paz” foi publicada no intervalo de quatro anos, entre 1865 e 1869 e é famosa tanto por seu vasto escopo quanto pela sua profunda exploração da sociedade durante as Guerras Napoleônicas. A narrativa acompanha as vidas de famílias aristocráticas — os Rostov, os Bolkonsky e os Bezukhov — e oferece um retrato íntimo de suas interações e transformações pessoais. Tolstói tece habilmente eventos históricos com histórias individuais, explorando temas como o amor, a família e o destino.
O título da obra já sugere o contraste entre períodos de conflito e tranquilidade. Tolstói examina os efeitos devastadores da guerra, não só no campo de batalha, mas também na vida cotidiana dos civis. Ele questiona a capacidade dos indivíduos de influenciar o curso da história, sugerindo que eventos são muitas vezes guiados por forças além do controle humano.
As relações pessoais, sejam familiares ou românticas, ocupam o centro do romance, revelando as várias formas de amor e suas complexidades. Os personagens de “Guerra e Paz” estão sempre em busca de sentido, uma busca especialmente evidente em Pierre Bezukhov, cujo desenvolvimento espiritual e pessoal é um dos pilares da obra.
Tolstói oferece uma crítica incisiva das estruturas sociais e das divisões de classe na Rússia, explorando como essas dinâmicas influenciam as ações e os destinos de seus personagens. Com sua profundidade psicológica e narrativa, “Guerra e Paz” é um monumento literário, refletindo sobre a condição humana e os grandes temas que moldam nossa vida e história.
Sem a escolha criteriosa do tipo de narrador que conduziria essa narrativa colossal, Tolstói jamais teria alcançado tamanho triunfo. Tentemos agora o quase impossível: condensar o enredo das duas mil páginas desse monumento, na tentativa de oferecer aos leitores um guia, um mapa que os ajude a navegar por essa obra grandiosa.
Criar guias que auxiliem a travessia pelos grandes monumentos literários é, para mim, mais que uma tarefa: é um imenso prazer — o maior de minha vida –, o meu destino, entrelaçado ao ofício de professor e autor. Assim como outrora empreendi com “Em busca do tempo perdido”, ao redigir o primeiro dicionário de personagens dessa obra-prima em nossa língua, agora me volto para “Guerra e Paz”, num esforço semelhante, porém menos ambicioso, menos abrangente, mas movido pelo mesmo desejo.
Quero oferecer aos leitores as chaves para destrancar as portas desse vasto universo, facilitando a compreensão e a apreciação da obra. Não pretendo, em momento algum, alcançar uma palavra final, mas partilhar o entusiasmo que sempre me invade ao mergulhar nas páginas de Tolstói, oferecendo caminhos para que outros também possam saborear a inesgotável alegria que é ler essa obra.
Comecemos com um pequeno manual de instruções:
1. Primeiros passos: não se intimide pelo tamanho
A primeira coisa que um leitor pode sentir ao encarar o livro é intimidação. Com suas duas mil páginas e inúmeros personagens, o romance parece, à primeira vista, uma tarefa monumental. Mas não se desespere. A chave para saborear essa obra está em entendê-la como uma jornada, não uma corrida. Aprofunde-se na leitura com paciência, e lembre-se de que Tolstói constrói seu universo aos poucos, guiando o leitor gradualmente pelas vidas de suas personagens.
2. Entenda o contexto histórico
Para aproveitar a obra-prima de Tolstói, é útil conhecer o cenário histórico no qual ela se passa. O romance cobre as Guerras Napoleônicas, especialmente a invasão da Rússia por Napoleão em 1812. Tolstói oferece uma visão detalhada da vida russa durante esse período, e entender as dinâmicas políticas e sociais da época ajuda o leitor a se situar melhor na trama. Se necessário, faça uma breve pesquisa sobre Napoleão, o czar Alexandre I e o papel da Rússia na Europa do século 19.
3. Aceite que é um romance sobre a vida
Não se trata apenas de um romance de guerra, tampouco se limita às tramas políticas ou aos campos de batalha. Tolstói cria um retrato da vida em suas múltiplas facetas: amor, amizade, família, fé, morte e redenção. Portanto, não espere uma narrativa linear, centrada exclusivamente nos eventos históricos. As questões humanas são tão importantes quanto as grandes batalhas, e as reflexões filosóficas de Tolstói são essenciais para a compreensão da obra.
4. O ritmo da narrativa: abrace a lentidão
Tolstói tem um ritmo próprio, mais lento e reflexivo que o das narrativas modernas. Ele nos convida a observar, com minúcia, cada detalhe da vida de seus personagens. Essa lentidão, em vez de ser um obstáculo, é o segredo para absorver a profundidade emocional e filosófica da obra. Permita-se aproveitar os momentos de introspecção dos personagens, as longas descrições de paisagens e as digressões filosóficas sobre a história e o destino. Ler Tolstói, em certos momentos, é como assistir “Andrei Rublev”, filme de 1966 do genial diretor russo Andrei Tarkovsky.
5. Identifique os principais núcleos familiares
Para não se perder no grande número de personagens, uma boa estratégia é identificar os núcleos familiares centrais. As famílias Bolkonsky, Rostov e Bezukhov são as principais. Cada uma delas oferece um prisma distinto da sociedade russa: os Bolkonsky representam a nobreza rígida e militarizada; os Rostov, a nobreza romântica e tradicional; e Pierre Bezukhov, com sua herança recém-adquirida, personifica o novo rico em busca de significado.
6. Preste atenção às relações pessoais
Neste livro, os relacionamentos são o coração da trama. Desde os laços de amizade até os conflitos familiares, as interações humanas moldam o desenvolvimento dos personagens. O romance de Andrei Bolkonsky e Natasha Rostova, por exemplo, é uma das tramas mais emocionantes, cheia de altos e baixos. A amizade entre Pierre e Andrei, por sua vez, nos oferece insights profundos sobre a busca por propósito e a camaradagem em tempos de adversidade.
7. O papel da guerra na narrativa
Embora o título sugira que o romance seja dividido entre “guerra” e “paz”, esses conceitos estão interligados. Tolstói não apenas descreve batalhas, mas também explora a guerra como uma metáfora para a luta interna de seus personagens. Ele questiona o heroísmo militar tradicional e retrata a guerra como um caos imprevisível, onde o acaso desempenha um papel importante. Leia as cenas de batalha não apenas como descrições de eventos históricos, mas como reflexões sobre a natureza humana e o destino.
8. A importância da paz
A “paz” em “Guerra e Paz” refere-se não só à ausência de guerra, mas também à busca de seus personagens por harmonia interior. A evolução de Pierre Bezukhov é um exemplo marcante: ele começa como um jovem confuso e ocioso, mas sua jornada o leva a uma busca espiritual por sentido na vida. A paz aqui não é uma simples tranquilidade externa, mas uma realização interna, um entendimento sobre o papel do indivíduo no mundo.
9. Personagens complexos: aceite suas contradições
Os personagens de Tolstói não são heróis perfeitos nem vilões caricaturais. Eles são cheios de falhas e contradições. Pierre, por exemplo, é ao mesmo tempo um ingênuo idealista e um herdeiro atolado em luxúria e confusão moral. Andrei Bolkonsky pode parecer frio e distante, mas esconde um desejo profundo de amor e redenção. Aceitar a complexidade desses personagens torna a leitura mais rica, pois permite enxergar a humanidade em cada um deles.
10. A filosofia da história de Tolstói
Tolstói não apenas narra eventos; ele também filosofa sobre a natureza da história. Para ele, a história não é moldada por grandes líderes ou heróis, mas pelo fluxo imprevisível das ações coletivas e das circunstâncias. Napoleão, por exemplo, é retratado como um homem vaidoso e sem controle real sobre os eventos que o cercam. Esse olhar filosófico pode parecer uma digressão, mas é uma parte crucial da visão de Tolstói sobre o mundo.
11. A leitura das cenas de batalha
As cenas de guerra são descritas com um realismo impressionante. Tolstói, que foi soldado, traz uma visão crítica e detalhada das batalhas. Elas não são glorificadas, mas retratadas como caóticas e brutais. O autor nos convida a ver a guerra através de múltiplas perspectivas, desde os generais no alto comando até os soldados comuns no campo de batalha. Quando chegar a essas cenas, permita-se imergir nos detalhes, absorvendo a confusão e a angústia dos combates.
12. A natureza como espelho dos sentimentos
Tolstói utiliza a natureza para refletir o estado emocional de seus personagens. As paisagens russas, com suas vastas planícies e mudanças sazonais, estão profundamente conectadas aos sentimentos e transformações internas dos personagens. Preste atenção a como Tolstói descreve o clima e o ambiente em momentos-chave. Quando Andrei observa o céu antes de uma batalha, por exemplo, ele tem uma epifania sobre a futilidade da glória militar.
13. Tolstói e as mulheres: observe a sensibilidade
Embora Tolstói seja frequentemente criticado por suas representações de mulheres, neste romance ele explora as complexidades do papel feminino na sociedade russa. Personagens como Natasha Rostova e Maria Bolkonskaya são mais do que simples coadjuvantes. Elas possuem profundidade emocional e, de muitas maneiras, movem a trama tanto quanto os homens. Natasha, em particular, passa por um arco dramático de crescimento, desde sua juventude ingênua até sua maturidade emocional.
14. Aceite as digressões filosóficas
Tolstói interrompe a narrativa diversas vezes para oferecer reflexões sobre a história, a guerra, o poder e a moralidade. Essas digressões podem parecer desconexas, mas são centrais para entender a visão de mundo do autor. Para Tolstói, o sentido da vida e o papel do indivíduo no cosmos são questões inseparáveis da trama. Portanto, ao chegar a essas passagens, permita-se refletir junto com o autor e compreender o que ele está tentando dizer além da ação narrativa.
15. O final: a paz depois da tempestade
Ao alcançar as últimas páginas, o leitor verá que a obra não se encerra com um clímax explosivo, mas com uma sensação de renovação e tranquilidade. Os personagens que sobreviveram à guerra e às suas crises pessoais encontram um novo sentido em suas vidas. Tolstói parece sugerir que, após todo o tumulto e as lutas, a vida segue, e o que resta são os laços familiares, a paz interior e a aceitação do papel que cada um desempenha no grande drama da história. Ao fechar o livro, o leitor comum sentirá que não leu apenas um romance histórico, mas viveu uma experiência transformadora sobre o que significa ser humano.
O enredo
A narrativa do livro inicia-se em 1805, em uma festa na alta sociedade de São Petersburgo, onde somos introduzidos aos principais personagens. O protagonista Pierre Bezukhov, filho ilegítimo de um conde moribundo, é inesperadamente herdeiro de uma enorme fortuna, o que muda radicalmente sua vida e a forma como é visto pela sociedade. Pierre é um jovem idealista, em busca de propósito e sentido, mas essa herança o arrasta para o seio da nobreza corrupta, abrindo caminho para uma série de dramas pessoais e familiares. Paralelamente, o príncipe Andrei Bolkonsky, outro protagonista central, está desiludido com sua vida aristocrática e busca glória na guerra, acreditando que o campo de batalha trará sentido à sua existência.
As famílias que Tolstói apresenta são entrelaçadas por laços de sangue e casamento, e, no centro disso, estão os Rostov, uma família nobre em declínio financeiro. Natasha, a filha mais nova, é uma figura vibrante e cheia de vida, cujo destino é traçado por sua paixão, ingenuidade e desejo de amor verdadeiro. Seu irmão, Nikolai Rostov, parte para a guerra com ideais românticos, mas logo confronta a dura realidade dos campos de batalha, onde a morte e o caos predominam. O pai da família, o conde Rostov, luta desesperadamente para manter as aparências de uma família aristocrática próspera, enquanto sua esposa, Maria Rostova, administra os recursos cada vez mais escassos da família, buscando casar os filhos com alianças vantajosas que possam recuperar o status da casa.
O desenvolvimento do romance se dá em duas frentes: de um lado, a guerra avança, com Napoleão invadindo a Rússia e a nação sendo arrastada para um conflito que ameaça destruir sua identidade. Do outro, a vida familiar e as tensões internas continuam a se desenrolar. Andrei, que acreditava encontrar redenção na guerra, é ferido gravemente e retorna para casa, apenas para encontrar sua esposa, Liza, em seu leito de morte após o parto. Esse evento trágico destrói qualquer esperança de felicidade que Andrei nutria e o leva a um profundo estado de isolamento emocional. Tolstói, ao narrar esse momento, não poupa detalhes dos sentimentos contraditórios de Andrei — o desespero de ver sua esposa morrer e a indiferença que ele já sentia por ela antes do evento.
Enquanto isso, Pierre, agora um dos homens mais ricos da Rússia, é envolvido em um casamento infeliz com Helena Kuragin, uma mulher superficial e manipuladora. Helena representa a corrupção moral da aristocracia russa, e seu relacionamento com Pierre é um dos exemplos mais evidentes de como o dinheiro e o status destroem as relações humanas autênticas. O próprio Pierre, em um de seus muitos momentos de introspecção, reflete sobre sua infelicidade, reconhecendo que sua busca por sentido foi desviada pelo poder que sua fortuna lhe concedeu.
Tolstói, no entanto, não se limita a retratar apenas os dramas dos homens. As mulheres de “Guerra e Paz” desempenham papéis centrais na estrutura narrativa. Natasha, por exemplo, vive um arco de transformação profunda. Inicialmente, ela é retratada como uma jovem vibrante e cheia de sonhos, apaixonada por Andrei e ansiando pelo casamento. Contudo, a traição que sofre ao ser manipulada por Anatole Kuragin — irmão de Helena — faz com que Natasha caia em desgraça. Esse evento é um dos mais dramáticos do livro, e a recuperação de Natasha, tanto emocional quanto espiritualmente, é uma das tramas centrais do segundo ato da narrativa.
A guerra, que é sempre um pano de fundo constante, avança em direção a Moscou, culminando com a invasão de Napoleão em 1812. Tolstói nos leva ao coração da batalha de Borodino, onde Andrei Bolkonsky, novamente lutando, é ferido de forma mortal. Sua morte é uma das cenas mais comoventes da obra, marcada por um raro momento de reconciliação interna. Andrei, que ao longo do livro representa o idealismo destroçado pela realidade, encontra paz em seus últimos momentos, quando finalmente aceita a insignificância de seus esforços em relação ao curso da história. Seu encontro final com Natasha, enquanto ele está morrendo, é uma das passagens mais tocantes do romance. Natasha, que o havia traído e desonrado, agora se redime ao cuidar de Andrei em seus últimos dias, selando o ciclo de amor e arrependimento que define o relacionamento entre os dois.
Enquanto Andrei morre, Pierre vive um período de transformação após ser feito prisioneiro pelos franceses. Ele passa de um aristocrata desiludido e infeliz a um homem que finalmente encontra sentido na simplicidade da vida. Ao ser libertado, Pierre percebe que suas ambições de grandeza eram ilusórias, e é nessa nova humildade que ele encontra a felicidade ao lado de Natasha, com quem se casa no final da obra. Seu arco narrativo reflete o grande tema de Tolstói: a busca pela verdade e pela paz interna em meio ao caos da história e da vida cotidiana.
O cerco de Moscou é outro ponto culminante da narrativa. A cidade é abandonada pelas tropas russas e deixada à mercê dos franceses. Tolstói descreve Moscou não apenas como uma cidade, mas como um símbolo da alma russa, resistindo à ocupação estrangeira. O sofrimento da população, a destruição da cidade e a eventual retirada desastrosa de Napoleão criam uma paisagem de ruína, mas também de resiliência. O general Kutuzov, líder das forças russas, é retratado como um homem sábio, que compreende que o tempo e a paciência são as armas mais poderosas contra o exército de Napoleão. A vitória russa, no entanto, não é celebrada com fanfarra, mas com uma sensação de perda e melancolia.
No final do romance, Tolstói oferece uma visão da vida após a guerra. As famílias estão profundamente marcadas pelos eventos que viveram, mas a vida continua. Pierre e Natasha, agora casados, encontram uma nova paz, enquanto Nikolai Rostov, que assumiu a responsabilidade de sustentar a família após a guerra, se casa com Maria Bolkonskaya. Esse casamento simboliza a união das duas famílias, mas também a reconciliação entre os valores aristocráticos e a nova realidade pós-guerra. Maria, uma mulher profundamente religiosa, traz estabilidade para Nikolai, que amadurece consideravelmente ao longo da narrativa, passando de um jovem impetuoso a um homem responsável e devotado.
A história de amor entre Nikolai e Maria é construída lentamente, com um ritmo de amadurecimento gradual que contrasta com os relacionamentos mais impetuosos de Pierre e Natasha, e de Andrei e Natasha. O casamento deles simboliza a possibilidade de renovação e redenção, mesmo após as maiores tragédias pessoais e coletivas. Ao contrário de Andrei, que nunca encontra paz verdadeira, Nikolai emerge como uma figura de equilíbrio, capaz de conciliar os desafios práticos da vida com os seus sentimentos mais profundos.
Tolstói encerra “Guerra e Paz” de maneira melancólica, mas otimista. Ele não oferece um final grandioso, mas um encerramento natural e tranquilo para as vidas de seus personagens. O tema central do livro, o ciclo interminável da vida — com suas guerras e suas pazes —, é sintetizado em sua conclusão. A obra, com seus dramas familiares, amores e desilusões, vitórias e derrotas, mostra que, no final, são as relações humanas e a busca por significado que definem o curso da existência.
Os personagens
Uma possível galeria dos dez personagens principais do romance com certeza contemplaria esses nomes:
1. Pierre Bezukhov
Pierre inicia sua jornada como um jovem idealista, mas desajustado. Ele busca significado em meio ao caos da aristocracia russa. Sua busca por sentido é marcada por uma série de crises espirituais e existenciais, culminando em sua prisão e subsequente redenção. Um de seus momentos mais marcantes é a reflexão sobre a simplicidade da vida após sua libertação: “Agora compreendo que a vida verdadeira está na humildade”.
2. Príncipe Andrei Bolkonsky
Andrei começa como um homem em busca de glória na guerra, mas logo se desilude. Ele sofre diversas tragédias pessoais, incluindo a morte de sua esposa e seu próprio ferimento mortal. Sua trajetória é marcada por uma profunda transformação espiritual, que se concretiza em seus últimos momentos, quando finalmente aceita a transitoriedade da vida.
3. Natasha Rostova
Natasha é uma das personagens mais vibrantes e complexas do romance. Sua trajetória vai da inocência apaixonada à profunda desilusão, após sua traição por Anatole. No entanto, ela renasce no final da obra, encontrando uma nova paz ao lado de Pierre. Natasha simboliza a vitalidade e a capacidade de redenção, passando por um arco de amadurecimento emocional e espiritual. Em um dos momentos mais tocantes da obra, ao cuidar de Andrei em seus últimos dias, ela demonstra o profundo amor e compaixão que definem sua personagem: “Ela estava ali, ao lado dele, como se sempre tivesse estado, como se nunca o tivesse traído”.
4. Nikolai Rostov
Nikolai começa o romance como um jovem impulsivo, cheio de ideais românticos sobre a guerra. Com o tempo, ele amadurece, enfrentando as duras realidades do campo de batalha e da vida em tempos de crise. Seu casamento com Maria Bolkonskaya simboliza sua transição para uma vida de responsabilidade e estabilidade. Nikolai torna-se o pilar da família Rostov, assumindo a responsabilidade de salvar a casa do declínio financeiro: “O que importa é a família, e eu farei o que for preciso para garantir sua sobrevivência”.
5. Maria Bolkonskaya
Maria é uma figura de fé e devoção ao longo da obra, desempenhando um papel crucial na transformação de Nikolai Rostov. Seu casamento com ele é um dos momentos mais tranquilos e harmoniosos da narrativa, trazendo uma nova perspectiva de vida para ambos. Maria é descrita como uma mulher profundamente religiosa, cuja bondade e paciência se destacam em meio ao caos ao seu redor: “Ela sabia que sua missão era salvar aqueles que amava, e o faria, mesmo que isso custasse seu próprio conforto”.
6. Helena Kuragin
Helena representa a corrupção da nobreza russa. Seu casamento com Pierre é uma aliança de conveniência, marcada por traições e intrigas. Helena é descrita como manipuladora e egoísta, movida exclusivamente por ambições pessoais. Sua superficialidade é uma crítica de Tolstói à decadência moral da aristocracia: “Ela vivia para o prazer e o poder, e não havia espaço para mais nada”.
7. Anatole Kuragin
Irmão de Helena, Anatole é igualmente corrupto e irresponsável. Ele seduz Natasha, causando um dos maiores escândalos da obra. Sua traição destrói temporariamente a vida de Natasha e faz com que ela questione sua própria dignidade. Anatole é descrito como um personagem sem escrúpulos, movido apenas por seus desejos: “Ele não se importava com as consequências de suas ações, desde que seus desejos fossem atendidos”.
8. Príncipe Vassili Kuragin
O pai de Helena e Anatole, o príncipe Vassili é outro exemplo de como a aristocracia russa é retratada como moralmente falida. Ele manipula situações para obter benefícios políticos e financeiros, sem remorso. Vassili é um mestre em intrigas, sempre buscando maneiras de garantir o avanço de sua família: “Para ele, a vida era um jogo, e ele jogava com a habilidade de um veterano”.
9. General Kutuzov
Kutuzov é o comandante das forças russas durante a invasão de Napoleão. Ele representa a sabedoria e paciência em meio ao caos da guerra. Ao contrário de seus subordinados mais jovens e impetuosos, Kutuzov compreende que a vitória não vem apenas da força, mas da capacidade de resistir e esperar pelo momento certo. Sua liderança é uma das razões para a eventual derrota de Napoleão: “Ele sabia que o tempo era seu aliado, e esperou, pacientemente, pelo desgaste inevitável dos inimigos”.
10. Platon Karataev
Platon é um personagem secundário, mas fundamental na transformação de Pierre. Como prisioneiro de guerra, Platon personifica a simplicidade e a serenidade diante da adversidade. Ele ensina a Pierre lições sobre humildade e aceitação da vida tal como ela é. Platon é descrito como uma figura quase mística, cujo otimismo inabalável contrasta com o caos ao redor: “Ele vivia em paz com o mundo, e sua presença era uma lembrança constante de que a felicidade está nas coisas simples”.
Esses personagens, com suas complexas trajetórias pessoais, são o coração pulsante de “Guerra e Paz”. Tolstói habilmente entrelaça suas histórias, criando uma tapeçaria rica e detalhada que reflete as grandes questões da vida: o amor, a guerra, a busca por sentido e a capacidade humana de mudança. Ao longo do romance, os dramas familiares e as tensões internas das personagens refletem a própria Rússia, um país em transformação e luta pela sua identidade.
Tolstói convida o leitor a participar dessa jornada com os personagens, explorando as várias dimensões da existência humana. Seja nas cenas de batalha ou nos momentos íntimos de reflexão, a obra convida à introspecção, à compreensão do que significa viver e sofrer, e como, no final, cada indivíduo contribui para o vasto tecido da história.
A chave central do entendimento de “Guerra e Paz”: quem narra este romance?
Um elemento aproxima muito Marcel Proust de Liev Tolstói: a multiplicidade — não anunciada — de narradores. Em Proust, temos muitas estratégias narrativas operadas por uma única voz, a de Marcel. Em “Guerra e Paz”, embora o narrador seja onisciente o tempo todo, ele varia em ethos e propósito, atendendo a demandas distintas.
A escolha do narrador em um romance é uma decisão crucial que impacta profundamente a forma como a história é contada e percebida. Segundo Gérard Genette, em “O Discurso da Narrativa”, livro que utiliza Proust para definir toda uma teoria da narratologia, os narradores podem ser classificados de acordo com sua posição na história e sua relação com os eventos narrados. Genette distingue entre narradores heterodiegéticos, que são externos à história e não participam dos eventos narrados, e narradores homodiegéticos, que estão dentro da história e participam de suas ações.
O narrador onisciente é um exemplo clássico de narrador heterodiegético. Esse tipo de narrador tem um conhecimento total e ilimitado sobre os eventos e personagens da história. Segundo Wayne Booth, em “A Retórica da Ficção”, o narrador onisciente pode acessar os pensamentos e sentimentos de todos os personagens, bem como fornecer informações sobre eventos passados, presentes e futuros. Esse tipo de narrador oferece ao leitor uma compreensão ampla e detalhada do enredo.
Por outro lado, o narrador em primeira pessoa, ou narrador homodiegético, narra a história a partir de sua própria perspectiva. Como destacado por Seymour Chatman, esse tipo de narrador oferece uma visão subjetiva e limitada dos eventos, muitas vezes refletindo suas próprias percepções e emoções. A narrativa em primeira pessoa pode criar uma conexão íntima entre o leitor e o narrador, mas também pode levantar questões sobre a confiabilidade do narrador, uma vez que a história é filtrada por suas experiências pessoais.
Outro tipo de narrador é o narrador em segunda pessoa, menos comum, mas altamente eficaz em determinadas narrativas. Este narrador, que se dirige diretamente ao leitor como “você”, cria uma sensação de imediaticidade e envolvimento direto. Para Monika Fludernik, em “Rumo a uma Narratologia Natural”, a narrativa em segunda pessoa pode desafiar as convenções tradicionais, criando uma experiência de leitura imersiva e, muitas vezes, desconcertante.
Além disso, o narrador objetivo, também conhecido como narrador-câmera, limita-se a relatar apenas o que pode ser observado externamente, sem acesso aos pensamentos internos dos personagens. Norman Friedman, em “Ponto de Vista na Ficção: O Desenvolvimento de um Conceito Crítico”, sugere que esse tipo de narrador cria uma narrativa mais impessoal e objetiva, permitindo que os leitores tirem suas próprias conclusões a partir das ações e diálogos dos personagens. Esse estilo pode aumentar o realismo da história e engajar o leitor em um processo interpretativo mais ativo.
Existe também o narrador múltiplo, onde diferentes personagens assumem o papel de narrador em diferentes partes do romance. Esse método oferece múltiplas perspectivas sobre os mesmos eventos, enriquecendo a narrativa com uma variedade de vozes e pontos de vista. Como Bakhtin discute em “A Imaginação Dialógica: Quatro Ensaios”, a polifonia — ou a coexistência de múltiplas vozes independentes — pode criar uma narrativa mais complexa e dinâmica, refletindo a diversidade de experiências e percepções dentro da história.
A escolha do narrador não é apenas uma questão estilística, mas também uma decisão fundamental que molda a estrutura e o impacto de uma narrativa. Através de diferentes tipos de narradores, os autores controlam a quantidade e a natureza das informações reveladas aos leitores, além de influenciar a forma como os leitores se conectam com os personagens e os eventos da história. A teoria literária oferece uma rica base para entender e analisar essas escolhas narrativas, destacando sua importância para a arte de contar histórias.
Em “Guerra e Paz”, a escolha do narrador é crucial para a grandiosidade e complexidade da obra. Tolstói utiliza um narrador predominantemente onisciente, capaz de penetrar nos pensamentos e sentimentos de todos os personagens, mas que frequentemente se foca em perspectivas individuais para oferecer uma visão íntima de suas experiências e emoções. Essa técnica permite ao leitor uma compreensão mais profunda das motivações e conflitos internos dos personagens, ao mesmo tempo em que mantém uma visão ampla dos eventos.
Outro aspecto marcante da obra é a justaposição entre a vida pessoal dos personagens e os grandes eventos históricos. Tolstói não se limita a narrar os acontecimentos bélicos, mas também detalha as vidas domésticas e sociais de seus personagens. Esse entrelaçamento de narrativas pessoais e históricas cria um panorama rico e detalhado da sociedade russa do início do século 19.
Além disso, Tolstói utiliza a narrativa para tecer suas reflexões filosóficas sobre a história, o poder e a moralidade. Em vários momentos, ele interrompe a narrativa para oferecer suas próprias observações sobre o sentido da vida e o papel do indivíduo no curso dos acontecimentos históricos. Essas digressões filosóficas, longe de serem desvios, são parte essencial da visão de mundo de Tolstói e enriquecem a narrativa com profundidade.
A caracterização de seus personagens é um dos pontos fortes de Tolstói. Ele cria protagonistas complexos e multifacetados, como Pierre Bezukhov, Andrei Bolkonsky e Natasha Rostova, cuja evolução ao longo da narrativa reflete suas jornadas internas e externas. Essas figuras são profundamente humanas, com falhas e virtudes que os tornam reconhecíveis e relacionáveis.
No fim, Tolstói oferece uma obra que transcende o romance histórico tradicional. “Guerra e Paz” não é apenas uma narrativa sobre grandes eventos ou sobre a vida russa no século 19, mas uma meditação sobre a própria natureza da existência humana. A escolha do narrador, em conjunto com sua prosa límpida, digressões filosóficas e caracterização rica, faz de “Guerra e Paz” uma leitura complexa, envolvente e profundamente recompensadora.
A dupla tipicidade de narradores
Em Tolstói, a narrativa é marcada por uma dupla tipicidade de narradores: o historiador e o narrador ficcional. Esta abordagem inovadora permite que Tolstói crie uma obra que é, ao mesmo tempo, um romance de ficção profunda e uma análise histórica detalhada. A presença de dois tipos distintos de narradores enriquece a narrativa, proporcionando múltiplas perspectivas sobre os eventos e personagens, e permitindo uma exploração mais completa dos temas do romance.
O narrador historiador em “Guerra e Paz” é responsável por contextualizar os eventos dentro de um quadro histórico real. Tolstói utiliza este narrador para descrever eventos históricos com precisão e detalhe, oferecendo ao leitor uma visão abrangente das Guerras Napoleônicas e do impacto desses eventos na Rússia. Este narrador adota um tom objetivo e analítico, muitas vezes interrompendo a narrativa ficcional para oferecer reflexões e comentários sobre o curso da história, as motivações dos líderes e as forças que moldam os eventos históricos.
Por outro lado, o narrador ficcional em “Guerra e Paz” é responsável por contar a história dos personagens, suas vidas pessoais, seus amores, suas lutas e suas transformações ao longo do tempo. Este narrador adota uma abordagem mais íntima e emocional, mergulhando nos pensamentos e sentimentos dos personagens e revelando suas motivações internas e conflitos. O narrador ficcional permite que Tolstói explore a complexidade da experiência humana de uma maneira que o narrador historiador não pode.
A interação entre esses dois tipos de narradores é uma das características mais distintivas de “Guerra e Paz”. Tolstói alterna entre descrições históricas objetivas e narrativas ficcionais emocionais, criando uma narrativa rica e multifacetada. Esta alternância permite que os leitores vejam os eventos históricos de uma perspectiva macro e micro, entendendo tanto os grandes movimentos históricos quanto os impactos pessoais desses eventos nos indivíduos.
Um exemplo claro dessa dualidade é a descrição da Batalha de Borodino. O narrador historiador descreve a batalha com grande detalhe, explicando as estratégias militares, os movimentos das tropas e as consequências da batalha para o curso da guerra. Este relato é intercalado com as experiências pessoais dos personagens, como Andrei Bolkonsky e Pierre Bezukhov, que estão presentes na batalha. O narrador ficcional fornece uma visão íntima de seus medos, esperanças e reflexões, oferecendo uma dimensão emocional ao relato histórico.
Tolstói também utiliza o narrador historiador para fazer digressões filosóficas sobre a natureza da história e do poder. Ele questiona a capacidade dos indivíduos de controlar os eventos históricos e sugere que a história é moldada por uma combinação de forças inevitáveis e ações humanas. Estas reflexões filosóficas são muitas vezes inseridas nas descrições históricas, oferecendo uma camada adicional de profundidade à narrativa.
O narrador ficcional, por sua vez, permite que Tolstói explore temas como o amor, a família, a busca por sentido e a transformação pessoal. Através das histórias dos personagens, o leitor é convidado a refletir sobre a natureza da felicidade, a moralidade e o significado da vida. Estas questões são abordadas de uma maneira muito pessoal e emocional, contrastando com a objetividade do narrador historiador.
A dupla tipicidade dos narradores também permite que Tolstói crie um contraste entre a grandiosidade dos eventos históricos e a mundanidade das vidas pessoais. Enquanto o narrador historiador descreve as grandes batalhas e decisões políticas, o narrador ficcional foca nas pequenas interações cotidianas e nas emoções internas dos personagens. Este contraste enfatiza a complexidade da experiência humana e a interconexão entre os eventos públicos e privados. Se em Tolstói essa divisão se faz no plano histórico, em Proust ela se dá no plano filosófico. Proust alterna entre aquele que vive uma trama e aquele que reflete a seu respeito. Paul Ricoeur, em “Tempo e Narrativa”, vai diferenciar essas duas instâncias narrativas de Proust chamando-as de “herói” e “narrador”.
Em Tolstói, o narrador historiador oferece uma perspectiva crítica sobre os líderes e heróis históricos. Tolstói frequentemente desafia as narrativas convencionais sobre figuras históricas como Napoleão e Alexandre I, questionando sua grandeza e explorando suas falhas e limitações. Esta abordagem crítica é complementada pelo narrador ficcional, que oferece uma visão mais nuançada e humana dos personagens, mostrando suas virtudes e defeitos de maneira equilibrada.
A utilização de dois tipos de narradores também permite que Tolstói explore diferentes estilos narrativos. O narrador historiador utiliza uma linguagem formal e detalhada, adequada para a descrição de eventos históricos e reflexões filosóficas. O narrador ficcional, por outro lado, adota um estilo mais acessível e emotivo, adequado para a exploração das experiências pessoais e emocionais dos personagens. Esta variação de estilo contribui para a riqueza e a diversidade da narrativa.
A interação entre os narradores também pode ser vista na maneira como Tolstói estrutura o romance. Os capítulos dedicados aos eventos históricos são frequentemente seguidos por capítulos focados na vida pessoal dos personagens, criando um ritmo que alterna entre a grandiosidade e a intimidade. Esta estrutura permite que o leitor veja como os eventos históricos influenciam as vidas individuais e como as ações dos personagens comuns podem ter impactos históricos.
A presença dos dois narradores também serve para enfatizar a interconexão entre o indivíduo e a sociedade. Tolstói mostra como as decisões dos líderes políticos e militares afetam as vidas dos cidadãos comuns e como as ações e escolhas desses cidadãos, por sua vez, influenciam o curso da história. Esta interconexão é um dos temas centrais de “Guerra e Paz” e é explorada de maneira eficaz através da dupla tipicidade dos narradores.
Tolstói também utiliza a interação entre os narradores para explorar a noção de verdade e perspectiva. O narrador historiador oferece uma visão aparentemente objetiva dos eventos, mas Tolstói frequentemente questiona essa objetividade, mostrando como a história é moldada por narrativas e interpretações. O narrador ficcional, por outro lado, oferece uma visão subjetiva e emocional, mas igualmente válida, dos eventos. Esta dualidade destaca a complexidade da verdade e a importância de múltiplas perspectivas para uma compreensão completa dos eventos.
A dupla tipicidade dos narradores em “Guerra e Paz” permite que Tolstói crie uma obra que é, ao mesmo tempo, um romance profundo e uma análise histórica detalhada. A interação entre o narrador historiador e o narrador ficcional enriquece a narrativa, oferecendo múltiplas perspectivas e explorando a interconexão entre o indivíduo e a sociedade.
Vejamos alguns trechos em que se percebe a distinção entre esse narrador da ficcionalidade e o da historicidade:
A descrição da Batalha de Borodino
Narrador historiador
Tolstói fornece uma análise detalhada da batalha, suas causas e consequências. Ele discute as estratégias de Napoleão e Kutuzov, além das manobras militares específicas: “A Batalha de Borodino não foi uma vitória de Napoleão, mas um massacre sem sentido”.
Narrador ficcional
O foco é dado a Pierre Bezukhov, que, como espectador, reflete sobre o caos e a brutalidade do campo de batalha: “Pierre olhava para o campo de batalha com uma sensação de desespero, tentando entender a futilidade de tanta morte e destruição”.
A invasão de Moscou por Napoleão
Narrador historiador
Tolstói descreve a invasão com precisão histórica, destacando os movimentos das tropas francesas e a resposta dos russos: “Moscou, sem resistência significativa, caiu nas mãos dos franceses, marcando um ponto de virada na campanha”.
Narrador ficcional
A experiência pessoal de Natasha Rostova e sua família, ao abandonarem Moscou, é destacada: “Natasha sentia um nó na garganta enquanto deixava sua casa para trás, ouvindo os gritos distantes dos invasores”.
Reflexões de Andrei Bolkonsky sobre a guerra
Narrador historiador
Tolstói apresenta suas reflexões filosóficas sobre a natureza da guerra e o papel dos líderes: “A história é moldada não pelos grandes homens, mas pelas ações acumuladas de muitos indivíduos”.
Narrador ficcional
Andrei, enquanto se recupera de um ferimento, contempla o significado da guerra em um nível pessoal: “Deitado na cama, Andrei se perguntava se todo o sofrimento valia a pena, se algum dia encontraria paz”.
A retirada dos franceses de Moscou
Narrador historiador
Tolstói detalha o colapso da Grande Armée e as dificuldades enfrentadas durante a retirada: “A retirada de Moscou transformou-se em um desastre, com milhares de soldados morrendo de fome e frio”.
Narrador ficcional
O impacto pessoal sobre personagens como Pierre, que é capturado e testemunha a miséria dos prisioneiros de guerra: “Pierre, agora um prisioneiro, sentia o desespero e a fome corroendo sua esperança”.
O baile em São Petersburgo
Narrador historiador
Tolstói contextualiza o evento dentro da alta sociedade russa, destacando sua importância política e social: “Os bailes de São Petersburgo eram mais do que eventos sociais; eram palcos de intriga política e alianças estratégicas”.
Narrador ficcional
A interação de Natasha com a elite russa e seu encontro com Andrei: “Natasha, deslumbrada pelo brilho do salão, sentia seu coração acelerar ao ver Andrei atravessar a multidão em sua direção”.
O encontro entre Napoleão e Alexandre I
Narrador historiador
A reunião é descrita em termos históricos, ressaltando suas implicações políticas: “O encontro entre Napoleão e Alexandre I foi um jogo de poder, cada um tentando medir a determinação do outro”.
Narrador ficcional
A visão de Andrei, presente como observador, oferece uma perspectiva pessoal: “Andrei, observando de longe, sentia-se um peão no jogo de gigantes, ansioso pelo futuro incerto”.
A vida na propriedade rural de Bolkonsky
Narrador historiador
Tolstói usa a vida na propriedade para discutir as condições socioeconômicas da Rússia: “As propriedades rurais refletiam a estrutura feudal da sociedade russa, com os camponeses trabalhando sob a direção dos nobres”.
Narrador ficcional
A interação de Andrei com sua família e sua busca por paz e propósito: “Andrei encontrava consolo nos campos vastos de sua propriedade, mas a sombra da guerra nunca o deixava”.
A morte do príncipe Bolkonsky
Narrador historiador
Tolstói contextualiza a morte dentro do impacto mais amplo na família e na sociedade: “A morte do príncipe Bolkonsky representava o fim de uma era para a nobreza russa, marcada por tradição e autoridade”.
Narrador ficcional
A experiência íntima de Andrei ao lidar com a perda de seu pai: “Segurando a mão fria de seu pai, Andrei sentia um vazio crescer dentro de si, uma mistura de tristeza e alívio”.
O casamento de Pierre e Helena
Narrador historiador
Tolstói discute a importância social e econômica do casamento na alta sociedade russa: “Casamentos como o de Pierre e Helene eram contratos sociais, mais que uniões de amor, refletindo alianças estratégicas”.
Narrador ficcional
A infelicidade de Pierre em seu casamento, explorando suas emoções e conflitos internos: “Pierre, apesar do luxo ao seu redor, sentia-se preso em uma jaula dourada, ansiando por algo mais verdadeiro”.
A reflexão final sobre a paz
Narrador historiador
Tolstói conclui com uma análise da paz que se segue à guerra, suas causas e consequências: “A paz, alcançada após tanto derramamento de sangue, era frágil e carregada de cicatrizes”.
Narrador ficcional
A transformação pessoal dos personagens principais, especialmente Natasha e Pierre: “Natasha, segurando a mão de Pierre, via um novo futuro se abrir diante deles, marcado não pela guerra, mas pela esperança”.
Esses exemplos ilustram como Tolstói usa a dualidade dos narradores para enriquecer sua narrativa, proporcionando uma visão abrangente dos eventos históricos enquanto mergulha nas profundezas das experiências pessoais de seus personagens.
A técnica narrativa dual utilizada por Tolstói deixou um legado significativo para a literatura, influenciando profundamente a maneira como os romancistas posteriores abordaram a narrativa e a construção de suas obras. Essa abordagem inovadora proporcionou um novo horizonte para a exploração de temas complexos e multifacetados, combinando análises históricas detalhadas com narrativas emocionais e íntimas.
Um dos impactos mais notáveis da técnica de Tolstói foi a maneira como ela abriu caminho para a criação de romances históricos que equilibram rigor histórico com o desenvolvimento de personagens. Escritores como Boris Pasternak em “Doutor Jivago” adotaram uma abordagem semelhante, tecendo a história da Revolução Russa e da Guerra Civil Russa com as vidas pessoais e os dramas internos de seus personagens. Essa fusão de história e ficção permite uma exploração mais rica e completa do contexto histórico e de suas implicações pessoais.
Além disso, a técnica de Tolstói influenciou a forma como os romancistas abordam a narrativa em termos de perspectiva e ponto de vista. William Faulkner, em obras como “O Som e a Fúria” e “Enquanto Agonizo”, utiliza múltiplos narradores para oferecer diferentes perspectivas sobre os mesmos eventos, criando uma narrativa complexa e multifacetada. Embora Faulkner não alterne entre narradores historiadores e ficcionais da mesma forma que Tolstói, a influência da técnica de múltiplas perspectivas é clara.
A dualidade narrativa de Tolstói também teve um impacto significativo na literatura pós-moderna, onde a intertextualidade e a metanarrativa se tornaram comuns. Em “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, a combinação de uma narrativa ficcional envolvente com reflexões históricas e filosóficas cria uma obra rica e complexa. Eco, como Tolstói, utiliza a história como um pano de fundo para explorar questões filosóficas e existenciais, mostrando a continuidade da influência tolstoiana na literatura contemporânea.
A técnica de Tolstói também inspirou romancistas a usar a narrativa para questionar a objetividade da história e explorar a subjetividade da experiência humana. Em “Middlesex”, de Jeffrey Eugenides, a história da família Stephanides é narrada em um contexto histórico mais amplo, questionando as narrativas tradicionais de identidade e história. Eugenides utiliza a herança dual de Tolstói para explorar temas de identidade e transformação por meio de uma lente tanto histórica quanto pessoal.
Outro exemplo da herança tolstoiana é visto na obra de Gabriel García Márquez, especialmente em “Cem Anos de Solidão”. Márquez combina uma narrativa ficcional rica e emocional com uma análise da história da América Latina, utilizando o realismo mágico para tecer uma tapeçaria que é ao mesmo tempo pessoal e histórica. A capacidade de Márquez de entrelaçar o micro e o macro reflete a técnica de Tolstói de combinar narrativas pessoais com eventos históricos.
A influência de Tolstói é também evidente na obra de Toni Morrison, especialmente em “Amada”. Morrison combina a história da escravidão nos Estados Unidos com a narrativa pessoal de Sethe, criando uma obra que é ao mesmo tempo uma poderosa história de vida e uma reflexão sobre a história e a memória coletiva. Morrison, como Tolstói, utiliza a dualidade narrativa para explorar as profundezas da experiência humana em um contexto histórico específico.
Kazuo Ishiguro, em “Os Vestígios do Dia”, adota uma técnica semelhante ao alternar entre a reflexão histórica e a narrativa pessoal. O protagonista, Stevens, revisita seu passado enquanto mordomo durante a Segunda Guerra Mundial, oferecendo uma análise introspectiva de suas experiências e das mudanças sociais e políticas de sua época. A técnica de Ishiguro ecoa a abordagem de Tolstói de combinar uma análise histórica com uma narrativa pessoal introspectiva.
A técnica de narrativa dual deixou um legado duradouro. A herança de Tolstói continua a ressoar na literatura contemporânea, inspirando escritores a explorar a interseção entre história e ficção de maneiras inovadoras e impactantes. Tolstói redefiniu o que um romance pode ser, expandindo suas possibilidades narrativas e temáticas. Sua técnica não apenas transformou a literatura de sua época, mas também lançou as bases para inovações contínuas na narrativa literária, assegurando que sua contribuição permanecerá relevante e inspiradora por muitas gerações futuras.
A impressão de que somente Proust seria o rival de Tolstói na construção de mundos se fundamenta ao observarmos as semelhanças sutis — e não tão sutis — na construção desse elemento fundamental para um romance: a — ou as, no caso do russo e do francês — voz narrativa.
A leitura de “Guerra e Paz” nos ensina a amplitude do que a literatura pode alcançar. Tolstói não nos entrega apenas uma narrativa histórica sobre a invasão napoleônica, mas nos oferece um tratado profundo sobre a condição humana, o destino, a liberdade e o poder, temas que atravessam os séculos. Como afirmou o crítico George Steiner em “Tolstói ou Dostoiévski”, Tolstói é “o mais simples e o mais complexo dos romancistas”, pois é capaz de se mover com igual destreza entre os pormenores da vida cotidiana e as vastidões do espírito.
A principal grandiosidade desta obra reside sim, entre outras qualidades, em sua habilidade de fundir o particular com o universal. Através de figuras como Pierre, Natasha, e Andrei, Tolstói explora dilemas que transcendem o contexto da Rússia imperial. “Cada personagem de Tolstói é, ao mesmo tempo, um indivíduo e uma metáfora da humanidade”, escreveu Isaiah Berlin em “O ouriço e a raposa”. Em Pierre Bezukhov, por exemplo, encontramos não só o herdeiro em busca de sentido, mas também o questionamento filosófico que ecoa em nós: qual o propósito da vida em meio à futilidade dos conflitos externos e internos?
É por isso que a leitura deste romance não é apenas um exercício estético ou intelectual, mas uma profunda experiência existencial. Como observou Virginia Woolf em “O Leitor Comum”, Tolstói “não apenas nos coloca dentro da história; ele nos coloca dentro da pele de cada personagem”. Ao ler “Guerra e Paz”, não somos meros espectadores dos eventos grandiosos, mas participantes do fluxo da vida que Tolstói desenha com sua precisão inigualável.
O que Tolstói faz com maestria é representar o caos sem jamais perder de vista a ordem oculta que permeia a existência humana. Como Milan Kundera afirma em “A Arte do Romance”, “a epopeia tolstoiana não nos mostra a guerra ou a paz, mas a beleza do tecido invisível que une a vida dos homens”. Através dessa lente, percebemos que os grandes eventos históricos são apenas o cenário para o verdadeiro drama: o das escolhas individuais, das paixões humanas e dos dilemas morais que se repetem, inescapáveis, em cada geração.
A leitura da obra-prima de Tolstói também nos proporciona uma valiosa lição sobre a natureza da história. Tolstói nos alerta, com sutileza, para o fato de que a história não é feita pelos grandes homens ou pelos imperadores, mas pelas ações aparentemente insignificantes de milhares de indivíduos. Em uma de suas célebres passagens, Tolstói faz questão de mostrar que Napoleão, longe de ser o arquiteto de seu próprio destino, é uma figura manipulada por forças além de seu controle. Essa visão crítica do heroísmo, como destacou Ernest Gellner em “Nações e Nacionalismos”, é um dos aspectos mais subversivos do romance.
O que se pode aprender ao ler esta obra é nada menos que o próprio tecido da vida humana, nas suas múltiplas dimensões. Tolstói, com sua narrativa monumental e sua visão panorâmica, nos oferece uma janela para o mundo que é, ao mesmo tempo, uma janela para nós mesmos. Como um espelho, o livro reflete as inquietações, as esperanças e as lutas que todos nós, em algum momento, enfrentamos. Ler “Guerra e Paz” é, acima de tudo, um exercício de autodescoberta e uma oportunidade para contemplar o vasto e intrincado cenário da vida.
Qual tradução para o português escolher?
Entre os meus 18 anos e a idade que tenho hoje, li “Guerra e Paz” cinco vezes, cada uma em uma tradução diferente. A cada nova leitura, redescubro nuances do texto de Tolstói que, por vezes, se revelam apenas pela escolha precisa de um tradutor. Cada versão me trouxe uma experiência particular, com nuances estilísticas e diferentes níveis de fidelidade ao original russo, fazendo com que a obra se mostrasse, de certa forma, nova a cada releitura. Foi essa jornada, através das traduções, que me permitiu entender melhor não apenas “Guerra e Paz”, mas também o papel crucial que os tradutores desempenham ao mediar nossa relação com os grandes clássicos.
No Brasil, “Guerra e Paz” tem um histórico de traduções que reflete a importância monumental da obra de Tolstói e sua constante demanda entre leitores lusófonos. A primeira tradução, realizada por Lopes de Almeida no início do século 20, ainda que pioneira, sofria com problemas de fidelidade e estilo, comuns à época em que as traduções eram feitas a partir de versões intermediárias, como o francês. Com o tempo, outras traduções surgiram, cada uma oferecendo novos olhares e abordagens ao monumental texto de Tolstói. Entre elas, destacam-se as de Oleg Almeida e Rubens Figueiredo, sendo esta última, em particular, amplamente reconhecida como a mais relevante e recomendada atualmente no Brasil.
A tradução de Rubens Figueiredo, publicada hoje pela Companhia das Letras, e inicialmente pela saudosa Cosac Naify, é notável por sua precisão e cuidado com os matizes linguísticos do original russo. Figueiredo busca preservar tanto a fluência do texto quanto a fidelidade aos aspectos culturais e históricos da obra, proporcionando ao leitor uma experiência de imersão profunda. Ele equilibra com maestria as complexidades do estilo de Tolstói, incluindo suas reflexões filosóficas e passagens descritivas, com a clareza necessária para garantir uma leitura acessível sem perder a densidade do original.
No entanto, não podemos deixar de mencionar o trabalho extraordinário do casal de tradutores portugueses, Nina e Filipe Guerra, que vêm traduzindo de forma exemplar tanto Tolstói quanto Dostoiévski. Eles têm estabelecido um novo patamar para a tradução de autores russos em língua portuguesa. Ao mergulharem na cultura e no idioma russo, sua tradução de “Guerra e Paz”, em quatro volumes, é um projeto minucioso e altamente respeitado, especialmente por seu rigor acadêmico e sua sensibilidade literária. A edição da Editorial Presença, que traz a tradução de Nina e Filipe Guerra, é uma excelente escolha para leitores que buscam uma aproximação ainda mais precisa e contextualizada com a obra de Tolstói, alinhada à tradição de traduções portuguesas de alta qualidade.
Assim, para o público brasileiro, a tradução de Rubens Figueiredo permanece a principal recomendação, por sua acessibilidade e fluidez. Contudo, para aqueles que têm a possibilidade de acessar a tradução de Nina e Filipe Guerra, será uma oportunidade única de se aproximar ainda mais do espírito da literatura russa em uma versão fiel e poeticamente rica, estabelecendo um contato íntimo com a prosa de Tolstói. Ambas as traduções, cada uma em seu contexto, oferecem portas distintas, mas igualmente fascinantes, para um dos maiores romances de todos os tempos.
Fonte: Bula / Foto: Reprodução bula