Edison Veiga – Segunda, 26 de agosto de 2024
Ao lado de Pixinguinha, músico integrou grupo que excursionou apresentando a MPB para a Europa nos anos 1920. Pesquisador lamenta que seu legado ainda não seja bem reconhecido.
Ernesto Joaquim Maria dos Santos, mais conhecido como Donga (1890-1974), tinha 26 anos quando gravou a canção Pelo Telefone. Em 27 de novembro de 1916, a música foi registrada sob o número 3.295 do Departamento de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro. Entraria para a história como o primeiro samba gravado da história.
Donga assinou como autor da composição. Mais tarde, acrescentaria o nome do jornalista e compositor Mauro de Almeida (1882-1956) como parceiro. Mas, ao que tudo indica, Pelo Telefone foi uma criação coletiva dos frequentadores de um famoso terreiro de candomblé da Praça Onze, no Rio. Quando provocado sobre o assunto, Donga costumava tergiversar, argumentando que “música é como passarinho, de quem pegar primeiro”.
Para o músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo (USP) e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a gravação de Pelo Telefone foi um ato de “oportunismo, de esperteza” de Donga, que era um “irrequieto líder natural” dos sambistas daquele contexto.
Embora tenha se tornado um marco da MPB, reconhecido por especialistas e celebrado por instituições — a própria Biblioteca Nacional dedicou uma exposição ao tema quando o registro completou 100 anos, em 2016 —, hoje se entende que havia outros sambas gravados anteriormente, só que com menos alarde, menor sucesso e reduzida importância.
“Não foi o primeiro samba gravado, mas o primeiro samba de sucesso”, pontua o jornalista, escritor e historiador da música Rodrigo Faour, autor de, entre outros livros, História da Música Popular Brasileira Sem Preconceitos. “Ele entendeu que precisava fazer da gravação de Pelo telefone um acontecimento. Então planejou tudo muito bem. Pegou os versos de improviso e motivos folclóricos dessa canção e pediu que um jornalista prestigiado, Mauro de Almeida os organizasse, e foi até a Biblioteca Nacional registrá-lo.”
Faour conta que houve “muitos protestos de outros compositores que se sentiram lesados” por não constarem como autores da canção. Mas, o “trunfo maior” de Donga “foi chamar a atenção para este novo gênero musical”. O samba “rapidamente contagiou a todos”. “A música caiu na boca do povo”, diz o historiador.
Samba como ícone de brasilidade
A gravação do samba não foi o único ponto alta da carreira de Donga, evidentemente. Criou com Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1973), o Pixinguinha, a Orquestra Típica Donga-Pixinguinha. Em 1919, com o parceiro e outros seis músicos, organizou o grupo Oito Batutas, que excursionou pela Europa nos anos 1920, encantando com o jeito brasileiro de fazer música.
No livro-entrevista Blaise Cendrars vous parle, publicado em 1952, o escritor franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961) define Donga como dotado “de um bom humor constante e uma graça irresistível”. “Ele tinha o gênio da música popular”, elogia.
Fato é que Pelo Telefone e, depois, os Oito Batutas foram essenciais para forjar o samba como o grande gênero musical icônico do país. O antropólogo Hermano Vianna explica em seu livro O Mistério do Samba que o estilo se firmou como ritmo oficial do Brasil dentro do projeto de nacionalização e modernização do país empreendido pelo governo do presidente Getúlio Vargas (1882-1954) a partir dos anos 1930, com aval dos intelectuais que exaltavam o legado do modernismo. Assim, o samba suplantou a música caipira como o gênero musical pelo qual o Brasil se tornaria globalmente conhecido. O urbano vencia o rural.
Vargas apoiou o carnaval como ferramenta de soft power. E estrangeiros ilustres, como o empresário e produtor cinematográfico norte-americano Walt Disney (1901-1966), passaram a ser levados para conhecer as escolas de samba do Rio.
“A vitória do samba era também a vitória de um projeto de nacionalização da sociedade brasileira. O Brasil saiu do Estado Novo com um elogio (pelo menos em ideologia) da mestiçagem nacional […]. Na música popular, o Brasil tem sido, desde então, o Reino do Samba”, escreve Vianna.
Em 1940, Donga gravou nove composições no disco Native Brazilian Music, que foi organizado e regido por dois maestros, o brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e o britânico Leopold Stokowski (1882-1977), e lançado nos Estados Unidos. Para o músico, compositor e diretor de arte Bruno Leo Ribeiro, do podcast Silêncio no Estúdio, isto pode ter aberto as portas do mercado cultural americano para obras brasileiras — o que se consolidou mais tarde, com a bossa-nova.
“Santíssima Trindade” da MPB
Filho de um pedreiro que tocava bombardino nas horas vagas e de uma mãe de santo que cantava modinhas e adorava fazer festas, Donga cresceu em um ambiente extremamente musical, pobre e de sincretismo religioso no Rio. E isto moldou sua trajetória artística.
Ikeda lembra que, organizados por mães de santo, esses terrenos de candomblé, também chamados de macumba no Rio, funcionavam como um “circuito de ambientes multiculturais, que propiciavam uma efervescência musical”. “Eram espaços de moradia e de conciliação de atividades religiosas com encontros profano-festivos”, analisa o professor
O compositor Livio Tragtenberg, ex-professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e criador da Orquestra de Músico das Ruas de São Paulo, situa Donga como integrante da “tríade mais importante da música carioca negra”, ao lado de Pixinguinha e João da Bahiana (1887-1974).
Ele atenta para o fato de que a gravação de Pelo Telefone ocorre menos de 30 anos depois da Lei Áurea ter libertado oficialmente os escravizados no Brasil, em 13 de maio de 1888. “Estamos falando de um contexto histórico ainda muito conturbado no Rio. E o samba é o primeiro gesto de afirmação cultural dos negros no contexto da música brasileira. Ele rompe com aquela cultura muito europeizada que ainda havia”, analisa Tragtenberg.
“Seu legado foi o de ser um dos pioneiros do samba e também de exercer uma espécie de liderança, dando conselhos e costurando contatos importantes com figuras da alta sociedade da época”, comenta Faour. “Pixinguinha, embora fosse o músico mais talentoso do grupo, por vezes era um pouco desorganizado com a parte mais burocrática, daí Donga ter sido fundamental nesse meio de campo.”
“Ele é desses pioneiros que a gente precisa sempre lembrar. O Brasil tem uma certa dificuldade de manter seus arquivos vivos. A gente acaba lembrando mais de artistas com mais sucesso comercial”, avalia Ribeiro. “O legado que ele deixa é ter sido um dos primeiros a abrirem a porta para o samba evoluir. Ele fazia marchinhas, maxixe e samba. Tudo isso foi evoluindo em um amálgama e se misturando para virar o samba que a gente conhece hoje em dia. Ele foi fundamental para a gente chegar aonde chegou.”
O músico Ikeda lamenta que ainda faltem trabalhos acadêmicos que reconheçam o legado de Donga. “Ele era compositor, instrumentistas que tocava violão, cavaquinho e percussão, fez parte da divina trindade do surgimento do samba [com Pixinguinha e João da Bahiana], sempre exerceu uma verve de liderança. Tem de ser reconhecido de fato”, argumenta. “Ainda faltam pesquisas para que se compreenda a devida dimensão do Donga naqueles primórdios da música brasileira.”
Apesar da grandeza de sua carreira e da importância que teve para a música brasileira, Donga passou dificuldades no fim da vida. Oficial de justiça aposentado, acabou sendo acolhido pelo Retiro dos Artistas — instituição que abriga artistas idosos com problemas financeiros. Doente e com a visão bastante debilitada, morreu em 25 de agosto de 1974. Ficou sua música, gravada e eternizada desde 1916.
Fonte: DW / Foto: Arquivo Nacional/Public Domain