HARMONIAS E DISSONÂNCIAS DOS NOVOS BAIANOS VOLTAM À TONA EM LIVRO SOBRE A VIDA COMUNITÁRIA DO GRUPO

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“Certa vez, (os Novos Baianos) chegaram a interromper abruptamente um show que estavam fazendo na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, porque se incomodaram com os trejeitos efeminados de um argentino que dançava bem próximo do palco e contagiava a plateia com sua alegre performance. A cena foi bem desagradável e gerou críticas no meio artístico. Coisas despropositadas e imprevisíveis para quem pregava viver com liberdade e amor”.

Ao vir à tona, exposto na página 168 do livro Caí na estrada com os Novos Baianos, o caso de homofobia ajuda a diluir alguns mitos sobre o grupo musical soteropolitano que deu sacudida na MPB ao eletrificar e arejar o samba e choro com a linguagem pop do rock em revolução musical sintetizada no álbum Acabou chorare (1972).

Quem conta o surpreendente caso é a produtora cultural Marília Aguiar, autora deste saboroso livro que descortina os bastidores do grupo que, nos 1970, agregou Moraes Moreira (1947 – 2020), Luiz Galvão, Baby do Brasil (então Baby Consuelo), Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor – os nomes fundamentais do núcleo dos Novos Baianos.

Poeta e principal letrista do grupo, Galvão já contou a história dos Novos Baianos, com o benefício de ser um dos protagonista dessa história, no livro Anos 70 – Novos e Baianos, lançado em 1997 e reapresentado em 2014, em edição ampliada e atualizada, com outra capa e outro título.

O alentado livro de Galvão se encaixa na moldura mais formal das biografias. Caí na estrada com os Novos Baianos oferece relato informal – e a informalidade e o descompromisso com o rigor biográfico são justamente os trunfos, e não deméritos, da narrativa – escrito na primeira pessoa, como já sinaliza o título do livro.

Trata-se da história dos Novos Baianos sob a perspectiva pessoal de Marília Aguiar, paulista que largou a confortável vida familiar para ir viver e constituir a própria família com Paulinho Boca de Cantor no estilo comunitário e hippie do grupo.

Ler o relato da produtora – transformado em livro por incentivo de Zélia Duncan, autora do prefácio – é como espiar os Novos Baianos pelo buraco da fechadura das muitas casas e do sítio carioca Cantinho do Vovô em que todos viveram juntos.

Sem o filtro das biografias mais cerimoniosas, a autora oferece visão feminina de história dominada por homens. Marília Aguiar deixa claro que existia machismo na comunidade nova baiana – comportamento exemplificado pela prioridade sempre dada ao sagrado futebol masculino e pela história de que, quando o grupo precisou comprar carros para viabilizar a logística das viagens profissionais dos músicos à Bahia, somente os nomes dos homens entraram no sorteio para ver em nome de quem os carros seriam postos.

Contudo, a exposição corajosa dessas dissonâncias sociológicas é encoberta pelas harmonias daquela comunidade. Sem romantizar a vida hippie (“Foi, durante todo o tempo, uma experiência única e surpreendente. Mas era também uma vida instável, inconstante e cheia de incertezas”, avalia a autora na página 206), Marília Aguiar recorda os perrengues na busca do pão nosso de cada dia – lembrados no livro em casos que se sucedem na narrativa – e exalta os entendimentos, a liberdade e o desapego material dos artistas.

Roupas e alimentos eram divididos irmãmente. Já os cuidados com as crianças ficavam mesmo a cargo das mulheres, cúmplices e solidárias no cotidiano materno. Enfatizada ao longo do livro, a relação afetuosa e fraterna de Marília com Baby – belo caso de sororidade feminina – é especialmente comovente. Também chama a atenção no relato o alto número de pessoas generosas que socorreram os artistas em momentos de extrema dificuldade.

Entremeada na edição do livro com a exposição farta de fotos da época, a narrativa de Marília Aguiar jamais sai do foco pessoal, humano. Já detalhado em livros e textos mais acadêmicos, a importância do som do grupo na música brasileira é assunto que escapa dessa visão tão amorosa quanto realista da vida na estrada com os Novos Baianos.

E a estrada foi sendo encurtada na medida que as crianças foram crescendo e os pais (sobretudo as mães) perceberam que a vida fora da comunidade seria mais benéfica para os filhos. E cada um foi tomando o próprio rumo, a começar por Moraes Moreira, que debandou em 1974.

Ficaram as lembranças de harmonias e dissonâncias de tempo marcante nas vidas dos protagonistas dessa história. São essas lembranças que justificam o envolvente relato de Marília Aguiar em livro que vai além da história oficial para mostrar a vida em comunidade como ela realmente foi.

Fonte: G1

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