Medicamento para diabetes é utilizado por cerca de 1,3 milhões de brasileiros diariamente. Mesmo assim, sua produção se concentra em três corporações da Big Pharma, que minam tentativas de fabricação nacional. Como superá-las?
Por Reinaldo Guimarães, autor convidado
De acordo com a International Diabetes Federation (IDF), em 2021 havia cerca de 537 milhões de adultos com diabetes no mundo, o que representa cerca de 9,3% da população adulta global (1). A estes pode-se somar os diabéticos abaixo de 20 anos, todos insulinodependentes. Em 2021 foram 6,7 milhões de óbitos pela doença. Para efeito de comparação, o total acumulado de mortes por covid-19 durante todo o período pandêmico até 21/3/2023 foi de 6,87 milhões (2).
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (2019) realizada pelo ministério da Saúde e o IBGE, a prevalência do diabetes mellitus no Brasil é de cerca de 7,7%, o que representa aproximadamente 13,4 milhões de pessoas com a doença (3). De acordo com as estatísticas internacionais, cerca de 10% dos diabéticos fazem uso de insulina, o que aponta cerca de 1,3 milhões de brasileiros fazendo uso contínuo do medicamento, mais de uma vez por dia.
Sugere-se ainda que esses números podem estar subestimados. Esse quadro, por si só, revela o papel central da insulina na política de assistência farmacêutica brasileira. Talvez seja o medicamento individual e eficaz de maior impacto para a garantia de sobrevivência de tantas pessoas.
Frente a este “diagnóstico”, qual é a situação global da insulina? Melhor dizendo, qual a situação global das insulinas (pois há vários tipos de apresentação e modos de dispensação)? Como pode um medicamento com tal impacto estratégico e sanitário ter o seu mercado mundial dominado por apenas três empresas que, entre si, dividem-no com práticas que se aproximam de cartéis? A norte-americana Eli Lilly, a dinamarquesa Novo Nordisk e a francesa Sanofi respondem por cerca de 90% de todas as vendas no mundo (4).
Como a imensa maioria das doenças e agravos, é o sul do planeta que suporta a maior carga no diabetes, mas nem de longe os problemas postos pelo oligopólio da insulina são vividos apenas por nós. Em 2022, o presidente Joe Biden sancionou uma lei impondo um teto para o pagamento nas compras de insulina feitas diretamente pelos pacientes inscritos no componente público do seu desregulado sistema de saúde (Medicare). Pediu a compreensão das três empresas e recentemente agradeceu a Eli Lilly por ter baixado voluntariamente seus preços.
Mais um comentário geral: alguém poderia perguntar por que não há genéricos para um medicamento com mais de 100 anos de uso. Bem, isso acontece porque a cada pequeno desenvolvimento no produto (análogos) e, principalmente na via de administração, novas patentes são depositadas. E, ao lado disso, maciças campanhas publicitárias são realizadas junto aos médicos que em sua maioria são bastante receptivos às novidades.
E no Brasil, como estão as coisas? Nossas tentativas de romper com a dependência do oligopólio nos últimos 50 anos não foram, até hoje, bem sucedidas. Para este cenário contribuíram fragilidades de nossas políticas industriais no período, a captura de alguns agentes políticos e regulatórios pelos interesses desse oligopólio e também a fragilidade de algumas iniciativas construídas para enfrentá-lo.
No centro dessas tentativas encontra-se a ascensão e queda da empresa mineira originalmente familiar Biobrás, de propriedade das famílias Mares Guia e Emerich. A empresa explorava então a rota tecnológica da época, a partir do pâncreas porcino, matéria prima que fornecia à Eli Lilly, sua sócia minoritária. Com o desenvolvimento da nova rota biotecnológica, a Biobrás teve que explorar essa nova tecnologia e, para isso, desfez a sociedade com a empresa norte-americana e iniciou processo com a contratação de dois pesquisadores – Spartaco Astolfi Filho e Josef Ernest Thiemann, então na Universidade de Brasília.
Mesmo bem sucedida no desenvolvimento dessa insulina recombinante, ela terminou excluída do mercado público pela prática de dumping por parte das duas empresas oligopolistas na virada do século. Após manobras que retardaram uma decisão favorável à Biobrás pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), não lhe restou outra saída senão vender a empresa à Novo Nordisk que, alguns anos depois, a extinguiu.
A outra iniciativa foi o convênio entre Farmanguinhos e a empresa estatal ucraniana Indar, que foi submetido a inúmeros constrangimentos regulatórios que, quando superados, enfrentou a repetição de processos de dumping na competição para a venda para o SUS. Nesse caso, vale mencionar que após a saída da Biobrás do mercado, os preços da insulina nas concorrências explodiram e os vencedores eram quase sempre ou uma ou outra (Eli Lilly ou Novo Nordisk). Quando foi anunciado o acordo entre Farmanguinhos e a empresa ucraniana, os preços desabaram com redução de cerca de 2/3 do preço anterior.
De modo bastante detalhado, deixo abaixo dois links que ajudam a compreender o desafio da autossuficiência brasileira em insulina.
Matéria da Revista Fapesp (Edição 302 abril 2021) https://revistapesquisa.fapesp.br/a-descoberta-da-insulina/
Bárbara Ferreira. Produção Pública de Insulina. Cadernos de Farmanguinhos 4: http://www2.far.fiocruz.br/farmanguinhos/images/producaoinsulinabarbara.pdf
Notas:
1) https://diabetesatlas.org/atlas/tenth-edition/
2) WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard. https://covid19.who.int/
4) https://investigateinsulinnow.com/insulin-cartel
Fonte: Outra Saúde