Moradores comemoram com carreatas os indicadores de educação, mas professores temem retrocessos pelas dificuldades impostas pelo ensino a distância. Maioria dos alunos não têm acesso à internet
DIOGO MAGRI|REGIANE OLIVEIRASão Paulo – 21 SEP 2020 – 11:08 EDT
E se o Brasil comemorasse a educação como se fosse uma vitória no futebol? Vez por outra essa pergunta circula quando alguém quer apontar a falta de interesse do país pelo tema. Trata-se, no entanto, de uma falsa premissa. Esse Brasil, que torce pela educação e festeja cada pequena vitória como se fosse um gol, existe. Mesmo em tempos de pandemia, cidades do interior do Piauí interromperam por um momento o foco na contagem de casos de coronavírus para celebrar, com carreatas e buzinaço pelas ruas, cada décimo de avanço no Índice Nacional de Educação Básica (Ideb), o principal marcador da qualidade do ensino brasileiro.
“A gente comemorou muito no grupo de WhatsApp da escola, mas não fui para rua”, conta Vanessa de Carvalho Oliveira Lima, 15 anos, que mora a cerca de 12 quilômetros do centro de Oeiras, antiga capital do Piauí, numa comunidade rural. A distância atrapalhou Vanessa, mas no centro da cidade, o cenário foi outro. Pais, professores, alunos e funcionários da rede pública saíram em carreata para celebrar.
Educação é motivo de orgulho neste município piauiense de 37.000 habitantes. A rede municipal, que tem 6.139 alunos, alcançou nota 7.4 nos anos iniciais (5º ano) do Ideb, um avanço em relação aos 7.1 da prova anterior, em 2017. Todas as escolas registraram nota acima de 6.4 nos anos iniciais do ensino fundamental, superior à média do Piauí (5.7), à média nacional (5.9) e muito acima do definido no programa de metas do Ministério da Educação (5.0). Nos anos finais (9º ano), a cidade também avançou, de 5.4 para 6.3, acima da média do Estado (5.0) e do Brasil (4.9).
Mas esse amontoado de números por si só não dá a dimensão do impacto da educação para a população de Oeiras. Vanessa conta que foi a escola que ampliou seu horizonte para além da comunidade rural onde vive. “Meus pais falam que se nós não estudarmos, só teremos a roça, como eles. E eu quero estudar no exterior”, diz a adolescente, que sonha em fazer gastronomia, talvez moda, mas tem “muito amor pela fotografia” e um “encanto pelo jornalismo”.
Sonhos também compartilhados com Paula Emanuely Laurindo Silva, 12 anos, aluna de uma escola da periferia, que atende crianças em situação de vulnerabilidade econômica, e quer ser advogada para fazer “justiça social”. Sua escola teve uma das notas mais altas do Ideb, 8.3. O ensino a distância imposto pela pandemia, no entanto, não está agradando os estudantes e causa apreensão entre a população, orgulhosa do bom desempenho no Ideb. “Sinto falta dos meus amigos, mas é o jeito”, disse a menina, que hoje acompanha aulas pelo rádio, em material impresso e pelo WhatsApp; enquanto Vanessa encara o choque de sair de uma escola do município e passar para uma unidade do Estado para fazer o ensino médio. “Não tivemos aula presencial neste ano porque teve greve de professores e de ônibus, e depois veio a pandemia”, lamenta. “Temos aula on-line por aplicativo, mas nem sempre ele funciona. No primeiro semestre, não acompanhei por falta de Internet. Mas minha família fez um esforço e agora estou participando das aulas.”
Alegria e preocupação
A celebração só não foi maior em Oeiras porque a divulgação do indicador neste ano caiu em período de eleições municipais. “Recebemos o resultado com muita alergia, mas também com muita preocupação, porque ele é produto de um trabalho focado e articulado de planejamento. E de repente nos deparamos com uma pandemia”, diz a Tiana Tapety, secretária de Educação municipal da cidade localizada a 280 quilômetros ao sul da capital Teresina. A cidade vem sentindo o impacto do coronavírus, com 1.341 casos e 14 mortes, segundo os dados atualizados até este sábado, 20 de setembro.
A angustia da secretária de Educação é compartilhada por outras cidades do interior do Estado. Em Santa Cruz do Piauí, um município de 6.000 habitantes e 980 alunos, localizada a cerca de 40 quilômetros de Oeiras, a nota de 6.2 no Ideb de 2019 representou uma quebra de paradigmas. “Saímos em carreata, a cidade está muito feliz, nunca tínhamos ultrapassado a faixa de 4 pontos”, conta a secretária municipal de Educação, Marinalva Gonçalves. “Sabemos que agora a responsabilidade aumentou, porque não queremos retroceder. Mas os alunos terão um prejuízo com a pandemia. No próximo ano, como vai ser?”.
Está previsto para outubro de 2021 a realização de novas provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) ―o conjunto de exames externos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)―, que vão compor o Ideb que será divulgado em 2022. O indicador de qualidade faz parte de uma espécie de campeonato bianual iniciado em 2007. As notas, que variam de 0 a 10, são calculadas a partir dos dados das provas do Saeb de língua portuguesa e matemática. O objetivo do Governo Federal é que todas as redes do país alcancem a média de 6.0 pontos até 2022 ― bicentenário da independência ―, o que corresponderia a média do sistema educação dos países desenvolvidos. Nesta data, termina o programa de metas atual, que deverá ser analisado e repactuado.
No campeonato do Ideb, Estados, cidades e escolas não disputam entre si. O adversário são eles mesmos, e sua falta de recursos, estrutura, capacitação de professores, desigualdade social e muitas vezes a fome, com que crianças e adolescentes ainda chegam à escola. Agora, tem que encarar também uma antagonista de peso, a covid-19.
O EL PAÍS perguntou ao Inep se há estudos para adiar ou até mesmo cancelar a prova no próximo ano, mas o órgão não respondeu até a publicação desta reportagem. A autarquia do MEC anunciou juntamente aos dados do Ideb, um plano escalonado para a implementação de um Novo Saeb a partir de 2021, que será realizado anualmente, incorporando todas áreas do conhecimento e também o 3º ano do ensino médio, que realizará o que está sendo chamado de Enem Seriado, uma nova prova, que somada aos resultados dos anos anteriores, também será utilizada para ingresso nas faculdades.
O peso da alfabetização
Em Simões, uma cidade de 15.000 habitantes e 3.044 alunos, também no interior do Piauí, o avanço de 5.0 para 6.7 pontos surpreendeu até mesmo a gestão municipal. “Não esperávamos e estamos radiantes”, conta Iris Elaine Dantas de Carvalho, secretária de Educação da cidade. Assim como Oeiras e Santa Cruz do Piauí, a cidade implementou um método criado por duas educadoras de Teresina ― Ruthnéia Lima e Osana Morais ―, que promete uma intervenção rápida, ao estilo Paulo Freire de educar, na alfabetização das crianças. Chamado de Projeto Borboleta, a metodologia começou a ser trabalhada com os alunos do ensino fundamental em agosto de 2019. Em outubro, as crianças já realizaram o teste do Saeb. “Vimos o resultado de três meses não só na nota, mas na leitura e escrita dos estudantes”, afirma a secretária de Educação de Simões. Segundo ela, 94% das crianças que entraram no projeto saíram completamente alfabetizadas.
A cidade de Dom Expedito Lopes, também no interior do Estado, foi outra que se surpreendeu com os reflexos da alfabetização adequada nos resultados do Ideb. “O Projeto Borboleta veio para salvar o futuro de Dom Expedito Lopes. Eu quero chorar de tanta emoção”, diz por sua vez Edson Carlos, secretário de Educação municipal. A cidade teve uma média de 5.0 no Ideb 2017 nos primeiros anos do ensino fundamental e 3.7 para os anos finais. Em 2019, os resultados foram de 6.3 e 5.4, respectivamente. Dom Expedito, que tem pouco mais de 8.000 habitantes e 1.112 alunos na rede, iniciou o Projeto Borboleta em 2018, com ênfase no 1º ao 5º ano do fundamental. “O projeto não ajuda somente a atingir metas, mas tem o lado social, ensina as crianças no seu devido tempo e condição a ter uma percepção de mundo e praticar o exercício pleno de cidadania”, elogia Carlos.
O desafio de manter o vínculo com a escola na pandemia
Os resultados do Ideb chegam em um momento em que as escolas públicas enfrentam um desafio inédito. Com a pandemia apenas dando os primeiros sinais de esmorecimento no país, e sem perspectiva de volta às aulas, o temor é que as conquistas possam retroceder. “A responsabilidade fica sendo da família para responder as atividades e dar um retorno. Infelizmente, não é a mesma coisa”, afirma a secretária de Educação de Simões.
Em maio, Oeiras realizou um levantamento com 1.800 famílias, que mostrou que apenas 16% tinham acesso à Internet, apesar de 78% terem celular. Metade dos pais afirmou que tinha dificuldade em orientar seus filhos em casa, mas quase 64% não desejavam que os filhos voltassem às aulas imediatamente. E o percentual que desejava o retorno à escola, esperava que o município fornecesse máscara, álcool em gel e garantisse um distanciamento mínimo de 1 metros entre os alunos.
A opção por enviar o material impresso mensal também é utilizada em Simões e Dom Expedito Lopes. Em Santa Cruz do Piauí, os pais tem que buscar os cadernos de exercício impresso a cada 15 dias. “Foi a única maneira que encontramos, menos de 20% dos alunos tinham acesso a Internet. Mesmo assim, os professores fazem vídeos e enviam para as crianças”, afirma a secretária Marinalva Gonçalves, que está bem preocupada com os próximos meses. “Não temos condições de retornar às aulas presenciais porque a pandemia está interiorizando agora no Piauí”, afirma.
As redes trabalham com o desafio de manter o vínculo das crianças com a escola e evitar a evasão em meio a pandemia. “Os alunos, em posse dessas atividades mensais, quando têm alguma dúvida, recorrem aos grupos de WhatsApp formados pelo professor de cada disciplina para atendimento individualizado”, afirma Carlos, secretário de Dom Expedito Lopes. “Os professores também utilizam o Google Meets para videoconferências e produzem vídeos por YouTube”, diz.
Por trabalhar com muitas famílias cujos filhos são a primeira geração com oportunidade de terminar o ensino básico, a secretária de Oeiras sabe que não pode exigir da família um acompanhamento dedicado. “Não podemos cobrar da família uma postura de escola”, explica. A cidade já tem um protocolo para retomar às aulas de forma híbrida ―parte presencial, parte rádio e material impresso―, assim que for autorizado.
A rede, que chega a ter 35 alunos por sala, dependendo da escola, planeja voltar inicialmente com apenas 20% da capacidade da turma por cada dia da semana. “Comparamos nossa realidade com o que já está acontecendo pelo mundo e ninguém tem uma receita, uma fórmula mágica, um protocolo único para como essa volta às aulas deve acontecer. Garantir que os alunos estejam na escola pelo menos uma vez por semana é a forma mais segura que encontramos para um primeiro momento.”
Fonte: El País