Por Larah Camargo
Com 85% da população brasileira vivendo nas cidades, participação social se mostra fundamental na garantia da segurança
Quem chega ao Morro dos Prazeres, nas proximidades do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, avista um jardim no meio do deserto: trata-se da Horta dos Prazeres, iniciativa popular dos hortelões urbanos do Morro. O local, que antes era um ponto onde os moradores jogavam lixo e entulho, virou uma horta comunitária durante a pandemia.
Segundo o Mapeamento de Desertos e Pântanos Alimentares do Governo Federal, a região do Morro dos Prazeres conta com um número muito alto de população de baixa renda e em situação de pobreza. E é considerada tanto um deserto (uma vizinhança que não tem acesso à alimentação saudável) quanto um pântano alimentar (território onde a oferta de alimentos não saudáveis e ultraprocessados é facilitada).
“Aqui é um deserto alimentar. Para dentro da comunidade, é só pacote. Não tem a variedade de alimentos que a gente precisa e o preço nem sempre é acessível. Nós discutimos muito sobre como a gente seduz as pessoas daqui para esse estilo de vida. Para isso, a gente tem que procurar estratégias que nos unam e que nos levem de volta ao comunitarismo. E a gente tem feito isso a partir da terra”, comentam Wellington Fyah e Jovelino Dan K, integrantes do coletivo da Horta dos Prazeres, que também promove mutirões, iniciativas culturais e eventos com atendimento nutricional para os moradores. Eles explicam que a horta, além de fomentar o acesso à alimentação saudável no Morro, tem se tornado uma área de lazer para o bairro, que também sofre com a falta de infraestrutura urbana.
No Rio de Janeiro, cidade onde quase um milhão de pessoas enfrentam a fome, as hortas urbanas são grandes potencializadoras da soberania alimentar. Pesquisadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA) da Fiocruz-Brasília e uma das organizadoras do caderno “Desertos, Pântanos e Oásis Alimentares”, Erica Ell destaca que essas hortas, ao mesmo tempo que produzem comida fresca e saudável para a população, também favorecem a participação ativa da comunidade na produção de alimentos: “Elas são uma forma de socialização muito importante no sentido de favorecer essa troca solidária entre as pessoas. Plantar, produzir e colher é uma forma de lazer, principalmente em comunidades vulneráveis, onde o lazer costuma ser muito restrito, especialmente para as crianças e adolescentes”, pontua Erica.
Hoje, a Horta dos Prazeres é beneficiada pelo programa da prefeitura Hortas Cariocas, que fornece suporte técnico e financeiro para iniciativas de agricultura urbana na cidade. Metade da produção gerada pelo programa é doada para creches, orfanatos, asilos, abrigos e famílias em situação de vulnerabilidade do Rio. A outra metade é comercializada, como uma forma de complementar a renda dos hortelões, que são remunerados para cuidar dos espaços.
A menos de 10 quilômetros dali, no Morro da Babilônia, a chef paraibana Regina Tchelly põe em pé, desde 2011, o Favela Orgânica – um projeto que capacita moradoras das comunidades da Babilônia e do Chapéu Mangueira por meio de aulas e oficinas de gastronomia criativa, horta, compostagem, conscientização ambiental e educação financeira. Além disso, a iniciativa também oferece atendimento psicológico e nutricional e distribui mensalmente 160 cestas com alimentos orgânicos para as participantes.
Regina, que começou o projeto com apenas R$140 na cozinha de sua casa, ensina uma culinária de aproveitamento total dos alimentos, transformando os “restos” que iriam para o lixo em receitas como cocada de casca de melancia, hambúrguer de talos e risoto de PANCs. Ela comenta que o projeto tem democratizado o acesso à alimentação saudável na região – que também é considerada um deserto alimentar conforme o Mapeamento de Desertos e Pântanos – e tem sido um verdadeiro “consultório” para os moradores das favelas: “As doenças são muito consequência da nossa alimentação. A gente quer tirar da cabeça delas que o industrializado é mais barato, e temos visto resultado. Mulheres que estavam com colesterol ‘ruim’ em mais de 400 mg/dL, baixaram para 100 mg/dL”.
Semanalmente, o Favela Orgânica oferece oficinas de capacitação em gastronomia criativa para as mulheres do Morro da Babilônia. Foto: Cortesia/Nathalie Ranzolin
Na pandemia, período em que o Brasil voltou ao Mapa da Fome, o Favela Orgânica exerceu um papel importante no combate à insegurança alimentar nas comunidades, distribuindo mais de 10 mil quentinhas orgânicas e vegetais.
Foi também durante a pandemia de Covid-19 que as cozinhas solidárias, geridas pela sociedade civil e por movimentos populares, ganharam força no enfrentamento à fome nas periferias dos centros urbanos do Brasil. Em Campinas, no bairro São Marcos – classificado por um estudo da Unicamp como um pântano alimentar – a Cozinha Solidária do São Marcos distribuí entre 500 e 600 refeições por dia para a comunidade.
Idealizada e coordenada pelo padre Antonio Rodrigues Alves, a Cozinha surgiu em junho de 2021 e é uma ação conjunta do Núcleo de Economia de Francisco e Clara, da Arquidiocese de Campinas e do acampamento Marielle Vive do MST, que leva cinco militantes para cozinhar todos os dias. A iniciativa também conta com o apoio de parceiros, doadores e voluntários que ajudam na missão de promover uma alimentação de qualidade para quem tem fome: “Nós temos uma preocupação com a segurança alimentar e nutricional, então a gente não serve embutidos e ultraprocessados aqui, porque esse tipo de alimento já chega para as pessoas. Eles estão ficando cada vez mais baratos e muitas vezes é o que eles podem comprar”, comenta o padre.
Cozinha do São Marcos chega a oferecer até 600 refeições em um único dia. Foto: Luciana Cavalcanti/Cortesia.
Além de servir as refeições três vezes na semana, a Cozinha do São Marcos também promove oficinas de panificação como uma forma de incentivar a geração de renda; mutirões para cuidar da horta comunitária e rodas de debate: “O nosso objetivo é combater a fome. Quem tem fome tem pressa. Então, a gente dá comida e depois a gente combate também com a consciência. No período eleitoral, a gente faz roda de conversa e dialoga com as pessoas. A fome é política. Não adianta existir o nosso projeto e votar em quem produz a fome”, reforça o pároco da igreja São Marcos Evangelista.
Em 2024, com o Decreto nº 11.937, as cozinhas solidárias foram reconhecidas como uma tecnologia social e popular de combate à insegurança alimentar e institucionalizadas através do Programa Cozinha Solidária, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). No total, são mais de 2 mil em funcionamento no Brasil, que podem se cadastrar no programa e receber recurso financeiro do MDS.
A pesquisadora Erica Ell enfatiza que as soluções no combate à proliferação de desertos e pântanos alimentares devem passar pelos próprios territórios: “temos que fortalecer os sistemas alimentares locais com políticas intersetoriais e através da articulação de diferentes entes federativos, municipais e estaduais, incentivando iniciativas populares e o desenvolvimento da agricultura de cadeia curta”.
Alimenta Cidades
Para garantir o acesso à alimentação de populações vulnerabilizadas nos centros urbanos, o Governo Federal decretou em dezembro de 2023 a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades – o Alimenta Cidades. A estratégia contempla 60 municípios prioritários, incluindo todas as capitais brasileiras, no planejamento da alimentação urbana e na implementação de ações de promoção da alimentação saudável. Mais de 64 milhões de brasileiros vivem nessas cidades.
O primeiro ano da estratégia foi focado em fazer um diagnóstico dos territórios para entender quais equipamentos públicos de segurança alimentar já existem – como restaurantes populares, escolas públicas e bancos de alimentos – e quais iniciativas populares atuam nos municípios, como as cozinhas solidárias e hortas comunitárias.
“A gente tem percebido no diagnóstico que muita coisa já vem sendo feita. Esse diálogo com a sociedade civil tem sido cada vez mais rico, a exemplo das cozinhas solidárias. É um fomento do governo, mas a gestão local é toda feita pelas organizações da sociedade civil. Essa aproximação e atuação em conjunto tem se mostrado muito inovadora e produtiva e vem fortalecendo a agenda da segurança alimentar e nutricional”, comenta Bruna Arguelhes, coordenadora de apoio da Coordenação Geral de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável do Ministério do Desenvolvimento Social, que coordena o programa em colaboração com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e o Ministério das Cidades (MCID), no âmbito da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan).
O foco das ações da estratégia está nas áreas periféricas. Parte do diagnóstico incluiu o mapeamento dos desertos e pântanos alimentares das cidades participantes, que resultou na Plataforma Alimenta Cidades, lançada em novembro deste ano. O mapeamento oferece dados da densidade e dos tipos de estabelecimento comerciais de alimentos presentes nos municípios, além de dados sobre renda e pobreza obtidos a partir do CadÚnico.
“A urbanização gera desafios sem precedentes para garantir que as pessoas que moram nas cidades tenham um acesso permanente e regular à alimentação segura, saudável, nutritiva e adequada. A população muitas vezes não tem acesso principalmente pela distância ou pela questão econômica. Então, essa é uma política pública bastante consistente no Brasil e que vai de encontro com a necessidade que nós temos atualmente, com 85% da população brasileira vivendo nos centros urbanos”, pontua Erica, do OBHA.
Edição: Nathallia Fonseca
Fonte: Brasil de Fato / Foto: Espaço que antes era um lixão vira horta comunitária no Morro dos Prazeres, no Rio de Janeiro – Carla Valente/Cortesi