Liberdade = protagonismo nas redes sociais?

cultura

Hoje, liberdade quer dizer ter espaço para ser protagonista, independentemente das redes de poder

Por Janice Theodoro da Silva – Domingo, 12 de setembro de 2021

Sempre gostei de andar no meio das manifestações para construir uma hipótese pessoal sobre o evento. A circunstância, a minha idade (avançada) e a pandemia não me permitiram realizar a pesquisa in loco sobre as manifestações de 7 de Setembro.

Tive sorte. Jonas Medeiros e Antonia M. Campos fizeram o trajeto com um olhar muito refinado, observando detalhes da cena, idade das pessoas envolvidas na manifestação, perfil socioeconômico, demandas explícitas em cartazes, palavras de ordem e conversas. Li com atenção cada um dos itens observados, como a pluralidade do perfil social, as organizações representadas no movimento e a comparação, feita pelos autores, com outros movimentos similares.

Os dados sugerem uma análise. Alguns surpreendem. Dentre tantos clamores do público bolsonarista, chama a atenção o fato de as pessoas pedirem, de forma incisiva, por liberdade. Para quem tinha 18 anos em 1968, hoje, apesar de todos os problemas enfrentados pelo governo de Bolsonaro, dispomos de liberdade de expressão, de reunião, votamos para escolher nossos representantes políticos de forma direta. A diferença com o ano de 1968 é grande.

A população presente na Avenida Paulista, em São Paulo, pedia intervenção militar, nova Constituição e mesmo o uso de armas para evitar a escravidão. Trata-se de demandas sobre as quais é possível encontrar a raiz no autoritarismo, no personalismo e no populismo voltado para o enfraquecimento das instituições políticas e das práticas democráticas.

A surpresa na manifestação é o pedir liberdade em meio a uma manifestação onde se exercita a própria liberdade. O fato não é apenas contraditório, mas extravagante e inusitado, sugerindo reflexão.

Onde está ancorado o sentimento de perda de liberdade? O que significa para esse grupo ser livre?

Fornece indício para reflexão a Medida Provisória (MP) assinada pelo presidente da República autorizando a ”combater a remoção arbitrária e imotivada de contas, perfis e conteúdos por provedores”, impedindo a “suspensão e exclusão de conteúdos” e assegurando ao internauta o “direito de restituição do conteúdo disponibilizado” na rede.

Hoje, a rede oferece ao usuário a possibilidade de se tornar protagonistainfluenciador, de se tornar uma pessoa capaz de interferir na política, na moda, no consumo, na forma de avaliar e de ditar comportamentos sociais e éticos.

Quais são os instrumentos favoráveis para o desenvolvimento do protagonismo na rede? O que permite se tornar um influenciador nas redes? O que garante o seu sucesso?

Não existe fórmula. Mas a maneira de falar, o visual, o financiamento (para impulsionar um site ou postagem) e, especialmente, a imprevisibilidade de um acontecimento, acompanhado de uma narrativa esdrúxula, podem auxiliar.

“As redes e as fake news se apresentam como espaço da liberdade e da visibilidade” – Foto : Memyselfaneye – Pixabay

É comum qualificar uma notícia de impacto da seguinte forma: se um cachorro morde um homem, o fato não é notícia, não chama a atenção. Mas, se um homem morde um cachorro, podemos ter uma boa matéria e muitos leitores. Esse é o mistério das fake news. Se a notícia ou a intervenção for extravagante, do tipo tomar vacina e virar jacaré, afirmar ser a Terra plana ou sustentar a existência de remédios miraculosos para curar o câncer, emagrecer ou não envelhecer, dependendo da narrativa, pode ter muito sucesso nas redes. Ao apresentar uma matéria, foto ou acontecimento absurdo, a tendência é chamar a atenção do público provocando nas redes um número grande de visualizações.

Em sentido inverso, noticiar e ser protagonista de uma descoberta científica, sem aplicação imediata, elaborar análises sobre um conjunto de dados com diversas variáveis (de idade, de comorbidades, de grupo sanguíneo, de sexo, entre outras) e apresentar uma matéria como hipótese a ser investigada, embora as conclusões parciais possam ser de grande valia para o leitor, a possibilidade de o artigo ter sucesso na rede é pequena. Um bom divulgador científico poderá simplificar e tornar retoricamente uma informação científica de interesse do público em geral, mas, se não for época de pandemia, é difícil estimular a leitura fora do campo acadêmico.

A novidade da internet não foi o uso da notícia extravagante, mas o fato de um internauta poder se tornar uma espécie de empreendedor compulsivo, integrado ao mercado, vendendo o absurdo. É possível empreender com apenas um celular nas mãos. Este é o capital necessário para o novo empreendedorismo. Os exemplos são muitos. É possível encontrar uma comunicadora de sucesso porque ela encontrou a fórmula certa para ensinar a fazer maquiagem, um especialista em cachorros que lambem a pata ou mesmo comunicadores com formação em filosofia, em história ou em medicina.

Antigamente, antes do uso intensivo das redes, o protagonismo dependia em grande medida de acesso a grupos que detinham o monopólio do conhecimento, o monopólio do poder político, o monopólio do poder econômico, os micropoderes nem sempre visíveis.

“A surpresa na manifestação é o pedir liberdade em meio a uma manifestação onde se exercita a própria liberdade. O fato não é apenas contraditório, mas extravagante e inusitado” – Foto: Clauber Cleber Caetano/PR – Fotos públicas

Grupos empoderados deixavam muita gente competente invisível, impossibilitada, de acordo com o lugar que ocupa na sociedade, de integrar as redes de poder (Bourdieu, P.). Essa extensa e rígida estratificação social fortaleceu as desigualdades, criou injustiças de todas as naturezas, sendo um elemento, entre tantos outros, de estratificação e fragilização da democracia. A democracia, apesar das suas inúmeras vantagens, foi responsável pela criação de uma invisibilidade social sem chance de superação, dependendo do grupo social de origem. Não se iludam com a meritocracia, ela também é marcada por imensos privilégios e exclusão.

As redes e as fake news permitiram a quebra desse monopólio e se apresentam como espaço da liberdade e da visibilidade. Não é mais necessário fazer parte de um partido político para fazer política, não é mais necessário ser contratado por uma rede de comunicação para ser jornalista, não é mais necessário ser escolhida por uma agência de modelos para ser modelo. O que é mais complicado: não é mais necessário dizer a verdade, e são frágeis os instrumentos de controle para ordenar as fantasias, os desejos e, especialmente, a ética no mundo virtual.

Apesar de existir um Marco Civil da Internet, os mecanismos de controle não impedem novos protagonismos.

Hoje, liberdade quer dizer ter espaço para ser protagonista, independentemente das redes de poder.

Esse é ao mesmo tempo o novo campo de exercício arbitrário da liberdade e do protagonismo, às vezes justo, às vezes injusto. O protagonismo (liberdade) é possível nas redes para qualquer um, “normal” ou maluco, racional ou irracional, rico ou pobre. O protagonismo (liberdade) atual permite a ruptura de estratégias de silenciamento montadas, desde o início da modernidade, por estruturas e monopólios de poder e riqueza. Hoje, qualquer pessoa com um celular na mão tem acesso a pessoas, países e instituições, impossível antes da comunicação em rede.

O resumo desta ópera é: o vínculo entre o sentimento de liberdade e o protagonismo é possível para qualquer um nas redes sociais. A sensação é: liberdade.

A história tem dois lados. Um lado onde podemos analisar, discutir e denunciar as redes sociais pela falta de ética por uma parte da sociedade (o que é verdade), e um outro lado, o lado da responsabilidade das elites ao ter favorecido durante séculos o silenciamento, o emburrecimento e a exclusão do consumo, do conhecimento e do prazer, de grande parte da sociedade.

Janice Theodoro da Silva é professora aposentada titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Fonte:Jornal USP

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