Conheça a trajetória da antropóloga, historiadora e professora da USP que foi eleita para a Academia Brasileira de Letras na véspera do Dia Internacional da Mulher
Texto: Julia Alencar* / Arte: Simone Gomes
“Independente do resultado, eu já me considerava uma vencedora por ter vivenciado esse processo que o Alberto me contava com tanta alegria e tanto orgulho”, conta Lilia Schwarcz após sua eleição como imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) na última quinta-feira, dia 7. A antropóloga e historiadora assume a cadeira número 9, anteriormente ocupada pelo diplomata e historiador especializado em cultura africana Alberto da Costa e Silva, com quem tinha laços profissionais e afetivos. “Para mim, só faria sentido entrar nessa cadeira”, diz, em entrevista ao Jornal da USP.
Na ABL, há uma tradição de preencher cadeiras vagas com acadêmicos cujo perfil se assemelhe ao de seus antecessores. Para Lilia Schwarcz, a candidatura à cadeira que pertenceu a Alberto da Costa e Silva significava mais do que apenas semelhanças entre suas áreas de estudo. “Nós convivemos muito, há mais de 30 anos, e escrevemos textos, livros e participamos de seminários juntos. Eu li todas as obras dele. Nós conversávamos toda semana, eu o visitava pelo menos uma vez por mês no Rio de Janeiro. Quando ele faleceu, eu tomei o processo de candidatura para a ABL como um projeto pessoal, uma forma de honrá-lo e também de fazer o meu luto”. Ambos eram estudiosos do movimento negro, da igualdade racial e da herança africana na cultura brasileira, o que os aproximou em sua vida pessoal também.
Costa e Silva morreu em novembro do ano passado, aos 92 anos, e Lilia deu início ao seu processo de candidatura e aos rituais necessários até o dia da eleição. “Como antropóloga, eu acho que rituais são importantes para compreendermos a nós mesmos. Entre novembro e janeiro, passei por um processo para me apresentar aos membros da Academia”.
O primeiro passo foi enviar uma mensagem à ABL dizendo que se candidatava para honrar a memória de Alberto Costa e Silva. Depois, os candidatos mandam seus livros para os membros. “Como eu tenho muitos livros publicados, eu mandei pensando em cada cadeira e seus interesses. Faz parte do ritual também convidar os membros para encontros, e só depois eu entendi o sentido de todas essas etapas. De certa forma, eu estava me candidatando para fazer parte de um grupo de amigos — ainda que fosse a casa de Machado — e precisava conhecer cada um deles e que eles me conhecessem também.” Ao fim dos encontros, Lilia enviou uma última carta, dizendo que se sentia grata por poder participar desse processo, independente do resultado. “Foi uma forma também de eu pensar no luto, pensar não na minha despedida — para mim não existem despedidas —, mas na falta que o Alberto da Costa Silva me faz”, conta.
O diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva – Foto: Wikipédia
Aos 66 anos de idade, Lilia Schwarcz é a 11ª mulher a integrar a Academia desde sua fundação, em 1897, escolhida por 24 dos 38 acadêmicos aptos a participar da votação. São 40 cadeiras no total, das quais quatro são ocupadas por mulheres atualmente, e a renovação de membros só acontece quando um dos acadêmicos morre. Com Rosiska Darcy de Oliveira, Ana Maria Machado, Fernanda Montenegro e Heloisa Teixeira, Lilia compõe a presença feminina na Academia, e afirma que pretende “lutar por uma Academia mais plural e diversa, tanto no âmbito feminino quanto interseccional, o que inclui, por exemplo, mulheres e pessoas indígenas e negras”. Quando foi fundada, 127 anos atrás, por Machado de Assis, estava previsto em suas diretrizes que apenas brasileiros – enfaticamente no masculino – poderiam se candidatar a integrar a ABL. Foi apenas em 1977, com a aceitação da escritora Rachel de Queiroz, que mulheres passaram a fazer parte da instituição. “Se pensarmos no âmbito geral, são só 11 mulheres em 127 anos de história, é uma porcentagem muito pequena. As mulheres correspondem a mais da metade da população brasileira, era de se esperar que a representação nas instituições fosse mais equânime”, reflete a antropóloga.
“Minha vida é cravada pela Universidade de São Paulo”
Durante sua graduação em História na Universidade de São Paulo, finalizada em 1980, Lilia começou a desenvolver um interesse mais profundo pelas questões raciais e pela herança africana na cultura brasileira, e teve a oportunidade de fazer uma iniciação científica sobre a escravidão em Ilhabela, antiga Vila Bela, focada em estudar se o modelo de plantations — sistema agrícola baseado em uma monocultura de exportação em latifúndios com mão de obra escravizada — poderia ser aplicado em propriedades menores. “Foi uma pesquisa muito importante e que trouxe para mim essa preocupação com o tema, tanto que eu fiz o meu mestrado, chamado Retrato em Branco e Negro, focado em como os escravizados e a população negra de forma geral apareciam nos jornais do período de desmontagem da escravidão até o início da República”, relembra Lilia, referindo-se a seu mestrado em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), finalizado em 1986.
Em 1987, ela retorna à USP para cursar seu doutorado, também em Antropologia Social, que teve como produto final o livro Espetáculo das Raças, publicado em 1993 pela editora Companhia das Letras, da qual é co-fundadora. “O Espetáculo das Raças é uma pesquisa sobre como a representação negra aparecia em instituições brasileiras. Para isso, eu estudei os museus, as faculdades de direito, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e as faculdades de medicina. Na época em que foi publicado, o livro foi, e ainda é, muito referenciado, e causou um escândalo porque eu dizia lá que, com a divulgação da ideia de democracia racial nos anos 1930, estávamos a um passo do apartheid social”, conta a pesquisadora.
Em 1988, em paralelo com seu doutorado, Lilia Schwarcz passou a lecionar no Departamento de Antropologia da USP, onde segue atuando como professora sênior. “Lecionar me deu uma experiência tremenda com a diversidade brasileira, com a diversidade interna na Universidade e com o próprio sentido de uma universidade pública, que para mim é algo muito importante. Eu acredito que a única forma de termos um País menos desigual é com educação pública de qualidade em todos os níveis”.
“Como uma pessoa que veio de uma escola pública e se graduou pela USP, eu não poderia gostar mais da Universidade. Além do ensino de qualidade, foi lá que me formei, que defendi todas as etapas da minha carreira, que fiz tantos amigos, que conheci alunos incríveis. A minha vida é cravada pela Universidade de São Paulo, e eu sempre digo isso com muito orgulho”, afirma a professora.
Mais de 30 livros escritos
Além de antropóloga, historiadora e professora, Lilia Schwarcz escreveu mais de 30 livros em sua carreira. Dentre eles destacam-se alguns dos mais premiados, como O Sol do Brasil, biografia do pintor francês Nicolas-Antoine Taunay que venceu o Prêmio Jabuti na categoria Biografia em 2009, e Batalha do Avaí, vencedor do Prêmio ABL de História e Ciências Sociais em 2014. Uma de suas obras mais conhecidas é As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um Monarca nos Trópicos (1998), ganhador do Prêmio Jabuti Livro do Ano em 1999 na categoria de Melhor Ensaio e Biografia.
Em As Barbas do Imperador, Lilia se propôs a recuperar a iconografia de D. Pedro II e criar uma biografia de forma não tradicional, analisando a forma como o governo imperial construiu a figura de monarca cidadão e filósofo, paradoxal quando se considera que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, em 1888. “Não era costumeiro trabalhar com imagens em primeiro plano, elas sempre apareciam como ilustração ou apêndice. Eu acabei até tirando um capítulo mais teórico do livro e posteriormente publicando-o em uma revista acadêmica, porque queria que o público lesse essa figura de outra forma. Era outra maneira de problematizar a questão da escravidão, mas a partir dessa figura central que era o monarca”, explica a autora.
Lilia ainda afirma que um dos livros que mais a marcou foi Lima Barreto – Triste Visionário (2017), uma biografia do escritor e jornalista de mesmo nome. “Desde que me conheço por gente eu leio Lima Barreto, e penso muito no silenciamento sofrido por ele e por outros. A biografia dele foi também de vida, um olhar para o outro lado: se D. Pedro II é visto como uma figura incontornável, Lima foi, durante muito tempo, contornado. Ao contrário de outros biógrafos do escritor, eu desenvolvi a biografia a partir da intersecção da questão racial com as questões de gênero, regionalidade — uma vez que era um escritor dos subúrbios — e geração. Esse é o livro mais triste que já escrevi, de sua vida e do momento de sua morte.”
A antropóloga se associou a diversos pesquisadores ao longo de sua carreira, como a também professora da USP Maria Helena Machado, Flávio Gomes dos Santos e Jaime Lauriano, ao lado dos quais publicou recentemente a Enciclopédia Negra (2021). Atualmente, além de lecionar como visiting professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, ser membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, do Iphan, e do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da República, Lilia Schwarcz está produzindo o livro Imagens da Branquitude: Presença da Ausência. Nele, procura mostrar a questão racial a partir de seu lugar de fala, como uma mulher branca, de forma a explicitar como a branquitude constrói uma presença ausente nas estruturas sociais e assim naturaliza seu espaço e seu privilégio.
Direitos civis hoje
Para a antropóloga, o cenário racial brasileiro, assim como as questões de gênero e sexualidade, por exemplo, está fortemente conectado à ascensão de posicionamentos de extrema-direita e de governos autoritários. “Nós vivemos quatro anos de grande queda nos nossos valores e nas nossas instituições democráticas. Foram quatro anos de negacionismo e de um governo muito autoritário. Nessa época, eu escrevi um livro chamado Sobre o Autoritarismo Brasileiro (2019), em que falei sobre como o governo vigente evidentemente alegava falar em nome do povo, mas nunca se preocupou realmente com o povo.”
A professora explica que, entre a instauração da Constituição Cidadã de 1988 e as eleições de 2018, houve um crescimento visível nos diálogos de direitos civis, ou seja, das questões raciais, de gênero, dos indígenas e da ecologia — todas elas muito bombardeadas pelo governo passado. Mesmo com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, que volta a dar passos em direção ao diálogo mais aberto e diverso com o povo, por meio, por exemplo, da recriação do Ministério da Igualdade Racial e da criação do Ministério dos Povos Indígenas, para Lilia, ainda vivemos um contexto em que a direita ganha força não só no Brasil como no mundo todo.
“Vivemos há pouco tempo uma manifestação na Avenida Paulista que não acreditávamos que poderia ser tão grande, com uma pauta exclusivista e odiosa de defesa de um Estado religioso. No último Congresso, tinham uma pauta clara a favor dos valores familiares, ou seja, contra toda a questão LGBTQIAP+.”
Apesar da recriação do Ministério da Igualdade Racial pelo atual presidente, essa igualdade está longe de ser alcançada. A antropóloga explica que o racismo no Brasil é estrutural e institucional, por estruturar não só os pensamentos da sociedade, mas as bases em que foi construída. “A questão racial tem voltado com força, mas agora pelo outro lado: brancos afirmando sofrerem ‘racismo às avessas’. Isso não existe, nós brancos não somos parados pela polícia nos aeroportos, na frente de um prédio, no supermercado. Ninguém perde oportunidades por ser branco. Não nego que existam brancos sofrendo, mas não por racismo, porque racismo é um sistema”, diz Lilia Schwarcz, alertando para as tentativas de retrocesso nos direitos civis.
*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro
Fonte: Jornal da USP / Lilia Schwarcz – Foto: Reprodução / Facebook