Cantora e compositora protagoniza o seriado que será lançado em 25 de junho na Amazon Prime, em 140 países. “As possibilidades plurais de famílias são um dos pilares da série”, diz a artista
JOANA OLIVEIRA São Paulo – 23 JUN 2021 – 09:10 EDT
“Você é muito bonita, pai.” É assim que Gersinho (vivido pelo ator Gustavo Coelho, de 10 anos) reage ao olhar duro e distante da mulher que o encara, a princípio, sem afeto. Cassandra é uma mulher trans negra, entregadora por aplicativos e aspirante a cantora em São Paulo, onde sonha e constrói sua independência, a começar por um teto todo seu —uma quitinete em um prédio simples no centro da capital paulista. Cassandra também é a primeira protagonista na carreira da cantora e compositora Liniker, que estrela a série Manhãs de setembro, da Amazon Prime Video, que estreará em 140 países no dia 25 de junho. Assim como a personagem, Liniker também saiu do interior para perseguir o desejo de ser artista. “Eu saí de Araraquara [interior de São Paulo] para poder estudar e ser atriz. Fiquei super feliz só em receber o convite para fazer um teste para a série”, conta em uma entrevista em vídeo ao EL PAÍS.
O convite surgiu em 2019, quando ela e o coletivo Liniker & Os Caramelows —do qual se desligou para seguir carreira solo— estavam no meio de uma turnê internacional. “Eu estava em um momento de buscar novos caminhos, então aceitei”, conta. Construída em cinco episódios de aproximadamente meia hora, Manhãs de setembro acompanha a rotina de Cassandra, que, aos 30 anos, vive o amor com Ivaldo (Thomas Aquino), acaba de conquistar um lugar para viver sozinha (finalmente poder largar o sofá da amiga) e reveza as entregas como motogirl com os ensaios musicais no bar onde se apresenta às noites. No seu repertório, Vanusa, uma mulher que ousou compor e cantar as próprias músicas no Brasil dos anos sessenta e setenta e que Cassandra tem como ídolo, ganha destaque. Não à toa, um de seus maiores sucessos dá nome à série. “Tive um trabalho de meses com a produção musical da série. A obra da Vanusa é muito gigantesca, ela era uma artista muito à frente do do seu tempo e foi lindo me conectar com suas canções que, confesso, não me eram de todo familiares”, conta Liniker, que se preocupou em aprender um novo jeito de cantar para que Cassandra tivesse a própria voz sobre o palco.
Mulher forte e determinada, a personagem não perde o foco da carreira musical nem quando Leide (vivida por Karine Teles), uma amiga com quem Cassandra teve um envolvimento casual uma década atrás, reaparece em sua vida com o filho de ambas. A protagonista não hesita em “despachar o pacote”, como se refere à criança, que vê como um empecilho em seu caminho —pouco a pouco, se descobre que Cassandra também foi abandonada pela mãe, que, intui-se, deixou-a para seguir os próprios sonhos.
A maternidade, em suas múltiplas formas e desafios, é o fio condutor da obra dirigida por Luis Pinheiro e Dainara Toffoli: ali está a mãe solo que se prostitui para sustentar a filha, a que vende salgadinhos e doces (e, às vezes, roupas roubadas) na rua para manter o filho e a que, como Cassandra, vai aprendendo aos poucos o compromisso e o amor envolvidos na arte e tarefa de educar um ser humano. “Leide traz um passado que, na verdade, não pertence a Cassandra, enquanto Gersinho representa um futuro para o qual ela não estava preparada”, explica Liniker. Para piorar a situação, Leide invade sua vida com violências transfóbicas, ao insistir, por exemplo, em usar o nome de batismo de Cassandra ou acusá-la de ser uma má influência quando o menino aparece usando um vestido.
As agressões simbólicas também acontecem na rua, quando Cassandra recebe olhares desrespeitosos ou ouve que “até parece uma mulher de verdade”. Mas um dos grandes trunfos da série é que ela não está focada na dor, apesar de muitas dores sociais estarem ali representadas, não necessariamente na protagonista, como a pobreza e a falta de moradia. Cassandra é uma mulher que trabalha, que ri, chora, ama, goza, canta, grita, dança com os seus. No país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo, ela vive cercada de afeto. Seus amigos, entre os quais estão o casal Décio (Paulo Miklos) e Aristides (Gero Camilo), são sua fonte de carinho e acolhimento.
“As possibilidades plurais de famílias são um dos pilares da série, que legitima o lugar das famílias LGBTQIA+ e pessoas pretes, que, muitas vezes, principalmente no Brasil, são excluídas desses núcleos. Muitas famílias escolhem apartar essas pessoas de casa do que conviver com elas. O fato de Cassandra estar sozinha em São Paulo, mas, ao mesmo tempo, ter construído uma rede afetiva é o que segura ela em meio à dureza da vida”, comenta Liniker.
O elenco fez leituras de roteiro, ensaios e atividades de preparação virtualmente, por quase um ano, durante a pandemia de covid-19. Liniker conta que, depois de tanto contato virtual, o primeiro encontro pessoalmente aconteceu de forma “muito natural”, com um entrosamento que se reflete em cada cena. Para ela, o “maior presente” foi o pequeno Gustavo Coelho, que interpreta seu filho Gersinho na trama. “De repente, me via brincando com ele no balanço, ou brincando de fazer música e logo depois entravámos em cena e adotávamos aquela estranheza que marca a relação entre Cassandra e o filho”, lembra ela.
Liniker conta que o desejo de ter um filho já existia, mas foi aguçado pela série. “Não romantizo a maternidade, mas tenho muita vontade de criar, de poder ser mãe num contexto onde minha criança seja amparada com amor, afeto e respeito. Vamos ver, quem sabe um dia…” Diferente de Cassandra, ela consegue se imaginar conciliando essa vontade com suas metas profissionais. “Desejo fazer muitas coisas no audiovisual, inclusive dirigir, e trabalhar em sets plurais, onde pessoas pretas e LGBTQIA+ não estejam apenas em frente às câmeras, mas roteirizando, produzindo, criando.” A artista pretende escancarar cada vez mais portas, mas não quer fazer isso sozinha. Informações do site El País.