Livro examina a trajetória do primeiro embaixador negro brasileiro

cultura

por Thaís Pio Marques – Quinta, 6 de maio de 2021

caba de ser lançado pela Sagga Editora a biografia “Raymundo Souza Dantas: o primeiro embaixador brasileiro negro”, escrita pelo historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Fábio Koifman. O lançamento ocorreu no dia 14 de abril, data que marca os 60 anos da nomeação de Souza Dantas para o cargo de embaixador. O evento foi transmitido online e contou com a organização do instituto Diplomacia para a Democracia e da livraria Tapera Taperá. O evento foi apresentado por Antonio Freitas, que recebeu o autor e os convidados Irirs de Faria e Roberto Dantas, neta e filho do embaixador Raymundo Souza Dantas (1923-2002), respectivamente.

Um dos objetivos do evento, além de marcar o lançamento do livro, era realizar uma homenagem a Souza Dantas. O embaixador foi apresentado de duas formas: pelo olhar de seu biógrafo Fábio Koifman e pelo olhar das memórias afetivas de seus familiares. Esse conjunto resultou na evocação dos diversos papéis por ele desempenhados a longo de sua vida.

No livro, Koifman escolhe por abordar três fases da vida de Souza Dantas, divididas cronologicamente apenas a fim de organização do texto. A primeira delas é marcada por sua vinda, com poucos recursos financeiros, do interior de Sergipe, da cidade de Estância, ao Rio de Janeiro, onde completou seu processo de alfabetização aos 18 anos. Na segunda fase, Souza Dantas torna-se escritor e jornalista lido amplamente no país. Já na terceira delas, ele é nomeado o primeiro embaixador negro brasileiro, em abril de 1961. Souza Dantas foi nomeado para ocupar o posto de Acra, capital de Gana.

“O texto possui como fio condutor a produção intelectual e a trajetória profissional de Raymundo Souza Dantas, mais centralizada no período 1945-1961, alternando essas informações com um esforço em retratar o período no qual ativistas do movimento negro sistematicamente cobraram da anunciada e pretensa “democracia racial brasileira” igualdade de direitos e oportunidades. Tentei trazer para os leitores um pouco do que o público que acompanhava a imprensa sabia a respeito de Souza Dantas, o contexto relacionado ao momento em que o primeiro brasileiro negro foi nomeado embaixador e as estratégias daqueles que se opuseram à nomeação se utilizaram para desmerecê-la e atacá-la.”, disse Fábio Koifman, o autor da biografia, ao Café História.

Itamaraty: um breve histórico das relações étnico-raciais            

O Ministério das Relações Exteriores no Brasil, Itamaraty, foi fundado em 1821. No entanto, as nomeações de representantes brasileiros para tratar de assuntos internacionais data de novembro de 1799, segundo dados da FUNAG, fundação responsável pela base de dados com registro dos diplomatas brasileiros. Esses funcionários, de acordo com Koifman, atendiam, principalmente até a primeira metade do século XX, ao seguinte padrão: homem branco de origem europeia. Afinal, essa seria a imagem do Brasil que deveria ser apresentada ao exterior.

Os cargos do Itamaraty eram ocupados exclusivamente por nomeação até 1934, quando passou a ocorrer a publicação de editais e a realização de provas escritas não identificadas, de acordo com a socióloga Karla Gobo. No entanto, a estudiosa aponta que as medidas não favoreceram grupos sociais minorizados. Em 1945, é criado o Instituto Rio Branco, que segundo a pesquisadora possui diversas funções, dentre elas: formar e especializar membros do Ministério das Relações Exteriores, bem como preparar candidatos para a carreira de diplomatas.

Ainda assim, como aponta Karla Gobo, o Itamaraty permaneceu majoritariamente ocupado por homens brancos. As exigências para a admissão continuaram desfavorecendo àqueles que não poderiam se dedicar integralmente aos estudos. Além disso, muitos candidatos eram desclassificados no momento das entrevistas por motivos pouco convincentes ou plausíveis.     

Apesar das constantes manifestações públicas de representantes do Movimento Negro sobre as reverberações do racismo na composição do corpo de diplomatas do Itamaraty, foi apenas em 2002 que ocorreu o desenvolvimento da “Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia”. Segundo a socióloga, o programa consiste na distribuição de bolsas a pessoas negras interessadas em se preparar para o concurso do Instituto Rio Branco. O valor da bolsa é de R$ 25.000,00, dividido em parcelas mensais ao longo de um ano.

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Capa da biografia lançada pela Sagga Editora.

As bolsas prêmio, contudo, ainda não produziram grandes mudanças na aprovação de candidatos negros ao Itamaraty. Dessa forma, ainda de acordo com Gobo, o Instituto Rio Branco adotou em 2011 a política de cotas na primeira fase do concurso. Essa ação foi alterada pela lei federal nº. 12.990/2014, que garante a reserva de 20% das vagas ofertadas em concursos públicos a pessoas negras.

Ainda hoje, a quantidade de homens e mulheres negros que acessam cargos diplomáticos no Itamaraty reflete desigualdades sociais que assolam o país de uma forma geral. No que diz respeito ao cargo mais elevado, o de embaixador, os números são ainda menores. A ausência de dados sobre a declaração étnico-racial dos funcionários é mais um elemento que dificulta os estudos sobre a questão.

Mulheres negras na diplomacia brasileira

A carreira diplomática não tem sido amplamente ocupada por mulheres desde a fundação do Itamaraty, em 1821. A primeira mulher aprovada em concurso foi Maria José de Castro Rebello, apenas em 1918, quase um século depois. E quando se trata da intersecção das questões de gênero e raça? Ser mulher negra em espaços majoritariamente ocupados por grupos privilegiados acompanha muitos desafios.

O Café História conversou com a diplomata Marise Ribeiro Nogueira, que ocupa o cargo de conselheira no Setor Político de Direitos Humanos e Cidadania, na embaixada do Brasil em Washington. Ela falou sobre a experiência de ser mulher negra no Itamaraty:

“Eu diria que a experiência é de ser sempre minoria. E, nesse caso, ser minoria tanto em termos de raça quanto de gênero. Essa questão da dupla discriminação é conhecida e é uma realidade para toda mulher negra diplomata. Por outro lado, é bom poder dizer que hoje nós já somos mais numerosas no Itamaraty. Eu tive a oportunidade durante a minha carreira de trabalhar com temas de gênero, mas também de raça, porque estão na agenda de Direitos Humanos. É muito importante, enquanto diplomata, conhecer os documentos sobre esses assuntos e muito importante, não só como diplomata, mas como cidadã, manter uma preparação para criar, ou pelo menos aproveitar, oportunidades de avanço na conquista de direitos. Um dos aprendizados mais importantes que eu teria a compartilhar é a importância de fazer parte de redes. De redes de pessoas como nós, nesse caso redes de mulheres, redes de diplomatas negros, e principalmente redes de pessoas comprometidas com a defesa de Direitos Humanos.”

Quando perguntada ao que diria ao primeiro embaixador brasileiro negro, caso tivesse a oportunidade, a diplomata respondeu:

“Acho que primeiro faria um agradecimento, um reconhecimento desse lugar que ele ocupou, porque todo pioneirismo é importante. E porque a visibilidade é importante. Acho que quando Jânio Quadros decidiu mandá-lo para Gana, ele tinha isso em mente. Por outro lado, acho que eu perguntaria quais foram os maiores desafios que ele enfrentou e quais foram as estratégias que deram certo e que poderiam ajudar tanto o Brasil, quanto especificamente a população negra brasileira. Também perguntaria sobre os pontos onde ele acha que poderia ter feito mais, que talvez seja a partir de onde nós podemos seguir em diante.”

“Me chama de Velho Ray”

Para escrever a biografia de Raymundo Souza Dantas, Fábio Koifman analisou diversas fontes primárias, dentre elas o diário escrito pelo embaixador durante sua morada em Gana e notícias publicadas em jornais da época. O foco da pesquisa é na imagem pública de Souza Dantas, que enfrentou desafios no exercício da profissão de embaixador, ao passo em que se dedicou para exercê-la com zelo e comprometimento.

Por outro lado, o evento de lançamento do livro, que contou com a presença de seu filho, Roberto Dantas, e de sua neta, Iris de Faria, trouxe novos olhares. Suas narrativas abordaram a memória não apenas do Souza Dantas diplomata, mas também do flamenguista apaixonado e do avô que preferia ser chamado de Velho Ray. Bastante emocionado, Roberto relembrou o período da infância em que Souza Dantas apenas o via na hora de dormir. Mas ressaltou que sempre que possível havia programas para reunir a família.

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Raymundo Souza Dantas e Jânio Quadros, circa 1960. Foto: Acervo Familiar.

Já Iris rememorou o avô que precisava manter uma imagem pública mais rígida por conta do racismo, mas que no cotidiano familiar compartilhava sua espontaneidade. Segundo ela, “não dava para ser um espírito meigo frente a tudo que tinha que enfrentar”. Certamente, o avô adoçava sua infância: “Nada era pouquinho na vida do meu avô. Desde pequena, adorava ver aquele vulcão que ele era!”, relembrou durante o evento. A primeira embaixatriz negra e esposa de Souza Dantas, Ideline Botelho Souza Dantas, também foi relembrada com afeto por Iris e Roberto.

O lançamento da biografia sobre o primeiro embaixador negro promoveu o encontro entre seu pesquisador e seus familiares, bem como entre as memórias sobre o diplomata Souza Dantas e o Velho Ray, em diversas facetas. A live de lançamento do livro está disponível no YouTube. É possível assisti-la clicando aqui. Se quiser se aprofundar na trajetória pública de Raymundo Souza Dantas, o livro de Fábio Koifman está disponível para vendas na Amazon. Informações do site Café história.

Notas

A opinião de Marise R N não representa a opinião do MRE. É uma recomendação baseada na Lei 11.440/06

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