Publicação voltada para o entretenimento teve forte influência nas campanhas eleitorais da época, diz pesquisador
A era de ouro do rádio brasileiro atingiu o auge na década de 1950. Os ouvintes sintonizavam em programas musicais, noticiários e radionovelas, acompanhando estrelas como Carmen Miranda e Orlando Silva. A vida desses ídolos por trás da programação era tema da Revista do Rádio, veículo de entretenimento que circulou no Rio de Janeiro até 1970, ficando entre as publicações mais lidas do País. O alcance da revista ajudou a moldar a opinião pública quando o Brasil saía da ditadura do Estado Novo e voltava às urnas.
É o que mostra o e-book Para Além das Amenidades: Os Debates Políticos da Revista do Rádio (1948-1954), do pesquisador Maycon Dougllas. O livro é resultado da dissertação de mestrado de Dougllas, apresentada em 2023 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação do professor Marcos Napolitano. Ele está disponível gratuitamente no site da Editora Pedro & João.

Criada em 1948, a Revista do Rádio começou como uma publicação mensal e logo se tornou semanal, conquistando cada vez mais leitores. Sua tiragem chegou a 50 mil exemplares por mês, atrás apenas do público leitor da revista O Cruzeiro, com cerca de 300 mil exemplares mensais. “Era o principal porta-voz do meio radiofônico, o rádio por escrito”, define Maycon Dougllas.
Com linguagem leve e acessível, a revista inseria seu viés político no meio das pautas amenas, destaca o pesquisador. “O entretenimento, a fofoca, as amenidades eram o tom principal da revista, mas até mesmo nessas futilidades dava para perceber o universo cultural e político não só da publicação, mas também da própria época, os anos 1950.”
Leitor e eleitor
Não é coincidência que a Revista do Rádio tenha surgido em um momento tão crucial da política brasileira. Durante a era Vargas, o rádio se consolidou como principal meio de propaganda governamental, especialmente com o programa obrigatório Hora do Brasil, criado em 1934. Por meio desse condutor ideológico, diz Dougllas, o presidente Getúlio Vargas estabelecia um canal direto de comunicação com os trabalhadores, divulgando as ações do governo e moldando a opinião pública.

Naquele período da era Vargas, a maioria da imprensa já falava de Vargas como demagogo e ditador, mas, devido à proximidade dele com o rádio, a imprensa ia no caminho contrário. “Os radialistas tinham um apreço muito profundo por essa figura, porque foi o próprio Getúlio Vargas que, nos anos 1930, possibilitou, por exemplo, a entrada da propaganda publicitária no rádio, fazendo com que o meio se expandisse”, explica Dougllas. “Ainda que a revista se colocasse como isenta e imparcial, ela publicava textos de maneira significativamente positiva sobre ele.” Em 1949 – quatro anos após o fim do Estado Novo getulista -, por exemplo, a Revista do Rádio publicou uma entrevista com a dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho, dizendo, no título da entrevista, que a dupla tinha “saudades de Getúlio”.
“Até 1945, o voto no Brasil tinha pouco valor, seja pela corrupção da Primeira República, seja pela ditadura varguista dos anos 1930”, continua o pesquisador. A abertura democrática, com o fim da ditadura do Estado Novo, deu oportunidade para a ascensão de novos personagens políticos: radialistas, populares e queridos pelos ouvintes, se lançaram como candidatos. Valorizados pela revista, esses locutores passaram a ocupar as páginas como uma espécie de campanha sutil, impulsionando suas trajetórias políticas.
Uma das estratégias usadas pela Revista do Rádio para reforçar o apoio aos radialistas na política era a seção Carta dos Fãs. A revista mediava a comunicação entre ouvintes e artistas, publicando tanto as cartas enviadas pelos fãs quanto as respostas dos ídolos. “Chamava muito a atenção que, principalmente em época de eleição, muitas dessas cartas falavam do apoio a Getúlio Vargas e dos artistas de rádio que se candidatavam a cargos políticos”, conta Maycon Dougllas.
Dois exemplos citados por ele são os radialistas Silvino Neto e Scuvero Martins, que recebiam manifestações explícitas de apoio dos leitores. Segundo o pesquisador, ao dar espaço a essas cartas, a revista captava a resposta de um público que era, ao mesmo tempo, ouvinte, leitor e eleitor, votando pela primeira vez em eleições plenamente democráticas.
Ilustrações e charges

Como outras revistas brasileiras da época, a Revista do Rádio não tinha um público muito cativo, mas, mesmo assim, conseguiu exercer grande influência, acrescenta Dougllas. Desde quando as revistas começaram a circular, no fim do século 19, a maioria da população era analfabeta, o que limitava o número de leitores. Para contornar essa limitação, os editores da Revista do Rádio investiram no uso de fotografias e ilustrações, incluindo charges elogiosas de Getúlio Vargas.
Todos os números da Revista do Rádio traziam na capa a fotografia de um artista, especialmente mulheres, o que ajudava a captar a atenção do público. “As imagens eram um recurso fundamental para garantir que a mensagem chegasse a todos”, esclarece Dougllas. Além disso, o modo de leitura também favorecia a difusão das revistas: elas eram consumidas de maneira coletiva, em ambientes familiares, em espaços empresariais ou em encontros sociais, o que ampliava o alcance da publicação. A combinação entre imagens chamativas, leitura coletiva e conteúdos sobre o universo das celebridades do rádio garantiu o sucesso da revista em disseminar seus posicionamentos.
“As redes sociais para nós, hoje, são equivalentes ao que o rádio era naquela época”, compara Maycon Dougllas. Segundo ele, a diferença está nos objetivos. “Os boatos que a revista publicava tinham como principal objetivo fazer com que ela fosse vendida.” Embora a desinformação existisse, não havia um projeto político articulado, como acontece hoje. “Isso não significa que os políticos, principalmente Getúlio Vargas, não surfaram nessa onda e não conseguiram ser favorecidos pelo apoio da revista”, ressalta o pesquisador. Para ele, se na época a fofoca — entendida como uma “verdade fabricada” — visava impulsionar as vendas, atualmente a desinformação e as fake news são produzidas de forma intencional, com fins políticos e econômicos. “Hoje há um projeto de poder, um projeto reacionário, a partir da fabricação dessas informações.”

Política e mídia
Hoje estudante de doutorado na FFLCH, Maycon Dougllas se formou em História pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), onde, ainda na graduação, fez pesquisas sobre a relação entre o rádio e a política regional. “O rádio fez parte da história da população do Tocantins e, portanto, também conta a própria história da região”, justifica Dougllas. Depois, no mestrado na FFLCH, ele usou essa experiência para ampliar a pesquisa e investigar as relações entre política e mídia em âmbito nacional, o que resultou na dissertação agora lançada na forma de e-book – depois de a edição impressa ter sido publicada no ano passado. “Eu quis pensar justamente como o campo da política interfere na mídia e vice-versa, utilizando a Revista do Rádio como um fio condutor da história.”
Quase mil edições da Revista do Rádio estão preservadas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Dougllas tinha a ideia de consultar todas essas edições, mas a pandemia de covid-19 forçou a mudança de planos. A pesquisa foi feita, então, com base nas edições da revista disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, mantida pela Biblioteca Nacional. Essa mudança contribuiu para uma pesquisa mais ampla, pois a Hemeroteca Digital Brasileira permite com facilidade a busca por palavras-chave em todas as edições da revista disponíveis. “Se eu tivesse utilizado o acervo físico, muito provavelmente a minha pesquisa seria só sobre Getúlio Vargas, e não sobre toda uma época.”
Para Além das Amenidades: Os Debates Políticos da Revista do Rádio (1948-1954), de Maycon Dougllas, Editora Pedro & João, 168 páginas.
O livro está disponível gratuitamente no site da Editora Pedro & João.
* Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro
Fonte: Jornal da USP / Capa do livro sobre a Revista do Rádio: obra é resultado de dissertação de mestrado apresentada na USP – Foto: Montagem Jornal da USP/Reprodução/Editora Pedro & João
