Texto: Antonio Carlos Quinto
Arte: Carolina Borin (estagiária)*
Obra traz a visão de pensadores sociais, inclusive da USP, sobre os diversos aspectos da obra dos músicos paulistanos que compõem o grupo de rap
O livro Racionais MC’s – entre o gatilho e a tempestade, lançado recentemente pela Editora Perspectiva, é resultado do trabalho de duas cientistas sociais que resolveram organizar uma obra capaz de retratar a importância e a relevância do grupo de rap Racionais MC’s para a cultura brasileira.
A obra traduz o olhar de pensadores e estudiosos de várias universidades, e também da USP, sobre diversos aspectos da produção musical dos quatro “doutores” do rap! [veja box] “Eles estão e sempre estarão à frente de seu tempo”, afirma a antropóloga Jaqueline Lima Santos, que atualmente integra o programa de pós-doutorado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela e a socióloga Daniela Vieira dos Santos, atualmente professora na Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná, organizaram e ministraram, em 2020, o curso on-line A obra dos Racionais MC’s em 3 décadas, no Sesc de São Paulo.
E foi a partir dessa iniciativa que surgiu a ideia de conceber o livro. “Eu me lembro que as inscrições para o curso, que durou 12 dias, se esgotaram em cerca de três minutos”, conta Daniela. O programa também contou com a participação de pensadores sociais, docentes, mestres e doutores de áreas como sociologia, antropologia, história e economia.
Daniela Vieira dos Santos – Foto: Arquivo Pessoal
“Nem todas as pessoas que participaram do curso são autores no livro”, conta a socióloga ao Jornal da USP. Racionais MC’s – entre o gatilho e a tempestade traz textos produzidos por 11 dos 15 estudiosos que participaram do curso em 2020 [veja a lista]. “Apesar de a obra e o grupo já serem temas de estudos acadêmicos, acredito que ainda não havia uma compilação que refletisse os diversos aspectos da trajetória dos Racionais”, avalia a socióloga. Dentre os participantes da obra, Daniela destaca a contribuição do professor Walter Garcia Silveira Júnior, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Segundo ela, o docente foi pioneiro nas pesquisas sobre o grupo na Universidade.
Desde a graduação
A antropóloga Jaqueline Lima Santos conta que logo ao entrar no seu curso de graduação, na Unicamp, decidiu fazer sua iniciação científica sobre os Racionais e suas obras. Ela lembra que o livro recém-lançado integra a coleção “Hip-Hop em Perspectiva” da editora. “Lógico que não tem como falar de hip-hop sem passar pelos Racionais”, justifica Jaqueline.
Para a antropóloga, os Racionais têm uma grande contribuição para o pensamento social brasileiro. “Eles conseguiram sistematizar uma leitura, do ponto de vista periférico, sobre o que acontecia no Brasil nos anos 1990. Não há como ler a década de 1990 sem passar pelo preciosismo dos Racionais que, como narradores do cotidiano, conseguiram colocar em evidência os diferentes conflitos”, destaca, ressaltando que eles abordaram temas como acesso aos direitos fundamentais, violência, encarceramento, trabalho, educação e desigualdades.
Jaqueline Lima Santos – Foto: Arquivo Pessoal
Os “Doutores Honoris Causa”
Na entrevista concedida ao Jornal da USP, Jaqueline antecipou que, ainda este ano, os quatro componentes do grupo, Mano Brown, Kl Jay, Ice Blue e Edie Rock, serão agraciados com o título de “Doutor Honoris Causa”, que será concedido pela Unicamp.
Aliás, Jaqueline foi professora da disciplina Tópicos Especiais em Antropologia IV: Racionais MC’s no Pensamento Social Brasileiro, implantada no segundo período letivo de 2022, na Unicamp. “A aula aberta em que três integrantes do grupo [Mano Brown, Kl Jay e Ice Blue] participaram fez parte do programa. Depois da aula, por iniciativa dos alunos, foi feita então a solicitação para que os quatro integrantes dos Racionais MC’s sejam agraciados com os títulos na Unicamp, o que deverá acontecer até o final deste 2023”, antecipa a antropóloga.
Mil chances de morrer
No capítulo “O Preto Vê Mil Chances de Morrer, Morô?” o ponto de vista de um sobrevivente em um rap de Mano Brown, o professor Walter Garcia Silveira Júnior, docente do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, descreve que “os quatro pretos mais perigosos do Brasil combatem no plano da arte. E sua arte é perigosa porque sensibiliza, informa, promove o autoconhecimento, denuncia e diverte, sintetizando e potencializando experiências determinantes da vida brasileira que incluem e ultrapassam os próprios músicos.”
Garcia lembra que a obra do Racionais MC’s começou a ser estudada pela academia nos anos 1990, sobretudo na segunda metade daquela década. “Não só na USP como, para citar apenas algumas instituições, na Unicamp, na PUC-SP, na Faculdade Cásper Líbero, na UFRJ”, lembra o docente.
Apresentação dos Racionais MC’s na Virada Cultural em 2016 na cidade de São Paulo – Foto: Will Mumu Silva/Wikimedia Commons
“Ocorre que as pesquisas pouco dialogavam entre si”, argumenta. A exceção, segundo ele, foi o livro Rap e educação, rap é educação, organizado por Elaine Nunes de Andrade e lançado pelo Selo Negro, da editora Summus, em 1999. Segundo o professor, uma obra notável pela qualidade dos seus textos e também por haver reunido 14 pesquisadoras e pesquisadores, com marcante presença de pessoas negras e de mulheres.
“De todo modo, as pesquisas acadêmicas sobre Racionais não eram numerosas naquela época, como também não são hoje em dia, embora eu tenha a impressão de que o interesse da academia pela atuação do grupo tenha aumentado, assim como o diálogo entre as pesquisas”, acredita. Para Walter Garcia, Racionais MC’s: entre o gatilho e a tempestade sintetiza bem este momento.
Ele conta que começou a estudar o Racionais em 1998, cinco anos depois do lançamento de Raio X Brasil, e um ano depois do lançamento de Sobrevivendo no inferno, respectivamente o terceiro e o quarto disco do grupo.
Walter Garcia – Foto: Reprodução/YouTube
As criações reais e poéticas
Analisando o que considera como as principais colaborações do grupo para a música e a cultura, de forma geral, Walter Garcia cita que, “desde o primeiro disco, Holocausto Urbano (1990), o Racionais MC’s nos dá verdadeiras aulas de produção sonora e de literatura oral, mobilizando recursos com tal precisão que sentimos como real o que, na verdade, é uma criação musical e poética”.
O docente argumenta que “é certo que existem vínculos entre os raps e as experiências pessoais de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, o que é uma exigência, aliás, do hip-hop. Mas daí a ignorar o trabalho artístico vai uma distância enorme. “Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz comum”, do disco Sobrevivendo no Inferno, são exemplos radicais. Como artistas que são, Mano Brown e Edi Rock imaginaram duas trajetórias de vida, foram convincentes ao cantar, e os elementos musicais construíram, junto com os versos, o instante mortal de cada personagem”.
Álbum “Cores & Valores” – Foto: DivulgaçãoÁlbum “Escolha seu caminho” – Foto: DivulgaçãoÁlbum “Nada como um dia após o outro” – Foto: DivulgaçãoÁlbum “Raio-X Brasil” – Foto: DivulgaçãoÁlbum “1000 trutas, 1000 tretas” – Foto: DivulgaçãoÁlbum “Sobrevivendo no Inferno” – Foto: Divulgação
Outro ponto a considerar, na opinião do docente, é que a obra do Racionais MC’s “nos faz experimentar várias modalidades de violência que estruturam a sociedade brasileira, levando a pensar no que elas têm em comum: o preconceito e a segregação racial; e a generalização da forma mercadoria”.
Ele também cita que, frente ao “genocídio de jovens negros”, expressão que se lê no Portal Geledés, “raps do Racionais fazem sentir, sem pieguice e sem elogios tolos ao empreendedorismo, que é possível sobreviver com dignidade nas periferias urbanas.”
Quatro pretos perigosos…
Grupo Racionais MC’s é composto por Mano Brown, Kl Jay, Ice Blue e Edie Rock – Foto: Facebook/Racionais
Em sua participação no livro, no capítulo Quatro Pretos Perigosos: figuras de marginalidade em “Capítulo 4, versículo 3” e “Na fé firmão”, a jornalista Rachel D’Ipolitto de Oliveira Sciré destaca que “a cultura hip hop traz em sua essência a noção de marginalidade e se apoia em atitudes transgressoras, seja nos Estados Unidos dos anos 1970 ou na periferia da Grande São Paulo, na década seguinte”.
E no que diz respeito à música, ela descreve que “o rap rompe convenções ao introduzir um canto falado e inaugurar um novo tipo de produção musical, a partir de bases previamente gravadas e difundidas na indústria fonográfica, ignorando questões de direitos autorais.”
Rachel conta que o convite à participação no livro foi feito por Daniela. “Ela já conhecia as minhas pesquisas a respeito do Racionais, pois participamos de congressos e seminários juntas”, lembra a jornalista. “A partir de pesquisas realizadas anteriormente, durante o meu mestrado, eu discuto o aproveitamento da personagem do bandido como uma figura de transgressão nas obras do grupo, por meio da análise das letras de dois raps: Capítulo 4, Versículo 3, de Mano Brown, e Na Fé Firmão, de Edi Rock”, descreve.
Rachel D’Ipolitto de Oliveira Sciré – Foto: Arquivo Pessoal
A pesquisa de Rachel, veiculada em reportagem do Jornal da USP, foi apresentada no ano de 2019, no IEB, sob a orientação do professor Walter Garcia. Intitulada Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC’s, a pesquisa investigou semelhanças e diferenças entre as personagens do malandro e do bandido, a partir de sambas sobre a malandragem na obra de Germano Mathias, sambista, cantor e compositor paulistano que nos deixou em fevereiro deste 2023, e de raps sobre o “mundo do crime” na obra do grupo Racionais MC’s.
As figuras dos bandidos, como explica Rachel, encarnam toda a violência da sociedade brasileira que é cantada pelo Racionais. “Essa violência é muito maior do que a violência do ‘mundo do crime’, porém, no senso comum, a ideia de violência costuma ser localizada apenas nos episódios de criminalidade e associados a um outro, em geral, indivíduos de uma mesma classe social e cor de pele.”
Álbum “Ginga no Asfalto”, de 1962, de Germano Mathias, e Germano Mathias – Fotos: Divulgação e Reprodução/YouTube/Canal Brasil
O tratamento artístico dado ao tema da violência pelo grupo acompanha o seu aprimoramento artístico e torna-se um formato replicado por outros MCs, com a representação da figura do marginal por meio do discurso rapper e a transformação de histórias sobre delitos em mote para rimas. Isso acontece até mesmo dentro do próprio grupo, como é possível observar nas similaridades presentes nas duas letras de músicas analisadas.
Rachel ressalta que o capítulo escrito por ela em Racionais MC’s – entre o gatilho e a tempestade foi um desdobramento do seu estudo de mestrado. “Aprofundei algumas análises presentes no segundo capítulo da dissertação”, conta.
Os autores
Acauam Oliveira, doutor em Literatura Brasileira pela USP e atualmente professor adjunto de Letras da Universidade de Pernambuco (UPE);
Ana Lúcia Silva Souza, pós-doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília (UNB) e professora associada da Universidade Federal da Bahia (UFBA);
Bruno de Carvalho Rocha, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp);
Janaína Machado, educadora, atua na Pinacoteca do Estado de São Paulo;
Paula Costa Nunes de Carvalho, jornalista;
Capa do livro – Foto: Divulgação
Paulo César Ramos, doutor em Sociologia pela USP;
Rachel D’ipolitto de Oliveira Sciré, mestre em Filosofia no Programa de Culturas e Identidades Brasileiras, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP,
Silvana Carvalho Fonseca, professora de Culturas e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
Tiaraju Pablo D’andrea, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp);
Waldemir Rosa, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);
Walter Garcia da Silveira Júnior, professor da área temática de Música do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
*Sob supervisão de Moisés Dorado
Fonte: Jornal da USP