Escritos do diplomata e historiador Manuel de Oliveira Lima ganham edição da Biblioteca Brasiliana da USP
A história intelectual – aliás, qualquer especialização da história, sejamos precisos – é feita de figuras consagradas, nomes menores, sujeitos controversos e personagens ocultos. Estes últimos são aqueles encontrados em notas de rodapé, edições amareladas de sebo ou relançamentos esparsos de um ou dois trabalhos, não importa o tamanho da obra completa do autor. Aparecem na boca dos especialistas, e seus nomes são uma espécie de palavrório arcano de iniciados. Ecos de suas ideias reverberam nos clássicos, mas é muito fácil perder de vista seu rastro encoberto.
Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) é um desses sujeitos ocultos da historiografia nacional. Diplomata e historiador pernambucano nascido em Recife, Oliveira Lima tem uma obra elogiada sobre o período da corte portuguesa no Brasil, além de um conjunto de trabalhos que cobre desde a chegada dos lusitanos ao País até os primeiros anos da República. Fora do campo da história, teve longa colaboração na imprensa e deixou escritos sobre crítica literária, geografia, diplomacia e direito.
Apesar da publicação recente de livros como D. João VI no Brasil e O Reconhecimento do Império, parte considerável de sua produção carece de reedições cuidadosas. E muito de suas conferências, ensaios, produção jornalística e textos curtos permanece praticamente inédito, tendo em vista que após a publicação original – e algumas já ultrapassam um século – não ganharam novas versões.
Com a chegada de O Descobrimento do Brasil e Outros Ensaios, esse vazio começa a abrir espaço para uma redescoberta de Oliveira Lima, passados poucos anos de seu sesquicentenário. Organizado pelo também historiador, diplomata e pernambucano André Heráclio do Rêgo, o volume integra a Coleção 3×22 da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, dedicada ao lançamento de obras que propõem narrativas alternativas ao cânone da história nacional.
O livro organizado por Rêgo, que é também pós-doutorando do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e em 2017 já havia lançado Oliveira Lima: Um Historiador das Américas, reúne sete textos “quase inéditos” de Oliveira Lima. São ensaios, artigos para jornal e transcrições de conferências que integram o acervo da BBM, mas até agora se encontravam dispersos e sem tratamento crítico. Especialmente digitalizados, transcritos e revisados para o livro, ganharam também um estudo introdutório feito para a edição, além de notas e comentários que acompanham cada um dos ensaios.
“O grande diferencial deste livro é que são textos quase inéditos”, explica o organizador. “São escritos que foram publicados de forma esparsa em coletâneas, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em uma obra chamada Livro do Centenário, de 1900, e depois não foram mais publicados.” Para Rêgo, a presente edição, reunindo textos pouco conhecidos, uma introdução inédita e notas atualizadas, é a possibilidade de os leitores redescobrirem Oliveira Lima.
Uma visão abrangente do Brasil
Rêgo procurou, na seleção dos textos, compor uma visão cronológica e abrangente da história do Brasil. Por isso, o livro abre com o ensaio O Descobrimento do Brasil – Suas Primeiras Explorações e Negociações Diplomáticas a Que Deu Origem, contribuição de Oliveira Lima feita para o 4º Centenário do Descobrimento e publicado no que ficou conhecido como Livro do Centenário. Sem ver uma nova edição há 121 anos, o escrito abarca desde os antecedentes ao Tratado de Tordesilhas, de 1494, até mais ou menos 1530, nos primórdios da ocupação portuguesa.
O segundo texto, A Nova Lusitânia, trata das capitanias hereditárias a partir do exemplo de Pernambuco, batizada por seu primeiro donatário, Duarte Coelho Pereira, como Nova Lusitânia. Foi publicado originalmente em 1924, em Portugal, na coletânea História da Colonização Portuguesa do Brasil, supervisionada por Carlos Malheiros Dias e lançada em homenagem ao centenário da Independência brasileira.
A Conquista do Brasil e O Brasil e os Estrangeiros resultam da transcrição de duas conferências realizadas por Oliveira Lima na Bélgica, respectivamente em Bruxelas e em Antuérpia, publicadas no mesmo número da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1910. A primeira discute a ocupação do interior do País ao longo dos séculos 17 e 18, enquanto a segunda aborda a importância dos estrangeiros na formação nacional, comentando as guerras e ocupações francesa e holandesa e outras presenças particulares, como de italianos e alemães. “Oliveira Lima trata aqui também de uma categoria interessantíssima, os estrangeiros que ajudaram o Brasil sem nunca estar aqui”, conta Rêgo. “Cita o caso, por exemplo, do inglês Robert Southey, autor da primeira história do Brasil digna desse nome e que nunca esteve no Brasil.”
Outra conferência, dessa vez realizada em São Paulo, deu origem a O Papel de José Bonifácio no Movimento da Independência, publicado em 1907 também na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Segundo Rêgo, o texto é uma antecipação do material que apareceria em uma obra mais conhecida do autor, O Movimento da Independência, de 1922. “A gênese desse livro está nesse ensaio de 1907”, pontua.
Dos sete ensaios do volume, o dedicado a José Bonifácio é também o único que recebeu uma segunda edição. Foi em 1971, integrando uma obra seleta de Oliveira Lima organizada pelo jornalista, historiador e político Barbosa Lima Sobrinho. “O Descobrimento do Brasil e Outros Ensaios pretende ser também uma homenagem a Barbosa Lima Sobrinho e uma tentativa de prosseguimento do labor dele”, declara Rêgo.
O livro segue com um ensaio de cunho memorialista sobre Euclides da Cunha, escrito para o jornal O Estado de S.Paulo por ocasião da morte do autor de Os Sertões, em 1909, e republicado em livro em sua homenagem em 1918. Encerra a obra Aspectos da História e da Cultura do Brasil, transcrição de conferências realizadas por Oliveira Lima na Faculdade de Letras de Lisboa em 1923 e que serve como uma espécie de conclusão para os textos anteriores.
Autor oculto
Em vida, Oliveira Lima acumulou prestígio, reconhecimento e desavenças que podem surpreender quem escuta seu nome pela primeira vez. Um notório amante dos livros, o historiador foi educado em Lisboa, onde se graduou em Letras e reuniu uma formação robusta em crítica literária e historiografia. Foi também em Portugal que iniciou sua carreira diplomática, que o levaria ainda para a Bélgica, Suécia, Alemanha, Japão, Venezuela, Inglaterra e Estados Unidos. É lá, inclusive, na Universidade Católica de Washington, onde lecionou, que hoje se encontra sua imponente biblioteca, com 58 mil títulos.
Oliveira Lima conciliou a carreira diplomática com a vocação de historiador, desdobrando-se ainda na crítica literária e em colaborações em jornais de Pernambuco e São Paulo, como uma série de artigos para O Estado de S. Paulo durante a Primeira Guerra Mundial. Arrumou tempo ainda para ser um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, em 1897.
“Oliveira Lima é um historiador sui generis na história do Brasil, porque foi o primeiro grande historiador brasileiro que não foi autodidata”, comenta Rêgo. Essa diferença em relação a nomes como Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco, oriundos de cursos de Direito, e Capistrano de Abreu, um autodidata, singulariza Oliveira Lima. “Se de um lado isso prejudicou sua carreira social, tanto na diplomacia quanto na academia – porque ele não foi beneficiado pela sociabilidade que a frequência dos cursos de Direito do Recife e de São Paulo possibilitava –, por outro lado, garantiu acesso antes deles e de forma acadêmica às modernas teorias e correntes da história e da sociologia.”
Em Lisboa, Oliveira Lima teve como professores grandes nomes da intelectualidade local, como Teófilo Braga, folclorista, cientista social e primeiro presidente português. Graças a eles, o pernambucano tomou contato com as novas teorias da história, o que refletiu em sua abordagem. “Oliveira Lima dizia que a história do País não deveria ser só a história militar”, conta Rêgo. “Ele afirmava que a história de uma nação, do povo, deveria considerar também os aspectos da vida privada, das relações entre senhores e escravos, entre brasileiros e portugueses, entre governantes e governados. Nesse sentido, ele antecipa não só Gilberto Freyre, mas a própria Escola dos Annales, com a história da vida privada.”
Em D. João VI no Brasil, prossegue Rêgo, Oliveira Lima também antecipou Sérgio Buarque de Holanda e seu homem cordial quando salientava a influência predominante das relações afetivas nas decisões políticas. Já na abordagem do processo de Independência, sua originalidade seria ecoada pelo pensamento de Freyre, quando este falaria dos revolucionários conservadores, tais como Feijó. “Oliveira Lima inovou em muita coisa e foi precursor de muita gente importante da intelectualidade brasileira do século 20. Alguns reconhecem isso, outros não”, explica Rêgo.
Para o organizador da coletânea recém-lançada, além de Freyre e Sérgio Buarque, a lista daqueles que carregam em seu DNA as intuições do pernambucano inclui ainda gente como Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes, apenas para ficar em nomes destacados. “Eu diria que Oliveira Lima é um sujeito oculto da historiografia e da sociologia brasileira do século 20. Suas percepções estão em muitos autores, declaradamente ou não.”
Mas o que explicaria essa invisibilidade de Oliveira Lima? Para Rêgo, os motivos são variados. Em primeiro lugar, ele era um “diplomata muito pouco diplomático”, que acumulou desavenças com seu chefe, o Barão de Rio Branco, com Joaquim Nabuco e com outras figuras influentes da época. Sua mudança para Washington no fim da vida também pode ter influenciado no empoeiramento de sua obra, já que muitos de seus contatos no Brasil foram perdidos. Além disso, diferentemente de Capistrano de Abreu, que teve uma sociedade criada em sua homenagem logo após sua morte, responsável por garantir a edição de seus trabalhos, o pernambucano não teve nada parecido. “Oliveira Lima ainda não faz parte do cânone historiográfico brasileiro por desconhecimento de sua obra”, pontua o organizador.
Se depender de Rêgo, isso pode mudar em breve. Durante o processo de recolha, seleção, revisão e diagramação do livro, o pesquisador ficou tão empolgado que decidiu dar continuidade ao trabalho de busca dos textos “quase inéditos” de Oliveira Lima. A jornada o levou à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, à Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, ao IEB, à Biblioteca Nacional Francesa e à Biblioteca da Academia Brasileira de Letras, além de garantir novas visitas à BBM. Nessa aventura, cerca de 70 textos foram encontrados, versando sobre a história do Brasil, de Portugal e de Pernambuco, crítica literária, geografia, diplomacia e direito.
Rêgo quer agora fazer uma nova edição com esses escritos e está em busca de editoras e patrocinadores. “Lanço um apelo às instituições públicas e privadas e aos amigos da cultura brasileira em prol dessa obra seleta de Oliveira Lima, que seria uma homenagem ao autor e uma homenagem a Barbosa Lima Sobrinho, que fez a primeira obra seleta. Seria uma maneira bem interessante de comemorar o Bicentenário da Independência”, oferece Rêgo.
O Descobrimento do Brasil e Outros Ensaios, de André Heráclio do Rêgo (organização), Publicações BBM, 352 páginas. Download gratuito no site da BBM.