Por Rodrigo Haidar – Sexta, 27 de novembro de 2020
Premiados escritores já disseram que literatura é, sobretudo, forma. Todo mundo diz “minha vida daria um livro”. E talvez todos tenham razão. Mas o que transforma a vida em livro é a maneira como se conta. Histórias banais podem se transformar em obras-primas de acordo com a forma como são escritas, conforme o encadeamento dos fatos é apresentado. Conteúdo, é claro, é importante. Mas forma é fundamental.
O raciocínio vale para a literatura e para quase todos os aspectos da vida. A prosa que embala uma ideia faz toda a diferença em como ela será aceita. Para apresentar um projeto, um negócio, uma marca, uma filosofia, é preciso dar a eles, principalmente, forma.
Desse ponto de vista, a “lava jato” foi, sem dúvida, um sucesso. Nenhuma outra “operação” policial/judicial conseguiu tamanho êxito pelo fato de entender que controlar a narrativa é o ponto fundamental. Não à toa se transformou em franquia, tanto que está prestes a atingir sua “60ª fase” com a deflagração de botes que, apesar de levarem sua chancela, investigam crimes muitas vezes sem qualquer conexão com o processo de origem.
Não chega a ser uma novidade que, na condução da “operação”, o ex-juiz Sergio Moro — também ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, hoje advogado e parecerista — colecionou manobras heterodoxas para concentrar poder, condenar alvos escolhidos de antemão e atingir objetivos políticos pré-determinados, o que conseguiu fazer com uma eficiência nunca antes vista na história judicial do País. Mas faltava ainda à literatura jurídica uma análise sistêmica, crítica e imparcial do que aconteceu.
A lacuna acaba de ser preenchida pelo livro Lava Jato: Aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça, escrito pela juíza federal Fabiana Alves Rodrigues. Lançado pela editora WMF Martins Fontes, o trabalho é uma crítica contundente aos métodos da operação, feita da forma mais desapaixonada possível.
Recheado de levantamentos, dados e números sobre a “operação”, o livro reconstrói o ambiente social e político que permitiu a ascensão do grupo que protagonizou o movimento. Da incrível expansão da Justiça Federal após a promulgação de Constituição de 1988, passando pelo movimento global de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro e chegando às mudanças legislativas aprovadas pelo Congresso Nacional brasileiro, a autora oferece um amplo panorama social que criou solo fértil para o combate à criminalidade, sem o qual nenhuma “operação” sairia do lugar. Assim, joga por terra a ideia de que o combate à corrupção no Brasil só é feito graças à ação abnegada e corajosa de um iluminado grupo de servidores públicos que, um dia, acordou e decidiu trabalhar.
Mas não se engane, leitor. O livro está longe de ser uma brochura a serviço da desconstrução de biografias — apesar de desconstruí-las. Fabiana Rodrigues desnuda ali o uso do processo como meio de atingir objetivos já fixados antecipadamente, as manobras frequentes no que chama de zonas cinzentas legais, que dão espaço para ações discricionárias de juízes e de membros do Ministério Público.
“Sob a ótica da legislação, a atuação desses operadores transita da inequívoca vedação legal de praticar determinada ação à obrigatoriedade da conduta prevista em lei. Entre esses dois extremos, há uma ampla gama de comportamentos possíveis, que inclui zonas cinzentas sobre a vedação ou a imposição, além de um campo residual de comportamentos autorizados, mas não impositivos”, escreve a autora. “A estratégia dos atores está essencialmente na forma como manejam as zonas cinzentas e no timing escolhido para a prática de atos, incluindo aqueles que lhe são impostos”.
Foi no amplo uso dessas zonas cinzentas que operou Sergio Moro e seus procuradores. O estudo revela um Sergio Moro mestre da dissimulação, tanto para desenhar a narrativa perante o Supremo Tribunal Federal ao omitir informações para manter consigo um processo que não deveria ter foro em Curitiba, quanto para determinar uma condução coercitiva ilegal dando a ela o nome de convite para depor.
Exemplo prático: em novembro de 2014, ainda no primeiro ano da “operação”, o juiz determinou a deflagração de uma “fase” batizada de Juízo Final, quando houve a primeira prisão de executivos de grandes empresas. Em sua decisão, Moro relaciona diversos depósitos feitos em contas de empresas de consultoria e de investimentos que seriam, segundo a acusação, pagamento de propina. E relaciona contratos entre empreiteiras e empresas que seriam controladas pelo doleiro Alberto Youssef. Mas, em nenhum trecho da decisão consta a informação de que as empresas do investigado têm sede em São Paulo.
Segundo descreve a autora do livro, “a decisão relaciona pelo menos 23 empresas envolvidas com crimes investigados, mas apenas em uma há menção à sede (da filial), não por acaso na cidade de Curitiba, omitindo-se que 16 estão sediadas em São Paulo”.
Para a juíza Fabiana Rodrigues, “pode-se supor que o comportamento estratégico dos atores da Lava Jato no Paraná, em especial do juiz Sergio Moro, decorreu da percepção de que, se as decisões contivessem todas as informações necessárias para a análise da competência, os tribunais teriam de reconhecer que a maioria dos crimes, notadamente os de lavagem de dinheiro, tinha sido praticada na cidade de São Paulo”. O que, claro, tiraria as ações do foro de Curitiba e as enviaria para análise de um juiz federal na capital paulista.
Em suas 296 páginas, o livro descreve outras jogadas semelhantes do juiz, principalmente para driblar aqueles que seriam os primeiros controles efetivos da “lava jato” pelos tribunais superiores. Também salta das páginas do estudo uma análise criteriosa sobre o uso estratégico da lei como linha auxiliar da narrativa que se quer consolidada, ainda que essa narrativa não encontre necessariamente nos autos as provas correspondentes.
Apesar de a “lava jato” ser identificada como uma operação de combate à corrupção, a maioria das ações penais que a integra diz respeito ao crime de lavagem de dinheiro. E encaixar os fatos investigados em uma ou outra tipificação pode fazer toda a diferença no andamento do processo. Um juiz experiente sabe disso.
Como explica a autora, se o juiz federal reconhecer indícios de organização criminosa em um processo, os órgãos de investigação contarão com medidas especiais, como a infiltração de agentes policiais, captação ambiental de conversas privadas, ação controlada e colaboração premiada. Além disso, é possível supor que aumentam os danos à reputação de integrantes da classe política e do alto empresariado ao se divulgar que estão sendo investigados por participação em organização criminosa.
Este, apenas um exemplo de uso da lei a serviço da história que se quer construir. Como esquecer, por exemplo, o tão ridículo quanto célebre Power Point apresentado pelo procurador Deltan Dallagnol em que todas as setas levavam ao ex-presidente Lula? O detalhe de a denúncia não explicar as conexões apresentadas não enfraquece a história vendida em uma entrevista coletiva.
A prática, contudo, não começou com a “lava jato”. É preciso reconhecer. O que seria, afinal, da Ação Penal 470, o processo do “mensalão”, sem o uso da lei a serviço da narrativa?
A autora lembra de um importante trabalho do professor do Departamento de Ciência Política da USP, Rogério Bastos Arantes: “Depois do estudo detalhado e sistematizado dos votos e do resultado do julgamento, o autor concluiu que o crime de quadrilha permitiu a estruturação da denúncia e a articulação dos demais crimes. Estes só ganharam inteligibilidade à luz da tese principal de formação de uma organização criminosa destinada a cometer um crime politicamente orientado, mas o resultado aproximou o Mensalão de um ‘crime sem autor’, pois todos foram absolvidos da acusação de quadrilha”.
O estudo de Arantes citado por Rodrigues faz parte de outro livro, lançado em 2018, com o sugestivo título Justiça no Brasil: às margens da democracia — uma coletânea de artigos organizada pelos professores Marjorie Corrêa Marona e Andrés Del Río.
No livro de Fabiana Rodrigues, há outro exemplo esclarecedor de como nem sempre a apresentação dos “fatos” pela acusação corresponde ao que contém a denúncia. “A despeito da constante referência ao ‘clube das empreiteiras’ e ao desvio de recursos públicos em licitações fraudadas, mencionadas doze vezes no site da força-tarefa do Ministério Público Federal no Paraná, que também cita quinze vezes o crime de cartel, houve apenas uma ação com acusação da prática de cartel (sete réus) e duas envolvendo crimes de licitação (dez réus), uma delas não relacionada com a Petrobrás”.
O livro, importante dizer, não pretende absolver os acusados dos crimes que cometeram. Não há dúvida, como aponta a autora, que houve desvio de recursos públicos em somas assustadoras e que os crimes motivaram as ações penais. “Em cinco anos de operação, houve a confirmação oficial do bloqueio no exterior de 612 milhões de dólares e a repatriação definitiva de 166 milhões de dólares”.
O interesse do estudo é a maneira como os desvios foram processados criminalmente pela Justiça. O foco é a identificação das estratégias adotadas na gestão das investigações e ações criminais. Parte dessa estratégia já havia sido desvendada em junho de 2019, quando uma série de reportagens publicadas pelo site The Intercept colocou em xeque a ruidosa operação policial/judicial. Os textos traziam conversas verdadeiramente constrangedoras dos membros da força-tarefa de Curitiba entre si, e destes com o juiz símbolo do espetáculo, Sergio Moro, a essa altura já fora da magistratura e no cargo de ministro da Justiça do governo Bolsonaro.
A série de reportagens batizada de “vaza jato”, que também virou livro lançado este mês, revelou parcialidade, objetivos políticos, um tanto de prepotência e o atropelo deliberado das boas regras de conduta a serem seguidas em investigações e julgamentos penais. Ali, se revelou o que se passava fora dos autos.
O mérito do trabalho da juíza federal Fabiana Alves Rodrigues é justamente jogar luz de forma ordenada no que se passou nos atos oficiais, nos processos, nas investigações e ações penais. E essa luz revela métodos bastante questionáveis. Interceptação telefônica de escritórios de advocacia “por engano”, pressão sobre os limites da troca de informações entre autoridades administrativas financeiras e a força-tarefa, descumprimento de trâmites no intercâmbio de informações entre o Brasil e outros países, além de uma gestão do tempo de andamento de processos escolhida a dedo compõem um quadro que não embeleza a biografia dos líderes da operação. “Pode-se dizer, parodiando o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, que no núcleo curitibano da Lava Jato os processos tinham capa e ela influenciou a gestão temporal dos casos”, escreve a autora.
Curiosidades, como um quadro do trâmite de aprovação das principais leis que envolvem operações de combate à corrupção e a participação direta de parlamentares investigados pela Lava Jato na aprovação da legislação que deu arcabouço para que, depois, eles próprios fossem investigados, são um brinde extra do estudo.
Há, ainda, um quadro histórico sobre a possibilidade do uso de delação premiada, instrumento sem o qual talvez não houvesse “lava jato”. A ferramenta foi admitida pela primeira vez na legislação nacional em 1990, com a sanção da Lei 8.072, a chamada Lei de Crimes Hediondos. Nos casos de sequestro cometido por quadrilha ou bando, prevê a redução de um a dois terços da pena caso o coautor denuncie o crime à autoridade e facilite, assim, a liberação do sequestrado e o consequente desmantelamento da quadrilha.
De 1990 para cá, o instrumento foi sendo aperfeiçoado, expandido, previsto em maior ou menor grau em outras nove leis federais, até culminar com a edição da Lei 12.850/2013, dos crimes praticados por organizações criminosas. Este arcabouço legislativo é bem desenhado por Fabiana Rodrigues. Não falta ao livro uma análise fria da prisão e da condenação do ex-presidente Lula.
Talvez a juíza Fabiana Alves Rodrigues não tivesse como objetivo desnudar de forma tão acachapante a parcialidade da “operação”. Mas o fato é que desnuda. O livro nasceu da dissertação de mestrado em Ciência Política apresentada pela autora na Universidade de São Paulo e revela preocupações legítimas de uma magistrada com a justiça das decisões judiciais.
Em determinado trecho ela pergunta, por exemplo, se o processo de desenvolvimento institucional da Justiça imprimiu níveis satisfatórios ao serviço público prestado pelo Poder Judiciário. A resposta, reconhece, pode não ser tão animadora. Fabiana Rodrigues também questiona a lógica de se considerar corretas decisões pelo único motivo de terem sido mantidas pelas instâncias superiores. “Como se os mesmos vícios não pudessem ser repetidos por membros dos tribunais”.
A autora ainda propõe uma reflexão fundamental: a discussão sobre o papel do Judiciário, especialmente do juiz, numa ação criminal. “O elevado interesse na condução de um caso sugere o comprometimento do juiz com o resultado do processo. Isso esbarra num princípio caro às democracias: a imparcialidade daquele que exerce o papel de julgador. O tema é especialmente importante diante da dificuldade de comprovar a parcialidade do juiz”.
O livro
Lava Jato: Aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça
Autora: Fabiana Alves Rodrigues
Editora: WMF Martins Fontes
Páginas: 296
Preço: R$ 49,90
Fonte: Conjur