Mesmo diante de uma vida repleta de dificuldades, o verbo recomeçar parece algo distante. Mas para algumas pessoas, o recomeço é mais do que uma opção, é uma necessidade. Neste dia 8 de março, o g1 conversou com mulheres imigrantes, que deixaram seus países para recomeçar a vida em Salvador.
“Temos problemas no meu país. Não é um país ok. Vim por causa da guerra, da violência, e da insegurança”, conta ao g1 Melina Cadet, haitiana de 60 anos.
Há dois anos na Bahia, Melina trocou o medo das disputas entre etnias no Haiti pelo Brasil. Sua filha mais velha já estava no país e foi a responsável por trazê-la para a Bahia. Depois foi a vez do filho mais velho, Samuel. Outros dois filhos de Melina ainda vivem no Haiti.
“Tenho muita saudades. Nos falamos todos os dias”, conta sobre os dois filhos ainda no país caribenho.
Melina ainda tem dificuldades com a português e conta com ajuda do filho Samuel para explicar detalhes de sua vida. Ela é funcionária do espaço Malembe, no Pelourinho. Já Samuel é gerente de um restaurante do mesmo grupo, o Roma Negra, também no Centro Histórico.
Muita querida pelas sócias do grupo, neste mês, Melina vai dar nome a um prato em um dos restaurantes. “O Haiti é o lugar de um povo lutador, e nós mulheres seguimos lutando. Eu luto para trazer meus filhos para o Brasil. Tenho muitas saudades”, conta.
Ela lembra que começou a trabalhar aos 14 anos, e apesar dos apelos do filho para que trabalhe um pouco menos, acredita que ainda não é a hora de parar. “É preciso deixar os filhos voarem e só depois parar”, diz.
Filho de Melina, Samuel Cadet diz que a mãe é um exemplo. “Minha mãe é uma inspiração. Ela nunca parou de trabalhar. Eu aprendi muita coisa com ela. Ela é minha mãe e meu pai, já que quando meu pai morreu eu tinha 3 anos”, conta.
Enquanto reconstrói sua história longe de casa e com saudade dos filhos, Melina também mata saudades da antiga vida com vídeos na internet do coral que fazia parte no país natal. Se virando no português, ela lamenta ainda não ter encontrado na Bahia um local para cantar.
A vontade de um recomeço também é o que move a venezuelana Lizette Coromoto, de 58 anos. Há dois anos na Bahia, a mulher que dava aulas em uma universidade militar em Caracas e se insurgiu contra o regime venezuelano, agora busca um emprego na área de turismo.
“Geralmente dizem que a mulher é fraca. Mas o que uma mulher não sente por ser mulher é medo. A vida é difícil, mas eu estava com 55 anos quando saí da Venezuela sem ninguém. Uma mulher não precisa ficar com homem para conseguir as coisas da sua vida. O que eu posso dizer para outras mulheres é que não tenham medo de tomar conta das suas vidas. Temos que deixar o medo de lado e arriscar”, disse ao g1.
Antes de vir para o Brasil, Lizette fez pesquisas sobre países da América Latina onde poderia iniciar uma nova vida, após a morte dos pais e do marido. A mudança da filha para o Peru também pesou na decisão de trocar de país.
“Diante de tudo que acontecia no meu país, eu pensei em ir para um lugar onde eu pudesse ter uma melhor qualidade de vida. Pesquisei e fiquei entre Argentina ou Brasil. Só que eu tinha uma tia aqui, irmã caçula de meu pai, que vivia aqui, então decidi vir. Eu comecei a trabalhar em pousadas, mas o local onde trabalhava fechou (durante a pandemia), então passei a me virar. Vendi algumas coisas, mas sigo em busca de um emprego na área de turismo”, conta.
Lizette ainda diz que apesar de se sentir acolhida em Salvador, é na questão da idade que vê as maiores barreiras por conta do preconceito.
“Esses dias fui para uma entrevista de emprego e o homem disse que eu estaria muito velha para trabalhar e que eu deveria ficar em casa. Nisso (na idade), eu sofro um pouco de preconceito. Mas no geral, eu não posso dizer que tive problemas (de preconceito). Pelo contrário. Muitas pessoas me ajudam. Ajudam outros imigrantes. Tenho uma rede de amizades”, disse.
Uma rede de amizades e solidariedade é fundamental para quem troca de país. Em Salvador, uma dessas redes é na Pastoral do Imigrante, que fica na Paróquia Ascensão do Senhor, no Centro Administrativo da Bahia.
Comandada pelo padre Manoel Filho, a pastoral realiza um trabalho com os migrantes e refugiados. O atendimento vai de uma escuta a demandas como alimento, moradia, mediação para emprego e de doações de utensílios domésticos. Além de questões de saúde.
“A pastoral surgiu há cinco anos por uma questão de demanda. Foram aparecendo imigrantes, e de todas as formas fomos sendo demandados e precisávamos dar respostas. Passamos a nos articular. Atualmente temos 130 famílias cadastradas. Já passaram bem mais. À medida que a família se desloca, ou vai para outro estado, ela deixa o cadastro”, conta o padre.
O religioso destaca ainda importância dessa rede de colaboração. “Trabalhamos basicamente com atendimento humanitário, com doação de roupas, de alimentação, de encaminhamento a órgãos que possam ajudar de saúde e atendimento, isso na perspectiva humanitária. Além da perspectiva de lutas por direitos com articulação com outras instituições, como a Universidade Católica e o Namir da UFBA”, disse.
O padre ainda cita a importância das doações para manter a rede de atendimento na pastoral. “Recebemos doações diariamente na nossa paróquia. Bem na entrada da igreja tem um grande local para donativos que podem ser colocados lá. Tanto doação de alimentos, quanto de objetos que não tenham uso, mas que estejam em bom estado”, disse.
A venezuelana Lizette vê a pastoral como um local de assistência afetiva para pessoas vindas de outros países.
“A pastoral do Imigrante me ajudou muito. E quero retribuir. Tenho formação em direitos humanos, além de outras graduações, então quero ajudar outros imigrantes com os processos. Quero contribuir de alguma maneira, já que eu recebo muito. Mas não é somente ajuda material, é uma assistência afetiva, é ter alguém para contar”, conta Lizette.
De acordo com o padre Manoel, cubanos, iemenitas, paraguaios, africanos de vários países, e haitianos já passaram pela pastoral, que atualmente atende 130 famílias venezuelanas.
A pastoral também foi determinante na historia da cubana Yanet Patrícia Gallo Girbau, que com apoio da ação do padre Manoel conseguiu reunir a família em Salvador. “A Pastoral do Migrante representa muita coisa para mim. Quando chegamos aqui, nós não conhecíamos ninguém. Nós não pretendemos voltar para Cuba, pois a vida lá era muito ruim”, contou Patrícia.
Quem também atende a pessoas vindas de outros países em condições de vulnerabilidade na Bahia é o Núcleo de Apoio a Migrantes e Refugiados(NAMIR). Formado por quatro comissões: direitos humanos, trabalho, educação e saúde, o programa é coordenado pela professora e pesquisadora Mariângela Nascimento.
A Mariângela destaca que “por muito anos, as mulheres foram vistas como meras ‘acompanhantes’ de seus maridos que migravam em busca de trabalho”, mas que o perfil atual é outro. “Atualmente, as mulheres migrantes estão mais envolvidas com o sustento de suas famílias e por isso, precisam de diversos apoios que as ajudem a viver de forma digna”, conta.
A professora também ressalta, através de suas pesquisas, que “a mulher que migra tem assumido um papel fundamental nos locais aonde chega, (…) rompendo com o estereótipo de subalternidade que lhe é atribuído pela maioria dos estudos”.
Ainda de acordo com a pesquisadora, o perfil das mulheres imigrantes e refugiadas no Brasil confirma as histórias de Melina e Lizette e indica um grupo disposta a mudar suas realidades a partir de uma nova oportunidade.
“Apesar das situações adversas que enfrentam, as mulheres não se sentem vítima ou subalternas, pelo contrário, afirmaram que sair do seu país foi uma decisão própria e autônoma, e que, mesmo frustradas nas expectativas iniciais, a experiência de morar no Brasil tem mudado o seu modo de vida, e isso, segundo elas, significa conquistar novos relacionamentos, novos valores e novas possibilidades”, diz um trabalho da professora.
O Namir realiza atualmente um mapeamento e diagnóstico do perfil da população imigrante e refugiada que chega na Bahia. No momento estão sendo feitos estudos em Salvador e Lauro de Freitas.
O programa ainda aponta que não há um dado exato de imigrantes e refugiados na Bahia, mas indica que cerca de 400 refugiados venezuelanos chegaram recentemente na comunidade de Areia Branca, em Lauro de Freitas. Ainda segundo o Namir, a Bahia é estado do nordeste que mais recebe imigrantes, não só venezuelanos, mas também de Angola, Moçambique, Cabo Verde, e Senegal, na África, e da Ásia, como os sírios.
O g1 procurou a Casa Civil do Governo Federal para solicitar dados sobre mulheres venezuelanas na Bahia a partir da Operação Acolhida, mas não recebeu dados até o fechamento dessa reportagem.
Já o Governo da Bahia se posicionou através da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS). A pasta diz que tem atuado na questão dos refugiados e imigrantes em atendimentos nos equipamentos de assistência social, quando demandados ou quando encaminhados, por exemplo, a partir de trabalhadores refugiados ou imigrantes encontrados em situação análoga ao trabalho escravo.
Fonte: g1 Bahia