Luta pelo financiamento do SUS recomeça em 2026

saúde

Frente pela Vida analisa a economia da saúde e os entraves em ano eleitoral. Governo Lula garantiu recomposição do orçamento, mas Arcabouço Fiscal ainda é grande ameaça. Ademais, política de juros do Banco Central bloqueia a garantia de saúde para todos

Por Francisco R. Funcia

Este artigo é uma síntese dos principais pontos da minha apresentação na Mesa 1 – Conjuntura, a saúde e o SUS – do Encontro Nacional da Frente pela Vida (FpV), realizado em novembro de 2025, no 14º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, em Brasília.

Nosso objetivo é abordar a questão do financiamento federal do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de algumas das propostas aprovadas sobre esse tema na I Conferência Nacional Livre de Saúde, que a FpV organizou em 2022, de modo a identificar quais delas foram efetivadas e quais delas podem ser mantidas a partir dos anos de 2026 e de 2027.

A discussão sobre o processo de financiamento do SUS não pode se restringir à situação de insuficiência e de instabilidade dos recursos; deve, também, incorporar elementos para a identificação das possíveis causas dessa situação, no contexto (i) do financiamento das políticas públicas em geral e da seguridade social, (ii) da política econômica e (iii) da correlação de forças políticas entre o Governo Federal e o Congresso Nacional.

Das propostas aprovadas referentes ao tema “financiamento” que constam no Relatório Final dessa Conferência (leia aqui), destacamos a seguir algumas delas, relacionadas direta ou indiretamente à política econômica.

1. Aumentar o gasto público em saúde no Brasil (soma da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios) para que represente 60% do gasto total (público mais privado)

Inicialmente, é oportuno informar que essa é uma proposta aprovada na I Conferência Nacional Livre de Saúde, e que também integra as diretrizes aprovadas da 17ª Conferência Nacional de Saúde.

Se considerarmos o gasto total em saúde (público mais privado), o Brasil aplica 9,7% do PIB, percentual similar ao dos países desenvolvidos. Contudo, a participação do gasto público no Brasil (em torno de 40% do gasto total em saúde) continua menor que a participação do gasto privado (em torno de 60%).

Nestes termos, essa proposta de aumentar a participação do gasto público comparativamente ao gasto privado em relação ao total do SUS deve ser mantida a partir de 2026 e 2027, bem como outra observação, derivada dessa: o gasto federal do SUS precisa aumentar para 50% do gasto público total.

O que justifica a proposta? Em primeiro lugar, a competência de tributar da União corresponde a cerca de 67% da arrecadação tributária total do Brasil. Além disso, após as transferências constitucionais intergovernamentais de impostos estabelecidas pela Constituição Federal, a União ainda concentra nos seus cofres 57% do total dessa arrecadação tributária (pelo conceito de receita disponível).

Ainda, para a construção de uma política de fortalecimento do financiamento da seguridade social, em especial do SUS, e de outras políticas sociais, somente o governo federal poderia assumir essa responsabilidade e iniciar um processo de transição. Tanto porque somente essa esfera de governo pode emitir títulos da dívida pública, como porque existem superávits financeiros em diversos fundos federais que poderiam ser utilizados temporariamente para esse fim.

Com isso, seria possível, no médio prazo, obter um aumento da arrecadação federal por meio de uma reforma tributária de caráter progressivo, onerando proporcionalmente mais a parcela da população com maior renda e, portanto, maior capacidade contributiva.

Desta forma, se o governo federal conseguisse iniciar o processo de fortalecimento do financiamento do SUS e ampliasse a sua participação para 50% dos gastos públicos em saúde no Brasil, o incremento financeiro estimado seria entre R$ 40 bilhões e R$ 50 bilhões.

Ainda não seria suficiente para os gastos públicos em saúde alcançarem o padrão internacional de 60% dos gastos totais (público mais privado em saúde). Mas, seria o início do processo de transição comentado anteriormente – por exemplo, no prazo de 4 a 5 anos, incrementar anualmente cerca de R$ 10 bilhões adicionais ao piso federal do SUS como aplicação efetiva em ações e serviços públicos de saúde.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a FpV apoiaram a proposta de um novo modelo de financiamento federal do SUS apresentada pela Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) em 2022, que coordenou o estudo realizado por um conjunto de economistas da saúde (leia aqui).

Esse estudo tinha como objetivo central reduzir o processo de subfinanciamento do SUS por meio de uma nova regra de cálculo do piso, que não fosse baseada em fatores relacionados à dinâmica econômica (como receita corrente líquida ou Produto Interno Bruto), mas sim por outros que promovessem reduzissem a instabilidade e promovessem o planejamento de curto, médio e longo prazos.

Uma mudança serviria tanto para ampliar o financiamento federal do SUS, como para incorporar esse objetivo na política econômica, de modo a cumprir o que estabelece o artigo 196 da Constituição Federal (que estabeleceu a necessidade de uma política econômica compatível com princípio de que a saúde é direito de todos e dever do Estado).

2. Revogar o Teto de Gastos (EC 95/2016) e o Previne Brasil (Portaria GM/MS 2979/2022), bem como rever outras medidas da austeridade fiscal

Inicialmente, é oportuno destacar que houve a revogação da Emenda Constitucional (EC) nº 95, de dezembro/2016 (que estabeleceu o teto das despesas primárias congelado nos valores pagos em 2016 e dos pisos federais da saúde e educação congelados nos valores dos respectivos pisos calculados para o exercício de 2017) e da Portaria GM/MS nº 2979, de novembro/2019 (que estabeleceu o Previne Brasil como uma nova regra para o financiamento federal da atenção primária à saúde baseada no número de usuários cadastrados).

A revogação da EC 95 foi possível pelo dispositivo aprovado na EC 126, de dezembro/2022, que estabeleceu como condição para essa revogação o encaminhamento pelo governo federal de projeto de lei de Novo Arcabouço Fiscal no 1º semestre de 2023, cuja aprovação pelo Congresso Nacional ocorreu no final de agosto daquele ano (Lei Complementar nº 200).

Foi muito importante a revogação da EC 95, dentre outros motivos, porque desacelerou tanto o processo de asfixia orçamentária e financeira imposto às políticas sociais pelo “teto de gastos”, como o grave processo de desfinanciamento experenciado pelo SUS.

No período de 2018 a 2022, enquanto ela estava em vigor, deixou de ingressar no financiamento federal do SUS entre R$ 65 bilhões e R$ 70 bilhões, segundo estudo publicado pelo Ipea. Em outros termos, a partir de 2023, em valores acumulados no período, houve um aumento estimado de cerca de R$ 70 bilhões a R$ 80 bilhões de recursos federais para o financiamento das despesas federais com ações e serviços públicos de saúde.

Porém, não foi possível reduzir o processo de subfinanciamento histórico do SUS e, desta forma, continua sendo essa uma proposta prioritária – tanto quanto a revogação “de todas as medidas de austeridade fiscal e que desmontam as políticas sociais”.

Desta forma, trata-se da parte da proposta original aprovada na I Conferência Nacional Livre de Saúde que deve permanecer a partir de 2026 com as atualizações necessárias, especialmente para contemplar aspectos do Novo Arcabouço Fiscal, aprovado pela Lei Complementar nº 200, de agosto/2023.

Não há dúvida de que houve uma flexibilização fiscal (inclusive para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde) a partir de 2023 com as regras do Arcabouço em comparação ao “teto de gastos”, para a execução orçamentária e financeira das despesas primárias.

Contudo, a imposição do limite de 2,5% para o crescimento anual (acima da inflação) das despesas primárias representa uma rigidez fiscal incompatível com as regras constitucionais para o cálculo dos pisos federais das despesas com educação e saúde, que estão vinculados à receita (cuja variação anual está acima desse limite do Arcabouço Fiscal).

Essa contradição pode explicar as reiteradas manifestações na imprensa das pastas da área econômica do governo em defesa da “desvinculação” dos pisos federais da educação e da saúde. Tal assunto não teve continuidade por intervenções públicas do Presidente Lula, que tem mantido a posição que expressou na I Conferência Nacional Livre de Saúde em 2022: “saúde não é gasto, saúde é investimento”.

Mas, o tema da “desvinculação dos pisos” vai voltar em breve, em razão da contradição (citada anteriormente) existente entre as regras do Arcabouço Fiscal para o crescimento anual do conjunto das despesas primárias e as regras de cálculo dos pisos federais da saúde e educação vinculadas à receita.

Com isso, a capacidade de expansão de todas as despesas das áreas sociais, infraestrutura, dentre outras (exceto os juros da dívida e demais financeiras, que não estão submetidas ao Arcabouço), está sendo restringida pelo financiamento das ações e serviços públicos nas áreas de educação e saúde, cuja contradição tenderá a se manifestar mais explicitamente a partir de 2026 ou 2027.

O enfrentamento do processo de subfinanciamento do SUS no contexto da política econômica baseada na austeridade fiscal ficou ainda mais complexo, diante de um dispositivo aprovado na EC nº 135, de dezembro de 2024, que impede a mudança de regras de cálculo de pisos de políticas setoriais se resultar em valores cujas variações anuais fiquem acima do limite estabelecido pelo Arcabouço Fiscal (2,5% ao ano).

Isto quer dizer que a luta contra o processo de subfinanciamento do SUS vai exigir não somente a mudança da EC nº 86, de março/2015 (que estabelece 15% das Receitas Correntes Líquidas), mas também a mudança da Lei Complementar nº 200, de agosto/2023, que regulamentou o Arcabouço Fiscal (especificamente do limite de crescimento anual das despesas em 2,5% e/ou a exclusão explícita das despesas federais do SUS do cômputo das despesas primárias sujeitas a esse limite).

3. Necessidade de revisão da política econômica

Alguns aspectos da austeridade fiscal foram tratados anteriormente. Mas, a necessidade de revisão da política econômica abrange também a política monetária conduzida pelo Banco Central (BC), que é um órgão com autonomia legal (em relação ao governo federal).

Sob a alegação de conter as “expectativas inflacionárias”, mesmo no cenário de inflação sob controle, o BC tem mantido as taxas de juros em patamares muito elevados (15% ao ano), o que aumenta a necessidade de superavit primário (diferença positiva entre receitas primárias e despesas primárias) para que o governo possa pagar os juros da dívida. Elas já atingiram cerca de R$ 1 trilhão, valor impossível de ser pago e incorporado na dívida pública – que está crescendo por causa dos juros, sem nenhuma intervenção direta do governo.

Ou seja, concretamente, quem está dificultando a realização das ações e serviços de várias áreas governamentais, inclusive do Ministério da Saúde, para o atendimento das necessidades da população é o BC – em aliança aos interesses do capital financeiro e dos rentistas.

Ao manter a taxa de juros em 15% ao ano, o Banco Central pressiona o governo a obter valores mais elevados de superávit primário, mas não há nenhuma possibilidade de cortar despesas primárias para economizar R$ 1 trilhão de reais. Além disso, a manutenção dessa taxa elevada de juros em combinação com a austeridade fiscal prejudica o setor produtivo da economia e as contas públicas, desacelerando o ritmo da atividade econômica e, consequentemente, o processo de geração de empego e renda.

Essa desaceleração, por sua vez, pressiona as contas públicas na busca da população pelos serviços de saúde, assistência social, dentre outros. Essa política monetária é um círculo vicioso: alega-se que os juros sobem porque o governo não consegue cortar gastos; mas os gastos do governo crescem como consequência do aumento dos juros. Evidentemente, essa política econômica precisa ser revista!

Outro aspecto dessa revisão da política econômica deve contemplar uma reforma tributária completa: já teve início a reforma tributária, com as alterações promovidas na tributação que incide sobre produção e consumo a vigorar a partir de 2027. Têm o objetivo de estabelecer a simplificação tributária, que possibilitará o aumento da capacidade arrecadatória nas três esferas de governo.

Resta ainda dar sequência nas reformas dos tributos que incidem sobre patrimônio, renda e riqueza – teve início, com a aprovação em 2025 (para vigorar a partir de 2026), da isenção de Imposto de Renda Pessoa Física para rendimentos mensais de até R$ 5.000 e redução gradual de imposto para os rendimentos mensais entre R$ 5.000 e R$ 7.350.

Por outro lado, o Congresso Nacional não aprovou a Medida Provisória que aumentava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o que reduz a capacidade de financiamento das políticas públicas em geral, e da saúde em especial.

Ampliar a tributação sobre o patrimônio, renda e riqueza é bastante difícil, dada a forte resistência do Congresso Nacional na defesa dos interesses do capital e dos que recebem altos rendimentos.

Nessa perspectiva, seria muito importante que o governo quantificasse as propostas de ampliação dos valores desses tipos de tributos e informasse quais ações, serviços e obras seriam realizados com esses recursos adicionais, uma espécie de “cara-crachá”.

Um exemplo. O CNS aprovou, em 2015, que esses recursos adicionais deveriam ser destinados para a atenção primária à saúde, para a valorização profissional dos trabalhadores do SUS e para os investimentos do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (em relação a essa última proposta, se tivesse sido priorizada no período de 2016 a 2022, é possível que menos mortes causadas pela covid-19 tivessem ocorrido no Brasil).

Outra proposta possível: garantir mais recursos para que se estruture a atenção especializada, cujo programa mais recente é o “Agora Tem Especialista”. Esse Programa estabeleceu o período de 2025 a 2030 como de transição para um conjunto de medidas que envolve a contratação de serviços junto ao setor privado.

Para que isso realmente ocorra somente nesse período de transição, é preciso um processo de planejamento para os próximos 5 anos que contemple tanto a estruturação da rede física, como o processo de formação de profissionais de saúde e a criação de vagas para realização de concursos públicos para a contratação de especialistas para a ampliação desses serviços.

Os instrumentos para evidenciar esse planejamento são os vigentes Plano Plurianual 2024-2027 e Plano Nacional de Saúde 2024-2027, bem como esses instrumentos a serem elaborados para o período 2028-2031 (o que, para se efetivar, dependerá dos resultados das eleições de outubro de 2026 e da articulação política com os futuros parlamentares eleitos para o Congresso Nacional).

Portanto, para o enfrentamento do subfinanciamento do SUS, faz-se necessária a mobilização da sociedade em defesa do cumprimento integral do que estabelece o artigo 196 da Constituição Federal – a saúde como direito de todos e dever do Estado, sendo que a política econômica deve ser compatível para o cumprimento desse direito.

Fonte: Outra Saúde / Créditos: Tutz Dias / Unsplash



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *