Maria da Graça. Gracinha. Baby – o nome dela é Gal

cultura

A cantora, que morreu aos 77 anos no último dia 9, era a principal voz feminina da MPB. E muito mais

Por Marcello Rollemberg – Domingo, 13 de novembro de 2022

Arte: Guilherme Castro

Em finais dos anos 1950, uma menina baiana de 12 anos, cabeluda, se insinuando cada vez mais na arte de tocar violão e exercitando uma voz que era admirada por quem a ouvia teve a chance de sua vida, iria conhecer João Gilberto, tão baiano quanto ela. Um cronista social amigo da família iria se encontrar com o pai da bossa nova. Ela pediu, implorou – e a mãe deixou ela ir ao encontro.  Ao vê-la, João disse: “Você é Gracinha, a menina que todo mundo em Salvador diz que canta bem?”, perguntou o cantor definitivo de Chega de Saudade. A menina assentiu. Ele perguntou se ela tinha violão. Quando disse que sim, ele mandou apanhar. Uma hora João disse: “Gracinha, cante Mangueira (Exaltação à Mangueira). Qual é o seu tom?”. Ela disse: “Lá”. Ele deu o tom e ela começou a cantar. João não falou nada. Para a menina de 12 anos, ele tinha odiado. “Cante outra, Gracinha”, determinou João. Ela cantou Tom Jobim e outras músicas que João Gilberto havia gravado. O cantor não dizia nada, só mandava a menina continuar a cantar. Uma hora ele parou e disse, do alto da certeza de seu ouvido absoluto: “Gracinha, você é a maior cantora do Brasil”. “Eu era uma menina, nunca tinha saído da Bahia. Já imaginou o que foi isso?”, revelou, em 2019, Maria da Graça Costa Penna Burgos, a Gracinha, que se tornou – se é que alguém ainda não sabe – Gal Costa, a cantora a quem qualquer adjetivo ou superlativo sempre parecerão

Gal – que morreu no último dia 9, aos 77 anos – era a principal voz feminina da MPB, principalmente depois da morte de Elis Regina, em 1982, talvez a única que pudesse ombrear com ela –, com o perdão de outras grandes artistas. Mas o nome dela, da voz, é Gal. A “voz cristalina” que embalou canções que passearam de clássicos da música brasileira até novidades que ganhavam tom e cor quando ela pegava o microfone. Caymmi, Tom, Ary Barroso, Vinicius, Cazuza, Marília Mendonça – sem falar nos “irmãos” e eternos cúmplices Caetano e Gil. Esses são só alguns. Gal gravou o que de melhor e mais importante a música popular brasileira produziu. E pensar que aquela menina obstinada aprendeu a cantar criança, treinando canto no banheiro de casa, com uma panela grande na qual sua mãe fazia feijoada. “Com o eco do banheiro e da panela, aprendi a usar o diafragma e segurar a respiração”, revelou ela na entrevista de 2019 para O Globo.

Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
O professor Celso Favaretto – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“Os discos Gal Costa e Gal, ambos de 1969, são fundamentais para demonstrar sua conquista de musicalidade, que integra a ruptura introduzida pelo Tropicalismo na música popular e elementos do rock”, atesta Celso Favaretto, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP) e autor de Alegoria, Alegria, livro determinante para se compreender o Tropicalismo. “Caetano Veloso dizia que Gal era ‘a estridência e o grito’ e esses elementos são muito marcantes nos dois primeiros discos dela. Mais tarde, em Cantar, de 1974, Gal abandona o grito e a estridência e dá lugar a interpretações pacíficas e melodiosas de músicas de colegas”, relembra Favaretto. 

Gal lançou cerca de 40 discos ao longo da carreira – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Flickr

Tropicalismo: invenções e reinvenções

Foram cerca de quatro dezenas de discos em uma carreira que começou lá atrás, no início dos anos 1960, quando ela se reunia com artistas iniciantes que faziam da Universidade Federal da Bahia, a UFBA, um lugar mais do que de ensino, mas de experimentação artística. Caetano fazia Filosofia. Gil, Administração. Só que todos tinham um violão nas mãos e uma ideia na cabeça – menos o estudante de Direito Glauber Rocha, que tinha uma câmera. Mas ali se forjou a noção de uma revolução. Não aquela que, com todas as aspas do mundo, engolfou o Brasil em uma noite que durou 21 anos a partir de 1964. O que quatro baianos – aí conte-se também Maria Bethânia, claro – fizeram foi reinventar (ou, talvez, inventar mesmo) uma outra cultura nacional. Eles trouxeram para dentro da música – e para fora dela, já que esse bicho revolucionário do bem tinha vários tentáculos – elementos os mais diversos, resgataram ideias, criaram outras, organizaram um movimento, um manifesto. O nome disso tudo? Tropicalismo. E Gal foi sua grande voz, sua grande intérprete, até sua bandeira, principalmente depois que Caetano e Gil tiveram que se exilar em Londres, em 1969. Como ela mesma revelou em uma entrevista a Pedro Bial, se ela não tivesse ficado no Brasil, cantando as músicas que Gil e Caetano mandavam da velha Albion, talvez a Tropicália tivesse morrido à míngua. Mas ela ficou – e cantou. E London, London – entre tantas outras – está aí para provar. “Ela tinha uma voz diferente, que foge do estilo que era tradicional para as cantoras brasileiras até a década de 1960. Ou seja, ela não tinha aquele estilo forte, emotivo, impositivo. Ela é um exemplo da alma do Tropicalismo, que trazia elementos novos sem abandonar os antigos, numa mistura heterogênea que abriu caminho para o futuro da música”, afirma Celso Favaretto, da FFLCH. Um futuro do qual, frise-se, Gal Costa – assim como Caetano e Gil – fez parte.

E o tropicalismo artístico engendrado por quatro baianos para trazer a geleia geral para o meio da discussão (cultural, social, política) vingou. E, de várias maneiras, está aí até hoje. Porque o Tropicalismo, se foi uma invenção que criou também uma nova visão sobre a cultura brasileira, soube se reinventar de várias formas – os próprios quatro baianos se transformaram nos anos 1970 em Doces Bárbaros e foram se reinventando ao longo de suas longas e prolíficas carreiras. Além do mais, eles proporcionaram outras invenções ou recriações artísticas – os Novos Baianos talvez sejam o melhor exemplo e síntese de tudo o que eles pregavam e propunham. Seus herdeiros diretos.

Gal Costa – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Flickr

Voz para embalar histórias

Entre tantas virtudes que já foram enumeradas nas várias matérias que choraram sua morte e evocaram sua arte, Gal Costa tinha uma que talvez seja a mais importante na carreira de qualquer artista: marcar, com sua voz e canções, momentos da vida de alguém. A jornalista e colunista Miriam Leitão, por exemplo, lembrou como cantarolar Assum preto quando estava presa pela ditadura, no começo dos anos 1970, ajudou-a a manter a sanidade e a tranquilidade. Não é pouca coisa. 

Carmina Juarez - Foto: Gil Grossi
A professora Carmina Juarez – Foto: Reprodução/Gil Grossi

“Quantas histórias de cada um de nós têm a Gal no meio? Ela entra nos ossos, na pele, na memória, nos sonhos”, afirma a cantora Carmina Juarez, ex-orientadora vocal no Coral da USP, o Coralusp, e professora de Música e Canto da Escola de Arte Dramática da USP (EAD-USP). Segundo ela, as experiências de vida de cada pessoa acabam por incorporar Gal Costa, com ela fazendo parte da trilha sonora da vida de cada um. “Quase todo mundo viveu coisas com as músicas da Gal”, acredita Carmina. “O canto da Gal é um canto de amor, mas, para além disso, é um canto cheio de ousadia, de desafio. É um canto que se impõe não somente pela emissão daquela voz cristalina, mas por toda sua gestualidade, por sua presença. Ela nos deixava em um estado de conexão.” 

Com entrevistas de Duda Ventura e Gustavo Xavier

Fonte: Jornal USP

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