Descoberta aponta caminhos para a busca de novas abordagens terapêuticas contra a doença
Por Luciana Constantino/Agência Fapesp – 17/07/2021
Pesquisadores conseguiram desvendar “as armas” usadas pelo protozoário Leishmania na célula humana para tornar mais grave a leishmaniose, principalmente a do tipo mucocutânea, que pode causar deformações nos pacientes. A descoberta aponta caminhos para a busca de novas abordagens terapêuticas contra a doença e também joga luz sobre um sistema que pode ter impacto no combate a outras enfermidades.
Esse mecanismo envolve Leishmania, macrófago (uma das primeiras células de defesa a entrar em ação durante uma infecção) e um vírus que vive dentro do parasita (endossimbiótico), conhecido como LRV. Estudo publicado na revista científica iScience aponta que o protozoário inibe a ativação de caspase-11, uma proteína que faz parte do sistema de defesa das células de mamíferos (inclusive a humana), por meio de autofagia estimulada pelo vírus. Ou seja, o LRV impede que a proteína “defensora” atue para bloquear o agravamento da doença.
Infecciosa e não contagiosa, a leishmaniose é considerada endêmica em algumas regiões do Brasil. O tipo mucocutâneo, provocado por espécies de Leishmania do Novo Mundo, como a L. guyanensis e a L. braziliensis, se caracteriza por feridas na pele, que chegam a atingir mucosas do nariz, boca e garganta. Em casos graves, pode destruir a cartilagem e provocar deformações. Estima-se que sejam registrados no país cerca de 20 mil casos por ano de leishmaniose tegumentar, que inclui cutânea e mucocutânea.
O estudo Endosymbiotic RNA virus inhibits Leishmania-induced caspase-11 activation, que mostra o bloqueio da caspase-11 por meio de autofagia, é parte do doutorado do pesquisador Renan V. H. de Carvalho, sob a orientação do professor Dario Zamboni, do Departamento de Biologia Celular e Molecular e Bioagentes Patogênicos, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
“Usando macrófagos e camundongos, descobrimos que o LRV inibe a ativação da caspase-11 por Leishmania, ampliando nosso entendimento sobre os mecanismos pelos quais o vírus promove a exacerbação da doença”, escrevem os pesquisadores no artigo.
Uma das inovações do trabalho – parte de uma série de outras pesquisas já publicadas pelo grupo – consistiu em mostrar a ligação da caspase-11 também com doenças parasitárias. Até então, acreditava-se que a enzima estaria envolvida essencialmente em doenças bacterianas.
Em 2019, outro artigo dos pesquisadores publicado na Nature Communications havia mostrado que os casos mais graves decorrentes da leishmaniose mucocutânea são provocados pelo protozoário infectado por LRV. Os dois trabalhos tiveram apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) foram realizados no âmbito do Centro de Pesquisas em Doenças Inflamatórias (CRID) da FMRP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da Fapesp.
Zamboni explica que quase todas as células imunes são equipadas com um complexo proteico chamado inflamassoma. Quando uma dessas proteínas que formam o complexo (como a caspase-11) identifica um sinal de perigo para o organismo, o sistema de defesa é acionado, dando início a uma resposta inflamatória.
“Já tínhamos demonstrado que o LRV [vírus endossimbiótico da Leishmania] exacerba a doença ao subverter a imunidade inata via inibição do inflamassoma mediado pela proteína NLRP3, um dos mais comuns e mais bem estudados. Agora mostramos que a autofagia bloqueia o inflamassoma via caspase-11”, conclui.
Para Carvalho, que atualmente é pesquisador do Laboratório de Dinâmica de Linfócitos da Universidade Rockefeller, em Nova York, “o artigo publicado na iScience consolida o entendimento de que a caspase-11 é de extrema importância na patogênese da leishmaniose”. Segundo ele, isso ainda não havia sido descrito.
Cenário
A leishmaniose mucocutânea é transmitida por insetos que se alimentam de sangue, os flebótomos, muito conhecidos no Brasil como “mosquito palha”. Por isso, a prevenção depende muito do combate ao mosquito, assim como acontece, por exemplo, com o Aedes aegypti em relação à dengue – ambas consideradas doenças tropicais negligenciadas (DTNs).
Estima-se que as DTNs afetam cerca de 1,5 bilhão de pessoas em mais de 150 países, principalmente em regiões com escassez de água potável, déficit de saneamento básico e de serviços de saúde. Por outro lado, o apoio financeiro em pesquisas básica e clínica para doenças negligenciadas equivale a menos de 2% dos recursos para a área.
Consequentemente, não há vacinas para algumas dessas doenças, além de parte dos tratamentos disponíveis ser reaproveitada de outras aplicações, podendo causar efeitos colaterais graves. Para tentar melhorar esse quadro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou, no início de fevereiro deste ano, o plano Acabando com a Negligência para Alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A meta é promover ações e programas até 2030 para combater 20 dessas doenças negligenciadas, entre elas a leishmaniose.
“Tudo o que mostramos com esse sistema envolvendo Leishmania, vírus e macrófago pode ter impacto para outras doenças. Daí a importância da ciência básica: entender a biologia para que, no futuro, sirva de base para desenvolver rapidamente novas terapias para doenças já existentes ou que venham a aparecer”, complementa Carvalho, em entrevista à Agência Fapesp.
O pesquisador cita o exemplo atual das vacinas contra a covid-19. “Um dos fatores-chave para termos vacinas de forma tão rápida foi o fato de haver muitos grupos de pesquisa em todo o mundo estudando a proteína spike em outros coronavírus, que até então não infectavam humanos. Foi essa pesquisa básica que ajudou a desenvolver em poucos meses uma vacina para o sars-cov-2.”
E é nessa ligação entre descobertas anteriores e avanço de novos estudos que se enquadra um projeto temático do qual Zamboni é pesquisador responsável, com apoio da Fapesp. Em seu escopo foi realizado o trabalho com Leishmania e, mais recentemente, outro envolvendo covid-19.
Nesse último, cujo resultado foi publicado no Journal of Experimental Medicine no fim de 2020, os pesquisadores demonstraram pela primeira vez que, em pacientes com covid-19, o inflamassoma participa da ativação do processo inflamatório que pode causar danos em diversos órgãos e até mesmo levar à morte.
Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.