Análise das “crises” fabricadas desde domingo. Dos hospitais do Rio, passou-se para a dengue. Não se debatem as políticas, nem se propõem alternativas. O objetivo é emparedar Nísia e o SUS, para reconstruir uma direita pós-Bolsonaro
As demissões do secretário de Atenção Especializada, Helvécio Magalhães, e do chefe da Diretoria Geral dos Hospitais Federais (DGH) do Rio de Janeiro, Alexandre Telles, após matéria do Fantástico deste último domingo, revelaram, mais que o estado atual de uma antiga crise nos hospitais federais daquele estado, antro de ilegalidades há anos. Sobretudo, deixaram claras as pesadas disputas que prenunciam mais este ano eleitoral.
As demissões são paradoxais, uma vez que ambos os dirigentes começavam a tomar as rédeas de um processo de compras e contratações na rede hospitalar, que atende pacientes de todo o país. Ao declarar intervenção na DGH, a fim de reforçar o poder do Ministério da Saúde, Nísia Trindade visava aprofundar esforço feito desde o início de sua gestão, como retratou o Outra Saúde em maio de 2023. Mas outros poderes mostraram suas forças, nos dias que se seguiram à decisão.
Interessante notar a mudança de tom entre a matéria de domingo no Fantástico, que sugeria uma atitude irresponsável ou mesmo corrupta de Helvécio, e a abordagem da mesma Rede Globo, apenas três dias depois. Em entrevista com o ex-ministro José Gomes Temporão na GloboNews, reconheceu-se que ambos os demitidos buscavam fechar feridas abertas há anos. No entanto, parte da imprensa aproveitou a deixa para tentar fabricar uma noção estendida de crise por todo o ministério da Saúde.
De Helvécio Magalhães, o alvo rapidamente se transferiu para Ethel Maciel, secretária de Vigilância Sanitária, que lidera a política de combate à dengue, além da vacinação. Coluna no UOL alegou que havia pressão para demiti-la também. Outras matérias especulativas alegam, sem quaisquer argumentos técnicos, “mal-estar” com suposta “incapacidade de liderança” e “habilidade política” de Nísia Trindade no ministério.
O expediente já se aplicara à ministra no ano passado, quando a mesma Globo mostrava-se subserviente aos movimentos do Centrão capitaneado por Arthur Lira e ventilava “crises”. Na época, os grupos mais fisiológicos do Congresso “protestavam” contra os critérios técnicos impostos pelo ministério à liberação de emendas parlamentares. Era uma reação ao fim da farra comandada por Arthur Lira, na segunda metade do mandato de Bolsonaro. A corrupção e os favorecimentos políticos regionais foram flagrantes, e impulsionam a reeleição de diversos parlamentares, num Congresso sem projeto de bem-estar social – seja na saúde, seja em outras dimensões.
Nesta quarta-feira (20/3), cientes da nova trama, o Ministério convocou coletiva de imprensa. Nísia e seus principais secretários atualizaram o quadro da epidemia de dengue no país. Ethel Maciel, o novo alvo, fez um detalhado panorama do avanço da dengue no país, dividida em semanas epidemiológicas, incluindo informações sobre a chicungunha, doença transmitida pelo mesmo vetor da dengue.
Anunciaram-se novidades. Um novo estoque de 600 mil vacinas estará disponível. Diante do negacionismo vacinal – a adesão ao imunizante contra a dengue é insatisfatória –, haverá redistribuição das doses entre os municípios. A orientação de privilegiar crianças de 10 a 14 anos segue mantida. O problema é que o grupo infanto-juvenil é a vítima preferencial do negacionismo.
De todo modo, como mostrou o Outra Saúde, em entrevista com o sanitarista Gonzalo Vecina, a vacina, até escassa quantidade de doses disponíveis, não poderá conter a epidemia deste ano. Será uma arma para os próximos, inclusive quando o Brasil concluir o desenvolvimento de seu próprio imunizante, gestado no Instituto Butantan. Para 2024, o especialista disse ser necessária muita “inteligência epidemiológica”.
Na ocasião, Vecina também destacou a responsabilidade dos municípios no combate ao aedes aegipti. E neste momento o maior deles, São Paulo, encontra-se sob greve de servidores públicos, entre os quais os Agentes de Combate a Endemias, responsáveis diretos pelo ataque ao mosquito. No entanto, neste caso não há análise crítica a respeito de crise. Para se ter ideia, o jornal Bom Dia SP, da TV Globo em sua edição de mais de duas horas desta quarta-feira, sequer menciona a greve dos agentes. E na matéria de 22 minutos sobre o apagão, os nomes de Ricardo Nunes e Tarcisio Gomes, prefeito e governador, bolsonaristas e entusiastas do Estado mínimo, sequer são mencionados.
Diante de tudo isso, cabe questionar: a quem servem os movimentos midiáticos? O que pode ser feito em favor da saúde pública brasileira, tanto na questão dos hospitais federais do Rio como no combate à dengue?
Como elucidou a sindicalista Lucia Pádua, em entrevista concedida a Outra Saúde esta semana, imagens de alas abandonadas e serviços precarizados, que culminaram com a morte de três pacientes em 2020, em incêndio no Hospital Federal de Bonsucesso não surgem por acaso. São consequência das políticas de Estado mínimo tão propaladas nos últimos anos e apoiadas por quem agora faz denúncias vazias de sentido estruturante.
“Estamos, sim, falando de uma política de desmonte que, na verdade, não começou no governo de Jair Bolsonaro. É uma política que se aprofundou em 2017 através de dispensas de contratados, esvaziamento das unidades, fechamento de leitos, clínicas e serviços. A rede federal há 12 anos não realiza concurso público, gera um déficit de mais de 10 mil trabalhadores de todas as profissões. Quanto à corrupção histórica, também pode-se identificar as digitais daqueles que sabotaram o SUS nos últimos anos. Em entrevista no final de 2022, nos estertores do governo Bolsonaro, Lucia denunciou: “(Os hospitais federais) são um espelho diminuído do Ministério da Saúde, hoje dominado por pessoas sem preparo técnico, negacionistas anticiência e militares corruptos. A corrupção é marca da gestão dos hospitais federais, como ficou demonstrado na CPI da Covid. É uma estrutura muito grande, que tem orçamento nominal muito alto”. Gilberto Scarazatti, ex-assessor da DGH, em matéria do Outra Saúde que abordava a nomeação de Alexandre Telles em maio passado, completou: “Essas disputas são herança patrimonialista do Estado brasileiro e, neste sentido, ainda atuam como reservas patrimoniais de corporações, da tradição médica carioca e das forças políticas que operam o patrimonialismo brasileiro”.
Tanto na epidemia de dengue como na questão dos hospitais federais, o direito à saúde e o avanço do SUS não estão entre as motivações principais da mídia. “Essa crise está sendo fabricada. O ministério e Nísia são vítimas de um reposicionamento das organizações Globo em relação ao governo Lula. (…) Eles não vão parar, pois o objetivo é promover uma aproximação política entre a falecida Terceira Via e a direitona orgulhosa de sê-lo. Sem Bolsonaro, algo pode cair no colo dessa ‘nova’ configuração. Telles e Helvécio foram bois de piranha. Essa receita é contra o Lula, que não pode ser tirado, mas ao menos fustigado nessa deriva à direita que a grande imprensa patrocina”, analisou Reinaldo Guimarães, médico, membro da Frente Pela Vida e ex-servidor do ministério.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil