“Moro é mais perigoso para a democracia do que Bolsonaro”, diz Greenwald

justiça

Por Sérgio Rodas – Domingo, 19 de dezembro de 2021

O ex-juiz Sergio Moro recentemente filiou-se ao Podemos e declarou ter a intenção de se candidatar a presidente nas eleições de 2022. Para o jornalista e advogado norte-americano Glenn Greenwald, que coordenou, no site The Intercept Brasil, a série de reportagens conhecida como vaza jato, Moro é mais perigoso para a democracia brasileira do que o presidente Jair Bolsonaro (PL). Isso porque, se eleito, o ex-juiz teria menos resistência do establishment do que Bolsonaro, o que lhe permitiria concretizar com mais eficácia os seus projetos, decorrentes de uma “mentalidade completamente autoritária”.

A vaza jato, que teve início em junho de 2019, revelou mensagens entre Moro e procuradores da operação “lava jato”, demonstrando que eles tinham uma proximidade indevida e burlaram as leis em diversos momentos para atingir determinados objetivos. Na visão de Greenwald, a série de reportagens criou o clima na sociedade que permitiu que o Supremo Tribunal Federal passasse a reverter decisões de Moro e do consórcio de Curitiba, levando à libertação do ex-presidente Lula (PT) e, posteriormente, à anulação de suas condenações e restabelecimento de seus direitos políticos.   

Segundo o jornalista, a “lava jato” foi a força mais poderosa no Brasil de 2014 a 2018. Nesse período, diz, Moro e procuradores da República — que não foram eleitos pela população — manipularam o processo democrático e o mundo político. O principal exemplo desse manuseio indevido do jogo político é a divulgação ilegal, por Moro, de conversas entre a então presidente Dilma Rousseff (PT) e Lula. Sem essa manobra ilícita, a presidente não teria sofrido impeachment, afirma Greenwald, citando análise do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).  

O jornalista também aponta que os EUA tinham interesse na “lava jato” e na quebra das empreiteiras brasileiras — tanto que estavam constantemente dialogando com procuradores, quase lhes dando ordens. E “Sergio Moro sempre estava bem preocupado com o que os EUA estavam pensando”, avalia.

Em entrevista à ConJur, Glenn Greenwald também criticou a atuação da imprensa brasileira na “lava jato”, alertou para os riscos da censura imposta por grandes empresas de tecnologia, como Google, Facebook e Twitter, e criticou a atuação do STF nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor, com Edward Snowden, revelou que a National Security Agency (NSA) vinha interceptando as comunicações da então presidente Dilma Rousseff e da Petrobras. Na opinião do senhor, esse foi o preâmbulo do petrolão, que se tornaria a “lava jato”?
Gleen Greenwald —
 A gente só pode fazer especulações sobre isso. Não existe evidência concreta que os EUA que começaram, impulsionaram a investigação da “lava jato”. Entrevistei a ex-presidente Dilma Rousseff — foi a primeira entrevista depois que o Senado aprovou a abertura do processo de impeachment dela — e perguntei exatamente isso, se acreditava que a Central Intelligence Agency (CIA), a NSA, o governo dos EUA teve um papel importante no impeachment. Ela disse que não: “Acredito que isso começou a partir de facções domésticas. Mas é muito difícil acontecerem coisas importantes no Brasil sem pelo menos a aprovação dos EUA”. Mas foi interessante que, durante o impeachment, alguns dos senadores mais importantes do PSDB e de outros partidos de direita, que estavam liderando o processo, estavam viajando frequentemente do Brasil para Washington, D.C., para encontrar pessoas cruciais do Departamento de Estado, do Departamento de Segurança e das Relações do Exteriores dos EUA.

Se me perguntassem, nos anos seguintes ao golpe de 1964, se os EUA tinham tido participação importante no evento, responderia que acreditava que sim, mas que não tinha provas. Porque essas provas não apareceram até 1969 ou 1975. Então é interessante que a NSA estava espionando Dilma e a Petrobras e é possível, obviamente, que isso pode ter tido um papel na “lava jato” e na investigação da corrupção na Petrobras.

Por outro lado, os EUA estavam espionando qualquer instituição que tinha poder, influência econômica. Não era só a Petrobras ou só Dilma. Então é difícil afirmar que esse foi o início da “lava jato”, mas obviamente ainda não existem provas conclusivas sobre essa questão.

ConJur — Há quem afirme que as empreiteiras brasileiras se tornaram alvo dos EUA por roubarem mercado de empresas norte-americanas na África e no Oriente Médio. A “lava jato” buscou quebrar essas companhias e abrir um mercado para os EUA ou isso é teoria da conspiração?
Glenn Greenwald —
 Não é teoria da conspiração. Tem muitas evidências concretas. As mensagens da vaza jato mostram que o tempo todo os procuradores da “lava jato” estavam trabalhando junto com os EUA, conspirando, planejando, recebendo quase ordens. Porque o governo norte-americano tinha muito interesse na corrupção da Petrobras. As mensagens deixam claro que a relação dos EUA com a força-tarefa brasileira era muito mais próxima do que as pessoas sabiam. E várias vezes as conversas eram sobre a questão do poder, como se pode transferir onde o poder estava para outros países e outros mercados. Não há dúvida alguma que as pessoas que participaram dessas conversas tinham outros objetivos, muito além da questão da corrupção no Brasil.

ConJur — Na visão do senhor, os procuradores do consórcio de Curitiba e o ex-juiz Sergio Moro tinham consciência desse interesse dos EUA? Ou eles só pensavam que era uma ajuda a mais na suposta luta contra a corrupção?
Glenn Greenwald —
 É difícil saber exatamente o que pessoas que estão pensando, quais são seus motivos. Geralmente são muito complexos, misturados. Mas fiquei meses lendo as conversas entre Moro e procuradores. Quando as pessoas falam no privado, a gente pode entender a verdade. E eu penso que Moro sempre estava bem preocupado com o que os EUA estavam pensando. A primeira coisa que ele fez depois que saiu do governo do Bolsonaro foi correr para onde? Para o lado dos EUA [ao ingressar na consultoria norte-americana Alvarez & Marsal]. Ele sempre tinha essa conexão com os EUA, na minha opinião, na forma clássica do complexo de vira-lata. Sempre dependendo da aprovação de Washington, sempre pensando que o que é importante é o que os EUA estão fazendo. Ele estava tentando copiar os métodos de lá. Tudo o que ele levou para o “pacote anticrime” foi baseado no modelo deles, com plea bargain, com tudo isso. O tempo todo Moro estava bem preocupado com a visão dos EUA sobre o trabalho dele.

ConJur — Há uma tendência a padronizar as leis anticorrupção no mundo, seguindo o modelo dos EUA. Mas esse modelo protege os interesses econômicos deles. O Brasil vem importando diversos mecanismos do modelo anticorrupção dos EUA, como a colaboração premiada. Essas medidas atendem os interesses brasileiros? Ou o Brasil está simplesmente copiando as medidas sem refletir sobre a realidade do país?
Glenn Greenwald —
 O argumento do combate à corrupção sempre foi usado pelo Departamento de Estado dos EUA para promover golpes e mudar governos. O golpe de 1964 foi justificado no Brasil e em veículos dos EUA, como The New York Times e Time, como uma luta contra a corrupção, apontando que o governo [João Goulart] era muito corrupto. O modelo anticorrupção dos EUA tem o objetivo de proteger a classe alta e transferir poder de setores democráticos para procuradores e o sistema judicial. Por exemplo, depois da crise financeira em 2008, nenhum executivo de Wall Street foi processado criminalmente pelo governo Obama, porque o democrata tinha boas relações, doou muito dinheiro para o partido.

Esses mecanismos, como o plea bargain, são usados para proteger pessoas quando elas são pegas cometendo atos graves de corrupção. Mas o sistema não quer prendê-las, então oferecem um acordo, um tipo de contra-ataque: “Você é culpado, mas não vai receber nenhuma punição. Vai ficar 60 dias em uma prisão mais confortável, depois tem todos os seus direitos”. É usado para proteger aqueles que eles querem proteger. Por outro lado, quando tem competição para o sistema econômico, eles podem usar esse mesmo sistema para punir e destruir qualquer pessoa, qualquer empresa que esteja competindo. Por exemplo, há pessoas querendo criar bitcoin, que são vistas como ameaças para o establishment.

O fato de Moro ser quase obsessivo com essa tentativa de copiar os sistemas dos EUA tem como objetivo transferir, concretizar o poder nas mãos de integrantes do Ministério Público e do Judiciário em vez do setor político, porque ele acredita que está protegendo o combate à corrupção.

ConJur — Moro e Deltan Dallagnol viraram, em certo momento, quase heróis nacionais. Já houve algo parecido nos EUA? Isso é possível no sistema norte-americano?
Glenn Greenwald —
 O único caso parecido que consigo lembrar é o de Robert Mueller. Em 2016, Donald Trump venceu a eleição para presidente dos EUA. O establishment ficou completamente abalado com isso, não sabia o que deveria fazer. Mueller, que tinha sido diretor do FBI, foi nomeado procurador especial para investigar se a Rússia havia interferido na eleição. E passaram a tratá-lo como um super-herói, um exemplo de ética, um homem que nunca faria nada de errado. Isso apesar do fato de que ele foi parte do governo George W. Bush, que criou mentiras para justificar a invasão do Iraque, e que ele depôs no Congresso afirmando ter evidências de que [o ex-presidente do Iraque] Saddam Hussein tinha armas nucleares e biológicas. Essa anomalia foi ignorada, e Mueller foi apontado como um herói, como a pessoa que iria salvar a democracia. Afinal, o povo havia tomado uma decisão errada ao votar em Trump. Exatamente como muitas pessoas no Brasil acreditavam que o povo brasileiro fez uma decisão errada quando reelegeu Dilma em 2014 e depois quiseram tentar cancelar a eleição usando um juiz que foi pintado como um super-herói na imagem criada pela mídia. Isso para mim é muito parecido com o que aconteceu nos EUA com o Robert Mueller, que foi “criado” e enviado para destruir Trump.

Tanto nos EUA como no Brasil, foram tentativas antidemocráticas, porque nem Moro nem Mueller foram eleitos. Mas o establishment queria que eles salvassem o país de uma decisão democrática. Isso é uma tática muito perigosa, usar as leis e a narrativa sobre corrupção para reverter o resultado de uma eleição e retirar o direito do povo de decidir quem devem ser os líderes do governo.

ConJur — Qual foi o impacto da “lava jato” para o Brasil?
Glenn Greenwald —
 A operação foi a força mais poderosa, mais importante, mais impactante no Brasil de 2014 a 2018. Em uma entrevista que concedeu à Jovem Pan em 2019, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ) lembrou que a ideia do impeachment de Dilma não era viável. Disse que isso se tornou não só uma possibilidade, mas uma probabilidade, quando Moro divulgou as conversas entre Dilma e Lula, de forma ilegal, conforme decisão do STF, para criar uma nuvem de escândalo em cima de Dilma, com Jornal Nacional, com tudo isso. Maia disse que, sem essa ação de Moro, o impeachment nunca aconteceria, que seria impossível imaginar que Lula ou Dilma sofreriam impeachment sem isso.

O tempo todo a “lava jato” estava manipulando o processo democrático e o mundo político. Esse processo foi liderado por um juiz e procuradores que nunca foram eleitos para nada. Um juiz de primeira instância, que nem passou por sabatina no Senado, como pelo menos acontece com os ministros do STF.

Moro e Dallagnol tinham o poder na mão para destruir a reputação de qualquer pessoa que eles quisessem, usando vazamentos. E sempre negavam veementemente que eram os responsáveis pelos vazamentos. Mas era óbvio que alguém estava vazando. E a Globo ficava o tempo todo gritando: “Tal pessoa é acusada de receber propina para outra pessoa na delação premiada de X”. Isso destruiu reputações. E, muitas vezes, a pessoa nunca foi processada. Até hoje, se você mencionar o nome do Rodrigo Maia, vão falar: “Ah, o Botafogo” [como ele supostamente era chamado em planilhas de corrupção da Odebrecht], brincando com o seu nome. Ele nunca foi processado por nenhum crime, mas sua reputação foi manchada por causa desse tipo de vazamento, que é ilegal.

Na vaza jato, conseguimos mostrar que Dallagnol estava vazando exatamente o que negava vazar com o objetivo de pressionar pessoas a delatar, de intimidar pessoas. A “lava jato” tinha esse poder. E é um poder muito perigoso. É um abuso, um crime vazar informações da investigação.

Então a “lava jato” estava controlando, manipulando o processo político. E todo mundo tinha medo de desafiá-la, mesmo o STF. Moro estava ultrapassando os limites de ética, os limites legais, mas o Supremo sabia que Moro estava popular demais. Ninguém conseguiu desafiá-lo. Conseguimos mostrar que a imagem de Moro era uma fraude. Três meses depois, o STF começou a tomar decisões contra Moro e libertou Lula da prisão. O ex-juiz usou essa imagem, esse poder absoluto que tinha para comandar a facção política mais poderosa do Brasil.

ConJur — A imprensa comprou demais o discurso da “lava jato”? Acredita que foi pouco crítica?
Glenn Greenwald —
 Há um vilão principal na história da “lava jato”, e é a mídia brasileira. Foi ela, principalmente a Globo, mas também VejaEstadão e Folha, que criou a imagem de herói de Moro. Foi uma violação do dever jornalístico de proibir qualquer político de não ser questionado. Isso é sempre errado para jornalistas, seja com Moro ou Lula. Quando o jornalismo cria uma parede de proteção a um político, e Moro era um oficial do Estado, é sempre uma violação da obrigação jornalística.

Quando fizemos parcerias jornalísticas na vaza jato com Veja e Folha, a revista semanal publicou uma carta aos leitores quase confessando que eles fizeram isso, mostrando seis ou sete capas da revista que mostraram Moro como um herói. Admitiram que erraram no sentido em que nunca questionaram o que o ex-juiz estava fazendo, e agora eles tinham na mão provas mostrando, nas palavras da Veja, que Moro cometeu crimes. A Folha publicou entrevista com [o diretor de Redação] Sérgio Dávila na qual ele admitiu que foi um erro enorme fazer o que fizeram, que muitas vezes o jornal botou na manchete principal: “Político X é acusado de receber propinas com vazamento da ‘lava jato'” e, não apareceram provas disso. A Folha nunca publicou uma manchete para falar: “Não tem nenhuma prova que esse político, cuja reputação nós destruímos, é culpado”. Ele disse que vai aprender, que todo mundo no mundo jornalístico brasileiro deveria aprender que não se pode fazer isso de novo.

ConJur — Qual foi o impacto da vaza jato nas recentes derrotas da “lava jato” nos tribunais, especialmente nas decisões que determinaram a libertação do ex-presidente Lula e a anulação de suas condenações?
Glenn Greenwald —
 É óbvio que teve um impacto enorme nas decisões. Quantas derrotas Lula sofreu no STF e outros tribunais antes da vaza jato? De repente, três meses depois de começamos a reportar a vaza jato, ele é solto. A decisão não foi baseada tecnicamente na questão de Moro ter feito coisas erradas, e sim impediu que alguém fosse preso após segunda instância. Mas foi o clima criado pela vaza jato, que deixou o STF com coragem para tomar essa decisão. Sem dúvida nenhuma, eles não conseguiriam tomar uma decisão dessas. Estavam sendo ameaçados por um militar [o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas], que disse que eles não deveriam soltar Lula mesmo se acreditassem que era a decisão certa. E de repente o clima mudou.

Mesmo os aliados jornalísticos de Moro passaram a falar que ele deveria renunciar [ao cargo de ministro da Justiça]. A Veja publicou um editorial acusando Moro de cometer crimes, o que é uma coisa incrível. O Estadão, que não era nosso parceiro jornalístico, também publicou um editorial falando que Dallagnol deveria ser demitido e Moro deveria renunciar ao cargo público até tudo ser esclarecido. Então, esse foi o clima que permitiu ao STF começar a desafiar Moro.

A decisão de que Moro era parcial, que anulou as condenações de Lula, restabelecendo seus direitos políticos, foi a conclusão desse processo. Mas o caso dele nunca deveria ter ficado com Moro, porque não era relacionado à Petrobras ou à “lava jato”. Deveria estar nos tribunais de São Paulo. No primeiro dia da vaza jato, publicamos três artigos. Um deles era sobre como Dallagnol sabia que as ligações que permitiam que o caso ficasse com Moro eram muito fracas, mas queriam fazer isso porque sabiam que o então juiz era muito favorável a condenar Lula. E Moro fez isso sem provas. O advogado do Lula estava afirmando havia três anos que o magistrado não tinha capacidade de julgar esse caso, e o STF estava rejeitando as alegações. De repente, dois anos depois da vaza jato, Fachin decidiu que ele tinha razão. Há pessoas que acreditam que Fachin fez isso para evitar uma decisão mais ampla sobre o fato de que Moro era parcial, o que aconteceu depois. Mas isso mostra como o clima mudou completamente depois da vaza jato.

ConJur — As mensagens reveladas pela vaza jato mostram uma proximidade indevida entre Moro e os procuradores. Em sua opinião, os brasileiros têm consciência da necessidade de preservação da imparcialidade do Ministério Público e do Judiciário e do respeito às formalidades e direitos dos acusados? Ou acreditam que vale tudo em uma suposta luta contra a corrupção?
Glenn Greenwald —
 Quando estava fazendo a reportagem do Snowden, sabia que a minha obrigação como jornalista não era só divulgar a informação, mas também explicar por que aquilo era importante. O jornalista tem a obrigação de explicar para o público por que eles deveriam se importar com essas revelações. Porque sabia que tinha muitas pessoas pensando: “Olha, eu não sou pedófilo, não sou bandido, então, por que eu deveria me importar se o governo está lendo meus e-mails?”. E minha obrigação era para explicar por que isso é tão perigoso.

Na vaza jato, explicar por que é errado um juiz colaborar com os promotores, mesmo se o resultado for justo, para punir corruptos, é uma questão que parece um pouco técnica, mas que tem grande importância para o sistema. Eu disse muitas vezes: “Imagine que você é acusado de crimes graves, que têm o potencial para mandar você para a prisão pelo resto da sua vida ou pelos próximos 20 anos. A única coisa que você vai querer nessa situação é saber que a pessoa que tem o poder de decidir se você é culpado ou não é imparcial. E se você soubesse, depois da condenação, que o juiz que decidiu que você é culpado e mandou você para a prisão por 10 ou 15 anos estava em segredo, nas sombras, o tempo todo conspirando com os promotores? Então, esquece o que você acha sobre Moro e Lula, se ele é corrupto ou não. A questão crucial para a sociedade é ter um processo justo. E o poder do juiz é  tão extremo — ele pode tirar sua liberdade, mandar executar a sua casa — que com esse poder vêm muitas responsabilidades e limites. O juiz tem que obedecer os limites para o poder ser válido”.

Então pode parecer uma tecnicalidade, mas na realidade é fundamental para o sistema funcionar de forma justa. Se você me perguntasse se acredito que o público entende isso agora, falaria que talvez não o público todo, mas tem muitas pesquisas que mostraram que a vaza jato teve um impacto na perspectiva do povo sobre Moro, sobre a “lava jato” e sobre Lula. O ex-presidente está liderando as pesquisas eleitorais por 20, 25 pontos. E em 2018, o antipetismo era muito alto. Isso mostra que muitas pessoas mudaram como pensam essas questões.

ConJur — Como avalia a candidatura de Moro a presidente?
Glenn Greenwald —
 Depois da vitória de Bolsonaro em 2018, disse que era quase impossível falar que um candidato não tem chance de ganhar. Se o atual presidente conseguiu ser eleito, quem não conseguiria? Então nunca falaria que Moro ou alguma outra pessoa não tem chance. Mas ele é um candidato muito fraco. O primeiro motivo é que nunca fez política. Não sabe como fazer campanhas. Não é nem um pouco carismático, não tem capacidade de se comunicar com o povo. Tudo o que políticos precisam para ter sucesso nas eleições, ele não tem.

O segundo aspecto é que ele é um candidato de classe média. É quase impossível ver a maioria do povo brasileiro, os pobres, as pessoas que estão sofrendo por causa da depravação econômica, da desigualdade, se conectando com Moro. Ele é o candidato do establishment, do setor financeiro, da Globo. Mas é muito difícil ver Moro inspirando a grande maioria dos brasileiros. Além disso, que espaço político Moro irá ocupar? Lula domina a esquerda, Bolsonaro, a direita. O centro-esquerda está sendo ocupado por Ciro Gomes, o centro-direita, por João Dória. Os bolsonaristas odeiam Moro pelo que ele fez quando saiu do governo. Obviamente a esquerda e a centro-esquerda consideram Moro uma figura completamente corrupta. Então, o espaço que ele pode ocupar é muito pequeno. O teto dele é 12%, talvez 15%, algo que nunca seria suficiente nem para chegar ao segundo turno.

ConJur — Como o senhor compara Moro a Bolsonaro, como candidatos e políticos em geral?
Glenn Greenwald —
 Não há muita diferença entre Moro e Bolsonaro. É óbvio que Moro estava apoiando Bolsonaro na eleição de 2018, não só no segundo turno, mas também no primeiro. Era o candidato de Moro, a mulher dele [Rosângela Moro] estava mais ou menos abertamente apoiando [Bolsonaro], o que não necessariamente significa que o então juiz também estava. Mas é muito improvável que a mulher de uma figura pública como Moro apoiaria Bolsonaro se o marido também não  o estivesse apoiando. Na questão da ideologia, ele estava bem confortável no governo nos primeiros 18 meses. Poucas vezes ele criticou o governo. Começou a ter alguma diferença na Covid-19, quando Moro começou a vazar que ele não estava aprovando como a epidemia estava sendo gerenciada. Mas isso não é uma questão de ideologia, é mais de competência. As diferenças de ideologia entre os dois são poucas.

Moro é um perigo mais grave para a democracia do que Bolsonaro. Não necessariamente porque é uma pessoa pior, mais autoritária. Mas tem uma mentalidade completamente autoritária. Seja porque acredita que deveria ter o poder absoluto, seja porque acredita que é uma pessoa tão nobre e tão ética que não precisa de limites em seu poder, seja porque os motivos dele sempre são completamente inquestionáveis. Bolsonaro é um presidente mais ou menos fraco, tem muita resistência de vários setores, da mídia, do Congresso, do povo, dos empresários. A única coisa que Bolsonaro conseguiu fazer até hoje foi proteger seus filhos de serem presos, que é a sua prioridade agora. Mas, das coisas que ele queria fazer, não conseguiu fazer nada. Se tornou um escravo do centrão, que agora está mandando em tudo. Por causa da resistência em setores do establishment ao comportamento de Bolsonaro, ele é uma vergonha para a elite. E isso Moro não seria. Ficaria quase sem resistência, só na esquerda, e poderia fazer muito mais do que Bolsonaro pôde fazer. A pessoa que mais prejudicou a democracia brasileira nos últimos cinco ou seis anos não é Bolsonaro, mas Sergio Moro. E a pessoa que é o maior perigo para a democracia brasileira agora não é Jair Bolsonaro, mas Sergio Moro.

ConJur — O senhor pediu demissão de The Intercept, site que ajudou a fundar, argumentando que houve censura do veículo a um texto com críticas ao então candidato democrata à Presidência dos EUA, Joe Biden. Como avalia a liberdade de imprensa nos EUA e no Brasil?
Glenn Greenwald —
 Estamos conversando no dia em que saiu a decisão do tribunal britânico aceitando o pedido da extradição de Julian Assange para os EUA. Ela foi baseada na teoria de que Assange cometeu um crime ao publicar, junto com grandes jornais, como The New York TimesThe Guardian e El País, documentos secretos e genuínos que mostraram crimes graves de parte do governo dos EUA, mas também do governo britânico e de seus aliados, e proteger sua fonte. Assange foi além do papel de jornalista. Não apenas recebeu os documentos relevantes e os publicou, mas protegeu a fonte. Em maio de 2019, eu publiquei um artigo no The Washington Post dizendo que esse processo que o governo Trump moveu contra Assange é muito grave e uma ameaça muito séria à liberdade da imprensa. O que eles estão alegando, acusando Assange de fazer com sua fonte, é a mesma coisa que jornalistas do mundo todo fazem todos os dias com as suas fontes. O jornalista nunca recebe documentos de forma passiva. Sempre encoraja sua fonte para lhe dar mais informações. O jornalista tem não só o direito, mas o dever de proteger suas fontes. Ironicamente, em maio de 2019, quando publiquei esse artigo, foi o mesmo mês que eu comecei a trabalhar com a minha fonte da vaza jato. Oito meses depois, o Ministério Público e procuradores aliados de Moro processaram não só as seis fontes, mas também tentaram me processar criminalmente usando a mesma teoria que os EUA estava usando contra Assange — que eu não recebi passivamente os documentos da minha fonte, mas tentei ajudar a minha fonte a evitar ser presa. E, quando fiz isso, me tornei parte da conspiração criminal, por causa disso, todos os crimes que eles cometeram podem ser atribuídos a mim também. Essa teoria, que está ganhando força em muitos países, é uma ameaça muito grave para o jornalismo. Se o governo dos EUA criminalizar esse modelo, estará criminalizando o jornalismo investigativo. E o fato de que eu fui protegido pelo STF não significa que esse risco não é muito elevado.

Outro risco à liberdade de imprensa é o papel das grandes empresas de tecnologia. O fato é que todos nós estamos dependendo agora do Twitter, do Facebook, do Google, do YouTube para disseminar nossas reportagens. Ao mesmo tempo, essas empresas estão censurando com muito mais agressividade, deixando o jornalismo muito restrito. Não conseguimos ultrapassar os limites ao jornalismo impostos não por governos democráticos, mas por empresas, que não são eleitas democraticamente. É uma ameaça muito grande.

ConJur — As redes sociais bloquearam Trump. Medidas semelhantes foram tomadas no Brasil. Bolsonaro chegou a ter publicações suspensas sob a alegação de falsidade de informações sobre a Covid-19. Tais bloqueios são medidas legítimas para combater a desinformação ou violam a liberdade de expressão?
Glenn Greenwald —
 É assustador que, nos EUA, a centro-esquerda e partes da esquerda aplaudiram Facebook, Google e Twitter por proibir Trump de usar as redes sociais. No Brasil, grande parte da esquerda apoia e aplaude as grandes empresas do Silicon Valley quando proíbem Bolsonaro de se manifestar em nome de combater a desinformação.

A esquerda brasileira tem que entender que, nos EUA, Twitter e Facebook proibiram Trump de usar as plataformas quando ele foi presidente eleito do país mais poderoso do mundo. Os censores não eram pessoas de direita. Quem foi contra isso foi o presidente da França [Emmanuel Macron], o presidente do México [López Obrador], que obviamente não são amigos de Trump, muito pelo contrário, mas já entenderam que, se o discurso político está sendo policiado, controlado ou limitado por essas grandes empresas que não podemos controlar democraticamente, elas vão ter poder mais do que governos eleitos, do que países democráticos. Mesmo um presidente eleito, como Trump e Bolsonaro, pode ser silenciado pelas empresas. É um perigo muito grande.

Em que instituições confiamos para decidir o que é verdadeiro e o que é falso? Obviamente é preciso ouvir especialistas em epidemiologia e ciência na questão da Covid-19, especialistas em eleições para saber se uma eleição sofreu fraude. Mas essas grandes empresas não podem proibir dissidências. Tudo precisa ser questionado. E qualquer pessoa que aplaude um regime de censura é um autoritário perigoso.

ConJur — Como avalia os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, conduzidos pelo STF? Nessas investigações, a corte mandou prender, por exemplo, o deputado Daniel Silveira, o blogueiro Allan dos Santos e o caminhoneiro Zé Trovão. Em todos os casos, as ordens de prisão foram expedidas com base em declarações ofensivas ou ameaças às instituições e a integrantes do tribunal.
Glenn Greenwald —
 Os alvos dessas investigações são as pessoas que eu mais odeio no mundo. Processei [o blogueiro bolsonarista] Oswaldo Eustáquio quando ele mentiu sobre a minha mãe, negando que ela tinha câncer terminal — três meses depois ela faleceu. Isso provocou muitos ataques contra minha mãe nas redes sociais dela, quando estava morrendo de câncer. Ele é um lixo. Acusou eu e David [Miranda, deputado federal pelo Psol-RJ e marido de Greenwald] de molestarmos nossos filhos, abusarmos deles sexualmente. Não tem uma pessoa que eu odeie mais do que Eustáquio. Allan dos Santos mentiu sobre nós muitas vezes, espalhando e publicando fake news. Daniel Silveira é um psicopata. Quando fui depor no Congresso sobre a vaza jato, ele sentou a uns 15 metros de distância de mim e ficou me olhando com esse rosto de violência, de ódio, de que queria me matar. Se conseguisse me matar na época, me mataria, sem dúvida nenhuma.

Essas três figuras são alvo dos processos do STF. Apesar de serem as pessoas que eu mais odeio no mundo, temos que avaliar os processos da perspectiva do precedente que está sendo criado. Se Silveira cometeu crimes, eles deveriam processá-lo, levar o caso para o tribunal, apresentar provas, mostrando que é culpado, garantir os direitos que a Constituição lhe atribui e lhe conferir um processo justo para decidir se é culpado. Se for, deverá ser punido como qualquer um.

O STF não está fazendo isso. Onde está o processo de Daniel Silveira? Onde as provas estão sendo apresentadas por Alexandre de Moraes e outras pessoas? Alexandre é vítima dos crimes, porque o estão atacando e ameaçando. É a polícia, investigando os crimes, e é o juiz, mandando a polícia fazer busca e apreensão e condenando-os sem julgamento. Isso é obviamente perigoso. Imagine que um ministro do STF — agora tem dois indicados por Jair Bolsonaro [Nunes Marques e André Mendonça] — decida copiar esses processos para perseguir blogueiros da esquerda, como os do Brasil 247, do Diário do Centro do Mundo ou qualquer outro financiado pelo PT e depois ordene a prisão de um deputado do PT e do pessoal do PCdoB, passando a perseguir ativistas de esquerda? Não é difícil entender por que isso é tão perigoso. O foro privilegiado foi criado exatamente porque a ditadura militar estava fazendo isso o tempo todo. Quando tinha um deputado que fosse um pouco contra o regime, o tiravam do cargo e o prendiam, sem julgamento. Isso é um poder perigoso. Se a pergunta fosse se Oswaldo Eustáquio, se Daniel Silveira, se Allan dos Santos deveriam ser presos, eu diria que talvez. Mas, para isso, é preciso ter um processo, com direitos, com provas, com proteções que todos eles deveriam ter antes de ser presos. E isso não está acontecendo. Estão criando um precedente muito perigoso.

Fonte: Conjur

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *