Música para ser lida, filosofia para ser ouvida

cultura

Lançado pela Editora da USP, livro do professor e músico Henry Burnett reúne artigos, resenhas e ensaios que tratam de música e filosofia

A impressão que se tem ao ler Música Só: Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasil é a de acompanhar um livro pensado como um LP. Cada artigo surge como um faixa independente, mas que se integra ao conceito maior da obra. Pode-se abrir o volume em qualquer parte e apreciar por si mesmo uma resenha, uma discussão teórica ou algum apontamento de caráter mais pessoal. Passar em revista toda a edição, entretanto, é como ouvir um álbum conceitual dos anos 1960 ou 1970.

Henry Burnett, cantor, compositor e professor do Departamento de Filosofia da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), reuniu em Música Só textos escritos em um período de mais ou menos dez anos e publicados originalmente em revistas acadêmicas e sites. Em comum, falam de música sob a perspectiva do filósofo, sem deixar, contudo, de apresentar o músico fazendo filosofia.

Duas seções organizam o volume, como os lados A e B de um disco. Na primeira, batizada Música Séria, Burnett traz textos densos que discutem sobretudo Richard Wagner, Friedrich Nietzsche e Theodor Adorno. A segunda parte, Música Ligeira, abriga escritos variados sobre música popular, em geral mais leves, incluindo ensaios e críticas. A divisão adota como títulos, com ironia, a classificação usada por Adorno para distinguir a música sinfônica da música popular. Como uma espécie de faixas bônus, a sessão Excursos reúne ainda uma resenha, a transcrição de uma aula magna e um ensaio.

Homem calvo, de óculos, fumando.

As relações do escritor modernista Mário de Andrade com a Alemanha é tema de um dos artigos publicados em Música Só – Foto: Divulgação/Edusp

O livro abre com Mário de Andrade e a Alemanha: Aproximações, em que Burnett desenvolve considerações sobre o interesse de Mário de Andrade pela cultura alemã, em especial pela música. A discussão ganha curiosidade a mais por conta de um texto publicado pelo modernista no jornal O Estado de S. Paulo em 31 de dezembro de 1939.

Em Teutos mas Músicos, a contribuição para o periódico, Mário defende a permanência da cultura alemã na Região Sul do Brasil, diante de um contexto de nacionalismo que tencionava eliminar os traços estrangeiros. Na época do artigo, a Alemanha nazista já havia iniciado a Segunda Guerra Mundial, o que torna essa defesa ainda mais interessante. Para Mário, a música alemã não deveria ser confundida com as ações totalitárias do Reich e, além disso, o trabalho dos imigrantes e seus descendentes em solo tropical poderia ajudar a própria música brasileira a se libertar da influência francesa que ainda se fazia forte por aqui.

Com Nietzsche, Adorno e o Wagnerismo, é a vez de Burnett tentar compreender como Theodor Adorno analisou a figura de Richard Wagner no contexto cultural do século 20. Nessa empreitada, o autor avalia quanto da análise do frankfurtiano passa pela crítica que Friedrich Nietzsche fez da obra do compositor. Não se trata de um estudo comparativo, avisa Burnett, mas da busca por mostrar como Adorno manteve ou rejeitou as proposições de Nietzsche.

“Embora Adorno tenha, aparentemente, rejeitado sustentar uma crítica baseada em análises sobre materiais progressistas e regressivos, o que fica mais evidente é que ele nunca definiu uma posição única em relação ao legado de Wagner”, escreve o autor. “Isso se aplica, da mesma forma, a Nietzsche. Há uma tensão horizontal ao longo de toda a obra que ora engrandece, ora minimiza o papel e a extensão dos dois autores.”

As controversas relações de Wagner com o nazismo são enfrentadas por Burnett em O Protofascismo do Wagner, por Theodor Adorno. No artigo, o professor analisa uma resenha produzida por Adorno a respeito do quarto volume da biografia de Wagner escrita por Ernest Newman. Publicada em 1947 na revista estadunidense Kenyon Review, intitula-se Wagner, Nietzsche e Hitler.

“Muito se discute sobre o antissemitismo de Wagner, e sempre com um misto de tolerância e repulsa”, escreve Burnett. “A primeira, baseada na importância incontestável da obra musical, defende seu legado acima de qualquer comprometimento, e a segunda, que não isenta Wagner do vínculo funesto com a política alemã, que lhe serve de guia e que lhe acolherá ulteriormente como uma espécie de trilha sonora oficial.”

Segundo Burnett, Adorno se valeu dessa resenha para falar sobre o que considerava estar na base da construção nazista. E, se o sociólogo nega as supostas relações do nazismo com Nietzsche, assume postura diferente quando pensa Wagner, apresentado como uma espécie de mentor do nacional-socialismo não apenas no aspecto estético, mas por seu próprio comportamento, no qual disposições à traição e à constante sensação de conspiração prenunciam o modo de ser nazista.

Discos antigos amontoados.

A era do streaming também é analisada no livro Música Só – Foto: Mathias Groeneveld/Pexels

A seção Música Ligeira, por sua vez, começa com A Era do Streaming, trazendo reflexões sobre as mudanças na maneira de se ouvir música provocadas pelas transformações tecnológicas dos séculos 20 e 21. Burnett mobiliza Beatles, João Gilberto, Dorival Caymmi, Miles Davis e John Coltrane para pensar o que mudou desde os discos de 78 rpm – com uma música de cada lado – até o streaming e sua possibilidade quase infinita de músicas e listas de reprodução.

“Ouvir não é, ou seria melhor dizer ‘não deveria ser’, uma ação cumulativa, mas seletiva”, escreve o autor. “Ouvir não é registrar apenas um número cada vez maior de canções na memória, mas saber ouvi-las em sua singularidade.” Burnett aponta para a importância de uma audição mais atenta, mais dedicada e menos passageira. “A audição concentrada é um resquício de um passado perdido como experiência e só como antídoto contra a fugacidade pode ser compreendida e reivindicada nos dias de hoje por ouvintes singulares, como ato solitário idêntico ao dos resistentes leitores de poesia.”

Já O Lugar de Gilberto Gil apresenta uma resenha apaixonada a respeito do músico baiano, uno e múltiplo, nas palavras de Burnett, capaz de cantar o mundo “a partir de sua concha”, dando conta de toda a “humanidade e suas contradições”. Como registra o autor, “Gil atingiu o lugar estranho do mito, muitos gostam de dizer que se tornou uma entidade viva”.

Outro artista apresentado com carinho e devoção por Burnett é Roberto Carlos. Em um texto produzido por ocasião dos 50 anos de carreira do “Rei”, o professor identifica três grandes fases em seu trabalho – o rock, o romantismo e a religiosidade –, alicerçadas também em um tripé: respectivamente, instinto, desejo e fé.

Para Burnett, a obra musical de Roberto Carlos se confunde com a vida do povo brasileiro e, a respeito de sua faceta religiosa, sublinha que ela vem ao encontro do “mais básico, comezinho e ao mesmo tempo amplo e identificador do ser do Brasil: a fé do povo”.

Com João Gilberto e o Japão, Burnett compõe uma homenagem ao cantor e violonista motivada por sua morte, em 2019. O autor não deixa de associar a morte de João com a ascensão da extrema direita, coroada com a vitória de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018. Dois projetos de país em oposição, identifica Burnett: João foi embora justamente quando um outro Brasil, contrário ao que representou, se erguia.

O autor escreve sobre o conhecido caráter perfeccionista e introvertido de João Gilberto, justificando-o diante dos comentários depreciativos que o classificaram muitas vezes como chato ou rabugento por conta de suas exigências aos contratantes, produtores e casas de espetáculos. Para isso, fala sobre o violão usado pelo artista durante boa parte de sua vida, seu técnico de som predileto, seu modelo de microfone ideal e seu show no Japão transformado em blu-ray, um de seus últimos e mais belos registros.

“A sensação é que João escolheu o Japão para se despedir porque encontrara na terra distante não apenas o respeito que nunca recebeu aqui, mas sobretudo porque seu projeto estético se realizava finalmente com tudo o que ele cultivou ao longo da vida”, escreve Burnett. “Se o silêncio de João nunca foi compreendido em seu país, é porque estamos longe de qualquer contenção, de qualquer possibilidade de ouvir de modo integral, como nossos irmãos japoneses.”

Homem com barba por fazer.

O cantor, compositor e professor de Filosofia Henry Burnett – Foto: Reprodução/Edusp

Burnett escreve motivado a chamar a atenção para essa audição integral. Tenta com palavras impressas no papel despertar ouvidos cada vez menos sensíveis para a importância da música na experiência humana. Se uma mirada desatenta pode dar impressão de uma coletânea de textos desconexos, uma “leitura integral” torna compreensível o título aparentemente acanhado da obra. O sentido é de um encontro sem atravessadores. Um apelo para não tornar a música mais um estímulo entre outros do cotidiano desenfreado, mas, ao contrário, reservarmos um tempo para a música. E só.

Música Só: Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasilde Henry Burnett, Editora da USP (Edusp), 344 páginas, R$ 84,00.

Capa de livro com desenho abstrato.

Capa do livro Música Só, de Henry Burnett – Foto: Reprodução/Edusp


Fonte: Jornal da USP / Arte sobre capa: Reprodução/Edusp

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