Sábado, 02/09/2023 – 17h00
Por Patrícia Campos Mello | Folhapress
No fim da manhã de 8 de janeiro, a advogada Estela Aranha começou a ficar nervosa com o que via no Twitter. Postagens conclamando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro a contestar a eleição e invadir Brasília se alastravam pela plataforma.
Estela, que ainda não tinha sido nomeada oficialmente assessora especial de direitos digitais do Ministério da Justiça, mandou uma mensagem sobre a proliferação de tuítes golpistas para um contato seu no Twitter —desde que o bilionário Elon Musk assumira o controle da empresa, boa parte dos funcionários no Brasil fora demitida e tudo estava desorganizado.
“Bom dia! O Twitter não está fazendo moderação de conteúdo. Esse tipo de conteúdo claramente ilegal está infestando as redes. Tem com quem falarmos com urgência por aqui?”, escreveu ela.
Junto com a mensagem, ela enviou um dos tuítes, que dizia: “O exército bloqueou a entrada de ônibus e carros no QG de Brasília. Os Patriotas foram lá e acabaram com o bloqueio. Agora é guerra. Vamos ocupar o Palácio do Planalto o STF e o Congresso! Intervenção militar!”.
No vídeo que acompanhava a postagem, feita às 11h12 de 8 de janeiro, um homem dizia: “Abrimos o cordão de isolamento… Tá passando todo mundo… Vamos entrar e tomar o que é nosso… Já chega… Vamo pra guerra, porra”.
O interlocutor de Estela no Twitter não parecia convencido da gravidade do tuíte.
“A remoção se daria porque estaria incentivando a intervenção?”, perguntou o executivo, que não quer ser identificado discutindo assuntos internos da empresa.
“Viu o áudio? Invasão dos Poderes à força… Guerra, vamos entrar e tomar o que é nosso… Tomar o poder”, respondeu advogada.
“Sim, sim… Quer que eu escale (reporte para superior na hierarquia)? Porque esse tipo de conteúdo só é analisado com detalhe se denunciado… E confesso que acho difícil removerem…”
Estela explicou que já havia feito várias denúncias de conteúdos, mas que era necessário algo mais eficiente. Ela manifestou preocupação com a escalada das ameaças e a falta de ação da plataforma.
“Tem que ser política da plataforma… Como foi no Capitólio [em referência à invasão do Congresso nos EUA em 6 de janeiro de 2021 por apoiadores do ex-presidente Donald Trump que queriam reverter o resultado da eleição presidencial que dera vitória ao democrata Joe Biden]… Não é uma questão de denúncia individual”, ela explicou.
“Isso era o Twitter antigo… O novo tem um pensamento diferente…”, respondeu o executivo.
Yoel Roth, que foi chefe da divisão de trust and safety do Twitter até novembro de 2022, afirmou em entrevista em junho deste ano que havia alertado Musk para o risco de violência nas eleições do Brasil.
“Olhando para o que aprendemos ao longo dos anos sobre segurança eleitoral e a possibilidade de violência ser estimulada pelas redes sociais, eu me preocupei com o cenário eleitoral no Brasil, com o segundo turno, com o que aconteceria se as pessoas convocassem protestos, dado o uso que [o então presidente] Bolsonaro fazia do Twitter e de outras redes sociais para atacar a corte eleitoral. E tudo isso estava acontecendo enquanto Elon Musk comprava a empresa”, disse Roth.
Ele disse que, na primeira conversa que teve com Musk, o novo dono do Twitter demonstrou entender alguns desses desafios.
“[Musk] disse que não queria que o Twitter fosse uma causa de violência no Brasil, o que me pegou de surpresa. Isso destacou a relação realmente ambivalente que ele parece ter em relação a desinformação e segurança de forma geral.”
Apesar de demonstrar preocupação com o pleito no Brasil, essa não foi a posição de Musk quando ele apareceu de surpresa em uma reunião por Zoom com integrantes do governo brasileiro, em 12 de janeiro.
Depois da quebradeira do dia 8, integrantes da Secom e do Ministério da Justiça marcaram reuniões com representantes das principais plataformas —Twitter, Meta (Instagram, Facebook e WhatsApp), TikTok e Google (YouTube).
Também tentaram entrar em contato com o Telegram, onde se deu a maior parte da organização dos protestos. Funcionários do governo enviaram mensagem para o advogado cujo escritório representava o aplicativo na época —mas não tiveram resposta.
A conversa com os representantes do Twitter estava marcada para sexta-feira, 12 de janeiro, às 14h30. Cerca de meia hora antes, Hugo Rodriguez, chefe de assuntos governamentais do Twitter, ligou avisando: “Elon vai participar”.
Os brasileiros saíram correndo para achar no Palácio do Planalto uma sala um pouco mais arrumadinha, sem pintura descascando, para fazer a reunião com o homem mais rico do mundo.
Musk apareceu no vídeo de camiseta, sorrindo, segurando uma caneca com o logotipo da SpaceX. Ele se apresentou como “um entusiasta empreendedor da tecnologia” e dono do Twitter e SpaceX. Havia outros três funcionários do Twitter na chamada, entre eles Rodriguez.
Do lado brasileiro, João Brant, que depois foi nomeado secretário de políticas digitais da Secom, Samara Castro, futura diretora do Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão, Estela Aranha, Frederico Assis, futuro assessor especial na Presidência da República, e mais duas pessoas.
Brant começou dizendo a Elon Musk que o perigo não havia passado, ainda havia risco de golpe, e que o Twitter precisava aplicar suas próprias políticas.
Havia casos em que postagens violavam a regra que proíbe “incitar conduta ilegal para impedir a implementação de resultados das eleições” e mesmo assim não foi tomada uma atitude. Ele leu a regra para o bilionário.
Musk disse estar feliz porque a situação no país já estava sob controle, afirmou que a democracia brasileira era sólida e o Brasil era muito importante para a empresa.
O lado brasileiro ressaltou que a tentativa de golpe tinha sido muito grave e ainda havia preocupações com o que vinha pela frente. Disse que o Twitter não estava aplicando suas próprias regras.
Ao que Musk teria ressaltado “a importância de defender a liberdade de expressão” e de examinar o “contexto” das publicações. Ele disse que a empresa continuaria a seguir a lei, ainda que houvesse excessos nas decisões judiciais de um determinado juiz.
Os brasileiros entenderam que o bilionário se referia ao ministro do STF Alexandre de Moraes e suas determinações de remoção de conteúdo e bloqueio de contas.
No final, depois de quase uma hora, Musk foi solícito e passou seu email pessoal para os brasileiros, dizendo para entrarem em contato quando acontecesse alguma coisa grave. Mas não se comprometeu a agir contra postagens incitando golpe de Estado.
No dia 8 de janeiro, o “juiz” Alexandre de Moraes estava de férias em Paris, com a esposa, quando ficou sabendo dos ataques em Brasília por meio de seu filho. Moraes antecipou sua passagem aérea para voltar ao Brasil no dia seguinte.
No domingo, ainda na Europa, ficou até as 4h30 escrevendo uma decisão que, além de afastar o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, continha várias imposições às plataformas.
Ele determinou que Facebook, TikTok e Twitter teriam duas horas para bloquear uma série de canais, perfis e contas e preservar o conteúdo deles, sob pena de multa diária de R$ 100 mil.
A interlocutores Moraes afirmou que as plataformas estavam sendo instrumentalizadas e deixaram-se usar pelos golpistas para organização de ônibus, financiamento e incitação à depredação.
Na visão de Moraes, as empresas se omitiram, agiram com negligência e imprudência. Ao determinar a remoção de contas e perfis, seu objetivo era impedir que mais gente se organizasse pelas redes sociais e aplicativos de mensagens para ir a Brasília e avançasse com a tentativa de golpe.
A postagem denunciada em 8 de janeiro por Estela Aranha, cujo teor chamava as pessoas para a “guerra” e conclamava para invadir os prédios públicos, violava claramente as próprias regras da plataforma.
“Não se pode ameaçar, incitar, glorificar ou expressar desejo de violência ou de fazer danos. Não se pode incitar, promover ou encorajar outros a cometer atos de violência ou causar danos”, dizem as políticas do Twitter.
Mesmo assim, e apesar das promessas de Musk, nada foi feito. O tuíte —e o vídeo— estão disponíveis até hoje no Twitter (rebatizado de X), sete meses após uma multidão invadir o Congresso, o STF e o Planalto, vandalizar as instalações e causar ao menos R$ 20 milhões em prejuízo.
Nenhum funcionário brasileiro presente naquela reunião enviou email a Musk. Cogitaram fazer isso quando a plataforma foi inundada por conteúdo incitando violência nas escolas em abril deste ano e se recusou a agir. Mas desistiram.
A reportagem procurou a assessoria de imprensa do Twitter e recebeu a resposta: “Responderemos a você em breve”. Mas não houve retorno.
Fonte: Bahia Noticias