‘Mussum, o filmis’, ri do racismo que marcou ascensão do humor na TV

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Chega ao público cinebiografia de Mussum, maior protagonista negro do humor do século 20, ao lado de Grande Otelo

Antonio Carlos Bernardes Gomes sonhava ser jogador de futebol e vestir a 10 do Flamengo. Mas descobriu precocemente que era “ruim pra cacildis”. E que seu negócio era o samba. Assim, é sintomático que Mussum, o Filmis comece com uma pelada num terreno baldio do Morro da Cachoeirinha, na zona norte do Rio. 

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Carlinhos, como ainda era conhecido, corre para buscar a bola espirrada para o terreno vizinho, sobe no muro e dá de cara com uma roda de samba. Então, fica hipnotizado e esquece da bola, até ser despertado pela mãe, dona Malvina, que o puxa de volta para o chão. Quer o filho longe dali, porque samba e cachaça não dão futuro a ninguém.

Mussum, o Filmis tem estreia nacional no próximo 2 de novembro, aliás, mês da Consciência Negra. Mas já carrega expectativa depois de causar encantamento nos festivais de cinema do Rio e de Gramado. No evento no Sul, por exemplo, a cinebiografia do artista negro mais consagrado do país no século 20, ao lado de Grande Otelo, levantou seis Kikitos. 

Além de melhor filme, estreia de Silvio Guindane na direção, o longa-metragem consagrou Ailton Graça, aos 59 anos, como melhor ator logo em sua estreia como protagonista. Conferiu também o Kikito de melhor ator coadjuvante a Yuri Marçal, pelo papel do jovem Mussum em sua passagem pela Aeronáutica e seus primeiros passos como Carlinhos do Reco-Reco no grupo Os Modernos do Samba. O ator-mirim Thawan Lucas Bandeira é o Antonio Carlos ainda moleque.

O “pretagonismo” de Ailton Graça

“Este filme é a realização de um projeto de vida. É o primeiro ‘pretagonista’ que eu faço, e, dentro do meu histórico como artista, sempre quis homenagear o Mussum, fosse no teatro ou em qualquer lugar. Fiquei muito feliz construindo esse personagem para o cinema”, disse Ailton Graça.

Graça iniciou vida artística nos anos 1980 e na década seguinte começou a brilhar em filmes (Carandiru, Bróder, Meu Tio Matou um Cara), novelas (Avenida Brasil, Império, Travessia) e no teatro (Macunaíma, A Hora e a Vez de Augusto Matraga). Depois do golpe de 2016, foi um dos artistas mais engajados nos movimentos de resistência e de defesa da democracia.

Além de Ailton Graça e Marçal, a veterana Neusa Borges levou prêmio de atriz coadjuvante no papel de dona Malvina na última fase do artista. O termo coadjuvante, porém, não fica bem no papel exuberante desempenhado por Neusa Borges. Dona Malvina Bernardes Gomes, vivida em seus primeiros anos pela também impecável Cacau Protásio, é a principal referência da vida de Mussum.

Com ela, o sambista e comediante teve de ralar para não sair do prumo. Iniciou tardiamente os estudos – por falta de condições da mãe de levá-lo à escola. Nascido em 1941, só terminou o antigo primário aos 13 anos, mas na condição de melhor da turma na Fundação Abrigo Cristo Redentor. Só voltava para casa aos finais de semana, tempo em que ainda fazia as lições e ensinava a mãe a ler e escrever. “Burro preto tem um monte, mas preto burro não dá”, repetiria ela, ao longo da vida. Comovente a cena em que ela escreve o próprio nome pela primeira vez, com o sonho de poder assiná-lo.

Reconstituição de um enredo

O diretor Silvio Guindane conduz com zelo esse elenco estelar. Vale o ingresso ver Flávio Bauraqui interpretando Cartola. A estreia de Guindane na direção, depois de três décadas atuando como ator – começou aos 13 anos, em Como Nascem os Anjos –, é desafiadora. Afinal, não é fácil expor atores contemporâneos na pele de figuras icônicas da televisão e da indústria do entretenimento com suas feições e trejeitos cristalizados no imaginário popular.

Grande Otelo é o responsável por transformar Antonio Carlos em Mussum. Chico Anísio, o idealizador dos sufixos terminados em “is”, eternizados pelo palhaço negro que era chegado num “mésis”. Todos os personagens que compuseram os Originais do Samba e seu entorno, os protagonistas e coadjuvantes de Os Trapalhões são reconstruídos para recontar a história do sambista que virou humorista. Tudo muito respeitoso com quem conhece o enredo e autêntico para quem não conhece.

Segundo Guindane, Mussum, o Filmis, mais do que biografia, tenta se firmar como um enredo comum a milhões de brasileiros. Do início difícil na escola de brancos, com a mãe decretando que o filho precisa se impor e ser o melhor, porque ele não é menor do que ninguém. Ao sambista e humorista consagrado que se dirige aos meninos e meninas atendidos pelo projeto Mangueira do Futuro. “Ninguém pode apagar o sonho de vocês. Vocês podem tudis. Porque burro preto tá cheio por aí. Mas preto burro não dá”, repete ele, usando o mantra de dona Malvina.

Outros tempos

Além disso, Guindane paradoxalmente tem a tarefa de lidar com uma história que não é exatamente uma novidade para algumas gerações. O filme baseia-se no livro Mussum – uma História de Humor e Samba, de Juliano Barreto, que coordena o roteiro. Também já existe na Netflix o documentário Mussum, um Filme do Cacildis (2019), de Susanna Lira, com narração de Lázaro Ramos e trilha de Pretinho da Serrinha.

O que Silvio Guindane faz é reunir um elenco majoritariamente negro e contar uma história que une no mesmo sofá muita gente que já sabe dela e muita gente que não. A importância da família, a busca do conhecimento como fonte de poder de escolha no trabalho e na vida, o enfrentamento dos preconceitos. 

Foram sete anos de projeto até chegar às telas. Mussum, o Filmis resgata todos os passos que levaram o menino da Cachoeirinha para a escola, à Mangueira, ao ofício de ajustador mecânico, à Aeronáutica, aos Originais do Samba à televisão e à eternidade. Num tempo em que se faziam piadas hoje inimagináveis em qualquer programa de humor.

O próprio Renato Aragão, em diversas entrevistas concedidas nos últimos anos, admite que o mundo mudou para melhor. E que não há mais espaço para piada que humilha pessoas. “Não há mais espaço para humilhar negro, pobre, nordestino, feio e gordo. É até covardia. Porque o outro não tem como se defender.”

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Nesse sentido, a contribuição do “pretagonista” Mussum é contundente. Pois mesmo com o intuito de fazer rir, sempre deixava claro que criolo e macaco é “sua mãe”. “E negão é seu passadis!” 

Fonte: Brasil de Fato

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