Na Etiópia, o Natal é em janeiro e o Réveillon em setembro

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Atualmente o calendário etíope está no ano de 2015

Não se escuta, em dezembro, música natalina no comércio de Adis Abeba nem se vê luzes coloridas e enfeites com este tema pelas principais ruas da agitada cidade, ao contrário de várias outras capitais pelo mundo. A Etiópia é um dos países onde a população, de maioria cristã ortodoxa, celebra o nascimento de Jesus Cristo no dia 7 de janeiro. O calendário local é diferente do gregoriano, o mais usado no mundo.

No segundo país mais populoso do continente africano (são cerca de 120 milhões de habitantes), esta é uma data sem muito apelo comercial, bem mais voltada para a simbologia religiosa. “Os etíopes realmente celebram o nascimento de Jesus, mesmo que seja em datas totalmente diferentes”, afirma a brasileira Luana Michele Alves da Cunha, que há 12 anos vive na Etiópia. Mas ela conta que o marido, etíope, também “já se acostumou com a celebração do nosso Natal”.

Árvore de Natal no saguãao de um luxuoso hotel em Adis Abeba, frequentado por muitos estrangeiros © Vinícius Assis

O feriado neste país, em janeiro, também marca o fim de 43 dias de jejum, que muitos fiéis costumam seguir à risca, todo ano, desde 25 de novembro. Durante este período de preparação para a data, espera-se que eles não consumam alimentos de origem animal nem bebidas alcoólicas. Alguns fazem apenas uma refeição por dia.

Assim como no Brasil, é um dia para, pelo menos em tese, se estar com a família. Quem vive na capital do país costuma voltar para a região de origem nesta época. Peregrinos visitam as monumentais igrejas escavadas em rochas na cidade de Lalibela, um dos destinos turísticos mais procurados, mas a ida ao templo mais próximo é um programa sagrado para muitos.

Vigília nas igrejas

A vigília nas igrejas espalhadas pelo país começa na noite anterior ao dia em que se celebra o nascimento de Cristo por aqui.

As mulheres precisam cobrir os cabelos com uma espécie de echarpe branca com as pontas bordadas chamada netele, peça tradicional no guarda-roupa das etíopes.

Os homens costumam estar com o dorso envolvido em uma vestimenta tradicional branca chamada gabi, também feita de algodão, porém bem mais grossa e maior que a netele.

Morando na Etiópia há quatro anos, a professora brasileira Eliene Nogueira já presenciou essas cerimônias em locais públicos. “Geralmente não são dentro das igrejas, porque não tem espaço para todo mundo. São distribuídas velas e eles as acendem para comemorar, como se fosse a estrela de Belém”, contou.

Árvore de Natal no saguão de um luxuoso hotel em Adis Abeba, frequentado por muitos estrangeiros. © Vinícius Assis

Tradições

São tradições que marcam o Natal etíope, retratadas em imagens que sempre correm o mundo, mas não são seguidas por todos, principalmente os mais jovens. Em Adis Abeba também há os que aproveitam a noite de Natal, em janeiro, em bares e boates. “Depende do quão religiosa a pessoa é”, esclarece a médica etíope Hermela Maru. Ela se considera flexível quando o assunto é tradição. Mesmo sendo cristã ortodoxa, não faz o jejum nos 43 dias que antecedem o Natal no país dela, por exemplo.

A médica lembra que a data aqui também é sinônimo de ter a família reunida em torno da mesa, especialmente para saborear um dos pratos mais emblemáticos dos feriados etíopes: doro wat, uma espécie de guisado feito com frango, cebola, ovos cozidos, (bastante) óleo e temperos, como o tradicional berbere. O prato leva mais de 10 horas para ficar pronto e costuma ser preparado no dia anterior.

Quem tem melhores condições financeiras compra um cordeiro ou um boi para o brunch de Natal. “Normalmente a família se reúne na casa dos avós ou do parente mais idoso ainda vivo”, contou Hermela. Não há Papai Noel nem troca de presentes em janeiro na Etiópia. “A menos que você vá visitar alguém, aí pode até levar algo para a família, mas não existe isso de árvore de Natal cheia de presentes, como no Ocidente”, completou a médica etíope.

A brasileira Rafaela de Costa Carvalho com o marido etiope, Isaac, e as filhas do casal usando roupas tradicionais etiopes
© Arquivo Pessoal

A brasileira Rafaela de Costa Carvalho, gerente de contratos, também é casada com um etíope, há dez anos. Atualmente o casal mora nos Estados Unidos com as duas filhas. Ela lembrou de um detalhe que o Natal etíope tem em comum com a celebração brasileira. “A única semelhança que tem entre o Natal etíope e o brasileiro é que algumas famílias, que têm acesso, gostam de comer panetone. Acho que é essa pequena influência italiana que teve aí”, disse. A Etiópia é considerada o único país da África que não foi colonizado, apesar de a ocupação por tropas italianas ter durado cinco anos (de 1936 até 1941).

Seis semanas atrás, a finlandesa Enna koskelo se mudou para Adis Abeba. Ela trabalha para a ONU Mulher, com projetos ligados a mulheres, paz e segurança. Por conta do trabalho, não conseguirá passar o Natal com a família na capital finlandesa, Helsinque.

Enna cresceu como membro da Igreja Evangélica Luterana, como a maioria da população da Finlândia. “Mas não sou praticante”, destaca. Ela diz claramente que gosta de comemorar o Natal, como sempre fez. “É a celebração dos valores que eu trago da minha cultura, como a família. É também um jeito de lembrar de onde eu venho”, disse.

A finlandesa mostrou à reportagem fotos e vídeos enviados nos últimos dias pela família. Enquanto nas recentes noites de Adis Abeba a temperatura tem ficado em torno dos 16 graus Celsius, os termômetros têm marcado – 9 graus Celsius na capital da Finlândia, onde as ruas estão cobertas de neve, o que rende cenários dignos de filmes natalinos de Hollywood.

Bazar de Natal no saguão do saguão de um hotel de luxo em Adis Abeba © Vinícius Assis

No ano passado ela passou o Natal em Nova Iorque com o namorado, pela primeira vez celebrando a data em outro país. Por conta das restrições impostas pela pandemia, conta que não comemoraram com festa. Mas, desta vez, está organizando uma celebração para a noite do próximo dia 24 com as pessoas que vivem na mesma casa em Adis Abeba e não viajarão.

Quando era criança, Enna diz que nesta época se empolgava mais com os presentes que receberia do Papai Noel, que – diz a lenda – seria da Lapônia, norte da Finlândia. Mas hoje não. “Conexão entre as pessoas nesta data para mim é melhor do que presente e decoração de Natal”, diz. Estima-se que os cristãos ortodoxos representem pouco mais de 1% da população finlandesa. A maioria é descendente de russos. Mas Enna conta que não se lembra de ver celebrações natalinas entre eles como na Etiópia. “Eu também estou muito curiosa para saber mais sobre o Natal daqui, mas não acredito que eu tenha a chance de participar, porque me parece que é mesmo algo mais religioso e bem restrito às famílias”, disse.

Normalmente quem se movimenta em dezembro em Adis Abeba por conta dos preparativos deste período, que no Ocidente é conhecido como o de festas de fim de ano, são os estrangeiros que vivem em uma das principais capitais da África, onde ficam a sede da União Africana, dezenas de embaixadas e organizações de diversos países.

Comércio de Adis Abeba enfeitado para o ano novo, em setembro © Vinícius Assis

Estrangeiros

Na maior cidade da Etiópia, no saguão de um luxuoso hotel que pertence a uma rede internacional, a reportagem encontrou uma grande árvore natalina decorada exatamente como se costuma ver com frequência em dezembro em praticamente todas as casas e empresas no Brasil. É algo raro na Etiópia. No local também havia um pequeno bazar, com pessoas vendendo livros e artesanatos sobre algumas mesas. A referência ao Natal neste ambiente é por conta da grande circulação de turistas estrangeiros. Por mais que etíopes também frequentem a piscina e os restaurantes do hotel “isso não representa a cultura da maioria local”, de acordo com Hermela Maru.

Hermela Maru disse que, particularmente, não vê com maus olhos o fato de pessoas aqui celebrarem essas datas como no Ocidente, mas ao mesmo tempo ela diz que se preocupa, porque acha importante ressaltar a cultura do próprio país. “Adis Abeba está ficando mais moderna, internacional, mas as crianças etíopes precisam aprender nossas próprias músicas e brincadeiras tradicionais para se celebrar o Natal e o Ano Novo e temos que ter quem as ensine isso”, concluiu a médica etíope.

Vitrine de uma loja em Adis Abeba decorada para o revéillon, em setembro © Vinícius Assis

No último fim de semana aconteceu, na capital etíope, o Bazar Diplomático de Caridade, depois de uma pausa de dois anos, que reuniu representantes de cerca de 40 embaixadas e comerciantes locais na sede da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África (UNECA, na sigla em inglês). Os organizadores garantem que o dinheiro arrecadado vai para obras de caridade no país. Só no bazar de 2019, foram levantados com o evento cerca de 6 milhões de Birr (moeda etíope), o equivalente a quase R$ 600 mil, segundo a UNECA.

Eles estão no ano de 2015

Na última semana de dezembro, a cidade deve ficar vazia. A maioria dos estrangeiros que vivem em Adis Abeba deve viajar para passar o Natal e o Réveillon fora da Etiópia, país onde o calendário tem 13 meses (são 12 com 30 dias e 1 com 5 dias) e a virada do ano é dia 11 de setembro (ou dia 12, no caso de anos bissextos).

Atualmente o calendário etíope está no ano de 2015. É em setembro também que se celebra aqui o fim do tradicional período de chuvas, embora algumas regiões do país estejam enfrentando a pior seca em 40 anos, o início da primavera e das colheitas nas áreas rurais.

Na véspera do Réveillon etíope, vitrines de lojas e fachadas de shoppings são decoradas com as cores amarela e marrom, uma referência à adey abeba, flor endêmica que só se colhe naquela época do ano. Pelas ruas também se vê a venda de acessórios dessas cores. Em setembro, há luxuosas festas pela cidade no Réveillon etíope. Também acontecem algumas festas dessas no dia 31 de dezembro. “O nosso ano novo nunca passamos aqui, porém há muitos hotéis que fazem festas”, disse Luana, se referindo ao dia 31 de dezembro. “Mas, no dia seguinte, todo mundo tem que estar no trabalho. É um dia normal, como outro qualquer”, destaca Rafaela.

* Por Vinícius Assis, correspondente da RFI na África

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